O SANTO INQUÉRITO
(Primeiro ato)
O palco contém vários praticáveis, em diferentes planos. Não constituem propriamente um cenário, mas um dispositivo para a representação, que é completado por uma rotunda. É total a escuridão no palco e na platéia. Ouve-se o ruído de soldados marchando. A princípio, dois ou três, depois quatro, cinco, um pelotão. Soa uma sirene de viatura policial, cujo volume vai aumentando, juntamente com a marcha, até chegar ao máximo. Ouvem-se vozes de comando confusas, que também crescem com os outros ruídos até chegarem a um ponto máximo saturação, quando cessa tudo, de súbito, e acendem-se as luzes. As personagens estão todas em cena: Branca, o Padre Bernardo, Augusto Coutinho, Simão Dias, o Visitador, o Notário e os guardas.
PADRE BERNARDO
Aqui estamos, senhores, para dar início ao processo. Os que invocam os direitos do homem acabam por negar os direitos da fé e os direitos de Deus, esquecendo-se de que aqueles que trazem em si a verdade têm o dever sagrado de estendê-la a todos, eliminando os que querem subvertê-la, pois quem tem o direito de mandar tem também o direito de punir. É muito fácil apresentar esta moça como um anjo de candura e a nós como bestas sanguinárias. Nós que tudo fizemos para salvá-la, para arrancar o Demônio de seu corpo. E se não conseguimos, se ela não quis separar-se dele, de Satanás, temos ou não o direito de castigá-la? Devemos deixar que continue a propagar heresias, perturbando a ordem pública e semeando os germes da anarquia, minando os alicerces da civilização que construímos, a civilização cristã? Não vamos esquecer que, se as heresias triunfassem, seríamos todos varridos! Todos! Eles não teriam conosco a piedade que reclamam de nós! E é a piedade que nos move a abrir este inquérito contra ela e a indiciá-la. Apresentaremos inúmeras provas que temos contra a acusada. Mas uma é evidente, está à vista de todos: ela está nua!
BRANCA
(Desce até o primeiro plano.) Não é verdade!
PADRE BERNARDO
Desavergonhadamente nua!
BRANCA
Vejam, senhores, vejam que não é verdade! Trago as minhas roupas, como todo mundo. Ele é que não as enxerga!
Padre sai, horrorizado.
BRANCA
Meu Deus, que hei de fazer para que vejam que estou vestida? É verdade que uma vez - numa noite de muito calor - eu fui banhar-me no rio.. e estava nua. Mas foi uma vez. Uma vez somente e ninguém viu, nem mesmo as guriatãs que dormiam no alto dos jeribás! Será por isso que eles dizem que eu ofendi gravemente a Deus? Ora, o senhor Deus e os senhores santos têm mais o que fazer que espiar moças tomando banho altas horas da noite. Não, não é só por isso que eles me perseguem e me torturam. Eu não entendo... Eles não dizem... só acusam, acusam! E fazem perguntas, tantas perguntas!
VISITADOR
Come carne em dias de preceito?
BRANCA
Não...
VISITADOR
Mata galinhas com o cutelo?
BRANCA
Não, torcendo o pescoço.
VISITADOR
Come toicinho, lebre, coelho, polvo, arraia, aves afogadas?
BRANCA
Como...
VISITADOR
Toma banho às sextas-feiras?
BRANCA
Todos os dias...
VISITADOR
E se enfeita?
BRANCA
Também...
VISITADOR
Quando tempo leva enfeitando-se?
NOTÁRIO
Quanto tempo?
TODOS
Quanto tempo? Quanto tempo?
Saem todos, exceto Branca.
BRANCA
Não sei, não sei... Oh, a minha cabeça... Por que me fazem todas essas perguntas, por que me torturam? Eu sou uma boa moça, cristã, temente a Deus. Meu pai me ensinou a doutrina e eu procuro segui-la. Mas acho que isso não é o mais importante. O mais importante é que eu sinto a presença de Deus em todas as coisas que me dão prazer. No vento que me fustiga os cabelos, quando ando a cavalo. Na água do rio, que me acaricia o corpo, quando vou me banhar. No corpo de Augusto, quando roça no meu, como sem querer. Ou num bom prato de carne-seca, bem apimentado, com muita farofa, desses que fazem a gente chorar de gosto. Pois Deus está em tudo isso. E amar a Deus é amar as coisas que Ele fez para o nosso prazer. É verdade que Deus também fez coisas para o nosso sofrimento. Mas foi para que também o temêssemos e aprendêssemos a dar valor às coisas boas. Deus deve passar muito mais tempo na minha roça, entre as minhas cabras e o canavial batido pelo sol e pelo vento, do que nos corredores sombrios do Colégio dos Jesuítas. Deus deve estar onde há mais claridade, penso eu. E deve gostar de ver as criaturas livres como Ele as fez, usando e gozando essa liberdade, porque foi assim que nasceram e assim devem viver. Tudo isso que estou lhes dizendo, é na esperança de que vocês entendam... Porque eles, eles não entendem... Vão dizer que sou uma herege e que estou possuída pelo Demônio. E isso não é verdade! Não acreditem! Se o Demônio estivesse em meu corpo, não teria deixado que eu me atirasse ao rio para salvar Padre Bernardo, quando a canoa virou com ele!...
PADRE BERNARDO
(Fora de cena, gritando.) Socorro! Aqui del rei!
Branca sai correndo. Volta, amparando Padre Bernardo, que caminha com dificuldade, quase desfalecido. Ela o traz até o primeiro plano e aí o deita, de costas. Debruça-se sobre ele e põe-se a fazer exercícios, movimentando seus braços e pernas, como se costuma fazer com os afogados. Vendo que ele não se reanima, cola os lábios na sua boca, aspirando e expirando, para levar o ar aos seus pulmões.
PADRE BERNARDO
(De olhos ainda cerrados, balbucia.) Jesus... Jesus, Maria, José...
Ele vai se reanimando aos poucos. Abre os olhos e vê Branca, de joelhos, a seu lado.
PADRE BERNARDO
Obrigado, Senhor, obrigado por terdes atendido ao meu apelo desesperado... Não sou merecedor de tanta misericórdia. (Ele beija repetidas vezes um crucifixo que traz na mão.) Alma de Cristo, santificai-me; Corpo de Cristo, salvai-me; Sangue de Cristo, inebriai-me...
BRANCA
Achava melhor o senhor deixar pra rezar depois. Agora era bom que virasse de bruços e baixasse a cabeça pra deixar sair toda essa água que engoliu.
Ajudado por ela, ele vira de bruços e baixa a cabeça. Ela pressiona sua nuca, para fazer sair a água.
BRANCA
Se eu não chego a tempo, o senhor bebia todo o rio Paraíba...
PADRE BERNARDO
(Senta-se, meio atordoado ainda.) A minha canoa?...
BRANCA
A canoa? Seguiu emborcada, rio abaixo. Tinha alguma coisa de valor?
PADRE BERNARDO
Tinha, o cofre com as esmolas...
BRANCA
Muito dinheiro?
PADRE BERNARDO
Bastante.
BRANCA
Agora deve estar no fundo do rio.
PADRE BERNARDO
Só consegui agarrar o crucifixo; tinha de escolher, uma coisa ou outra...
BRANCA
Foi uma pena. Com o dinheiro, o senhor talvez comprasse dois crucifixos. E quem sabe ainda sobrava.
PADRE BERNARDO
Não diga isso, filha!
BRANCA
Por quê?
PADRE BERNARDO
Porque é o Cristo... Não é coisa que se compre. Tivesse eu escolhido o cofre e certamente a esta hora estaria no fundo do rio com ele. Foi Jesus quem me salvou.
BRANCA
(Timidamente.) Eu ajudei um pouco...
PADRE BERNARDO
Eu sei. Você foi o instrumento. Não estou sendo ingrato. Sei que arriscou a vida para me salvar.
BRANCA
Não foi tanto assim. O rio aqui não é muito fundo e a correnteza não é lá tão forte. Quando a gente está acostumada...
PADRE BERNARDO
Acostumada?...
BRANCA
Venho banhar-me aqui todos os dias. Sei nadar e salvar alguém que está se afogando. É só puxar pelos cabelos. Com o senhor foi um pouco difícil por causa da tonsura. Tive de puxar pela batina. Me cansei um pouco, mas estou contente comigo mesma. Hoje vai ser um dia muito feliz para mim.
PADRE BERNARDO
Deus lhe conserve essa alegria e lhe faça todos os dias praticar uma boa ação, como a de hoje.
(O santo inquérito, 1966.)
O PAGADOR DE PROMESSAS
Nota do Autor
O homem, no sistema capitalista, é um ser em luta contra uma engrenagem social que promove a sua desintegração, ao mesmo tempo que aparenta e declara agir em defesa de sua liberdade individual. Para adaptar-se a essa engrenagem, o indivíduo concede levianamente, ou abdica por completo de si mesmo. O pagador de promessas é a estória de um homem que não quis conceder - e foi destruído. Seu tema central é, assim, o mito da liberdade capitalista. Baseada no princípio da liberdade de escolha, a sociedade burguesa não fornece ao indivíduo os meios necessários ao exercício dessa liberdade, tornando-a, portanto, ilusória. Claro, há também a intolerância, o sectarismo, o dogmatismo, que fazem com que vejamos inimigos naqueles que, de fato, estão do nosso lado. Há, sobretudo, a falta de uma linguagem comum entre os homens. Tudo isso tornando impossível a dignidade humana. São peças da engrenagem homicida.
Como Zé-do-Burro, cada um de nós tem suas promessas a pagar. A Deus ou ao Demônio, a uma Idéia. Em uma palavra, à nossa própria necessidade de entrega, de afirmação. E cada um de nós tem pela frente o seu "Padre Olavo" . Ele não é um símbolo de intolerância religiosa, mas de intolerância universal. Veste batina, podia vestir farda ou toga. É padre, podia ser dono de um truste. E Zé-do-Burro, crente do interior da Bahia, podia ter nascido em qualquer parte do mundo, muito embora o sincretismo religioso e o atraso social, que provocam o conflito ético, sejam problemas locais, façam parte de uma realidade brasileira. O pagador de promessas não é uma peça anticlerical - espero que isso seja entendido. Zé-do-Burro é trucidado não pela Igreja, mas por toda uma organização social, na qual somente o povo das ruas com ele confraterniza e a seu lado se coloca, inicialmente por instinto e finalmente pela conscientização produzida pelo impacto emocional de sua morte. A invasão final do templo tem nítido sentido de vitória popular e destruição de uma engrenagem da qual, é verdade, a Igreja, como instituição, faz parte.
O pagador de promessas é uma fábula. Sua estória é inteiramente imaginária, não obstante esteja toda ela construída sobre elementos folclóricos ou sociológicos que exprimem uma realidade. O sincretismo religioso que dá motivo ao drama é fato comum nas regiões brasileiras que, ao tempo da escravidão, receberam influências de cultos africanos. Não podendo praticar livremente esses cultos, procuravam os escravos burlar a vigilância dos senhores brancos, fingindo cultuar santos católicos, quando, na verdade, adoravam deuses nagôs. Assim, buscavam uma correspondência entre estes e aqueles - Oxalá (o maior dos orixás) identificou-se com Nosso Senhor do Bonfim, o santo de maior devoção da Bahia; Oxóssi, deus da caça, achou o seu símile em São Jorge; Exu, orixá malfazejo, foi equiparado ao diabo cristão. E assim por diante. Por isso, várias festas católicas, na Bahia (como em vários Estados do Brasil), estão impregnadas de fetichismo, com danças, jogos e cantos de origem africana. Entre elas a de Santa Bárbara (Iansan na mitologia negra), que serve de cenário ao drama. É evidente que a Igreja Católica reage a esse sincretismo. E a posição de Padre Olavo é perfeitamente lógica dentro dos princípios de defesa da religião cristã, muito embora revele uma intolerância também inerente a esse culto.
Mas o que nos interessa não é o dogmatismo cristão, a intolerância religiosa - é a crueldade de uma engrenagem social construída sobre um falso conceito de liberdade. Zé-do-Burro, por definição, é um homem livre. Por definição, apenas. O que nos importa é a exploração de que ele é vitima exploração que constitui também um dos alicerces da sociedade em que vivemos.
O pagador de promessas nasceu, principalmente, dessa consciência que tenho de ser explorado e impotente para fazer uso da liberdade que, em princípio, me é concedida. Da luta que travo com a sociedade, quando desejo fazer valer o meu direito de escolha, para seguir o meu próprio caminho e não aquele que ela me impõe. Do conflito interior em que me debato permanentemente, sabendo que o preço da minha sobrevivência é a prostituição total ou parcial. Zé-do-Burro faz aquilo que eu desejaria fazer morre para não conceder. Não se prostitui. E sua morte não é inútil, não é um gesto de afirmação individualista, porque dá consciência ao povo, que carrega o seu cadáver como bandeira.
(Coleção Dias Gomes, vol. 1, Os heróis vencidos, 1989.)
O SANTO INQUÉRITO
O que sabemos e o que pensamos das personagens
Parece fora de qualquer dúvida que Branca Dias, realmente, existiu e foi vítima da Inquisição. Segundo a lenda, bastante conhecida no Nordeste, Branca foi queimada, como Joana d’Arc. A história não é tão precisa. Há controvérsia. Opinam alguns pesquisadores que, embora tendo sofrido perseguições, Branca deve ter morrido na cama, como os generais. Mas nenhum põe a mão no fogo. Nelson Werneck Sodré inclina-se pela primeira versão. E se Branca, que segundo Ademar Vidal "era jovem de boniteza excepcional", não terminou seus dias numa fogueira, bem poderia ter tido essa sorte, pois os autos-de-fé de meados do século XVIII, em Lisboa, registram a condenação de cerca de quarenta mulheres procedentes do Brasil. Aqui mesmo, na Bahia, em fins do século XVI, a octogenária Ana Roiz foi queimada simplesmente "por ter, doente, tresvariando, dito desatinos". Alguém (um ancestral dos modernos dedos-duros) ouvira e denunciara. Também com relação à sua nacionalidade divergem os pesquisadores, alguns dando-a como portuguesa banida para o Brasil pelas perseguições anti-semitas da Inquisição lusa, no século XVI. Viriato Corrêa, que estudou o assunto, endossa essa versão. Mas a maioria afirma ter sido ela brasileira de nascimento, e paraibana. Ademar Vidal chega a citar datas precisas: nascimento "na capital da Paraíba em 15 de julho de 1734, tendo sido seus pais Simão Dias e Dona Maria Alves Dias, ambos da terra de André Vidal" , e morte no "auto de-fé de 20 de março de 1761, às seis horas da tarde, em Lisboa, no lugar onde demora o Limoeiro". Também quanto ao lugar da execução há divergência, querendo alguns que tenha sido aqui mesmo, no Brasil. Enfim, história e estória entram em choque e esta é uma briga para historiadores e folcloristas. A mim, como dramaturgo, o que interessa é que Branca existiu, foi perseguida e virou lenda. A verdade histórica, em si, no caso, é secundária; o que importa é a verdade humana e as ilações que dela possamos tirar. Se isto não aconteceu exatamente como aqui vai contado, podia ter acontecido, pois sucedeu com outras pessoas, nas mesmas circunstâncias, na mesma época e em outras épocas. E continua a acontecer. Muito embora a Santa Inquisição tenha hoje vários defensores, que procuram amenizar a imagem que dela fazemos e diminuir a responsabilidade da Igreja (a nova Igreja, justiça lhe seja feita, a Igreja de Paulo VI, procura ser, na teoria e na prática, a condenação formal de espírito e dos métodos do Santo Ofício), a verdade é que as razões apresentadas em sua defesa são as mesmas de todos os opressores, quase sempre sinceramente convencidos de que seus fins justificar os meios. São as razões de Hitler, de Franco e de MacCarthy. Vejamos o que diz um desses defensores da Santa Inquisição, o Padre José Bernardo: "(...) tanto o Estado como a Igreja se viam em face de um perigo crescente e ameaçador. Toda a sociedade humana, a ordem civil e religiosa, construída com imensos esforços, toda a civilização e cultura do Ocidente, o progresso, a união e a paz estavam ameaçados de dissolução." Ameaçados por quê? Pelas heresias, sendo o protestantismo e as práticas judaizantes dos cristãos-novos as que mais preocupavam a hegemonia católica. Na defesa dessa hegemonia, justificava-se o emprego de medidas que, embora contrariando o espírito cristão, encontravam acolhida entre os teólogos da Igreja de Cristo. "Conforme São Tomás, todo aquele que tem o direito de mandar tem também o de punir; e a autoridade que tem o poder de fazer leis tem também o de lhes dar a sanção conveniente. Ora, as penas espirituais nem sempre bastam. Alguns as desprezam. É por isso que a Igreja deve possuir e possui o direito de infligir também penas temporais". E embora o braço eclesiástico não decretasse diretamente as penas de morte, na verdade as endossava ao relaxar a vítima ao braço secular, para que este as aplicasse." "É, portanto, justíssimo que a pena de morte seja aplicada aos que, propagando a heresia com obstinação, perdem o bem mais precioso do povo cristão, que é a fé, e, por divisões profundas, semeiam nele graves desordens." Em Portugal e no Brasil foram os cristãos-novos as maiores vítimas desse direito de punir invocado pela Igreja no poder. Quando, em 1496, Dom Manoel desposou Dona Isabel, filha dos reis católicos, esta exigiu que todos os judeus fossem expulsos de Portugal antes de ela lá pisar. Dom Manoel apressou-se em satisfazer a exigência da noiva, decretando que todos os judeus e mouros forros se retirassem do reino. Entretanto os navios que deveriam transportá-los à África lhes foram negados, no momento em que eles se reuniam nos portos, prontos para partir, seguindo-se então uma terrível perseguição, à qual poucos sobreviveram. Estes foram convertidos à força, constituindo os cristãos-novos, no íntimo fiéis à sua antiga fé. Acreditando representarem permanente perigo às instituições e à civilização cristã, a Santa Inquisição os mantinha sob severa vigilância. Justificando essa atitude de autodefesa, o Padre José Bernardo traça um paralelo entre o Tribunal do Santo Ofício e os Comitês de Atividades Antiamericanas, criados pelo macarthismo. Diz ele: "Será lícito reprimir a heresia pelo uso da forca, quando ela constitui um perigo iminente para a ordem religiosa e civil?" A autoridade civil já dera, havia muito, a resposta afirmativa e continua ainda hoje na mesma disposição. Siga um exemplo: contrariando seus princípios de completa liberdade democrática, os Estados Unidos da América do Norte julgaram necessário proteger-se contra a desintegração da sua sociedade. Começaram a citar diante dos tribunais os comunistas declarados "por pregarem uma ideologia revolucionária", com o fim confessado de derrubar a ordem existente e a constituição democrática... Este proceder contra os comunistas é uma genuína restauração dos princípios inquisitoriais da Idade Média. Até quando esses princípios serão invocados, até quando forjarão mártires como Branca e Augusto, ou criminosos por omissão, como Simão Dias? Até quando as fogueiras reais ou simplesmente morais (estas não menos cruéis) serão usadas para eliminar aqueles que teimam em fazer uso da liberdade de pensamento?
Branca é realmente culpada de heresia. De acordo com a monitória do inquisidor-geral, instruções para a configuração das heresias, ela está "enquadrada" em vários artigos, sendo, além disso, acusada de atos contra a moralidade e da posse de livros proibidos. Mas, do princípio ao fim, ela caminha de coração aberto ao encontro de seu destino, acreditando que a sinceridade e a pureza que lhe moram no coração a absolvem de tudo. Mais importante do que conhecer e seguir as leis e os preceitos ao pé da letra não é estar possuída de bondade? Se ela traz Deus em si mesma, e se Deus é amor, isso não a redime inteiramente? E é isso, justamente, que a perde, não percebe que os homens que a julgam agem segundo uma idéia preconcebida, que subverte a verdade, embora eles também não tenham consciência disso e se considerem honestos e justos. E, sem dúvida, o são, se os considerarmos segundo seu ponto de vista. Branca nada percebe até o fim, quando já é tarde demais. Sua perplexidade cede lugar então a um princípio de consciência, que inicialmente a aniquila e depois a faz erguer-se na defesa fatal da própria dignidade. Branca nada tem de comum com Joana d’Arc, a não ser o fim trágico. Ela não é uma iluminada, não ouve vozes celestiais, nem se julga em estado de graça. É mulher. E para a mulher o amor é a verdadeira religião, o casamento a sua liturgia e o homem a humanização de Deus. Não se julga destinada a grandes feitos, nem a uma vida excepcional. Quer casar-se e ter quantos filhos puder seu ventre anseia pela maternidade. Nada tem das maneiras masculinas de Joana, nem de seu espírito de sacrifício; é feminina, frágil e vê no prazer uma prova da existência de Deus. A grandeza que atinge, no final, ao enfrentar o martírio é dada pela sua recusa em acumpliciar-se com os assassinos de Augusto. É um gesto de protesto e também de desespero.
Padre Bernardo era jesuíta, muito embora os inquisidores fossem, em geral, dominicanos. Mas, nas visitações ordenadas para o Brasil, os jesuítas tiveram papel de destaque, vindo a ser, depois, suas maiores vítimas, com a perseguição a eles movida pelo Marquês de Pombal. Além disso, aqui, como em toda a peça, seguimos a lenda, procurando harmonizá-la, sempre que possível, com a verdade histórica e subordinando ambas aos interesses maiores da obra dramática.
A conduta do Padre Bernardo para com Branca, a princípio, é impecável. Ele quer realmente salvá-la, curá-la de seus "desvios", repô-la nos trilhos de sua ortodoxia, e acredita, sinceramente, que assim procede por dever de ofício e gratidão. Quando a paixão carnal (que desde o início o motivou inconscientemente) começa a torturá-lo, ele só encontra um caminho para combatê-la: a punição de Branca, que será, em última análise, à sua própria punição. Mas em nenhum momento ele tem consciência de estar sacrificando Branca à sua própria purificação. Sua convicção é de que ela é culpada, herege irredutível e irrecuperável, sendo justa a pena que lhe é imposta. Também o Visitador do Santo Ofício, ao relaxá-la ao braço secular, tem a consciência tranqüila está certo de ter esgotado todos os esforços para levá-la ao arrependimento, está convicto de ter usado de toda a tolerância e toda a misericórdia e chegado ao limite onde qualquer irresolução na defesa da fé e da sociedade importa num suicídio dessa mesma fé e dessa mesma sociedade. A tranqüilidade com que ordena a aplicação de torturas em Augusto Coutinho, exigindo somente que sejam observadas as regras impostas pelo inquisidor-geral, não revela nele qualquer sintoma de sadismo, mas apenas a deformação a que pode chegar a mente humana para a defesa de uma causa. Olhado através de seu próprio prisma de interesses, motivações e condicionamento histórico, o bispo-visitador pode ser considerado até liberal, equilibrado, humano e justo - muito embora seja ele o executor da tarefa hedionda, desumana e cruel.
Essa deformação, em outro ângulo, pode ser percebida também no Notário. O necessário esquematismo da personagem pode levar à sua desumanização, e isso seria um erro. Ele é o que comumente chamamos "um bom sujeito". Se tivesse oportunidade de encontrar-se a sós com Branca, talvez chegasse até a compadecer-se de sua sina e a pensar num jeito de livrá-la. Diante do Visitador, porém, ele é um autômato, em que pesem as suas irreverentes interrupções durante a inquirição. No decorrer do processo, ele se transforma na peça de uma máquina e jamais lhe passaria pela mente emperrar deliberadamente essa engrenagem. A sua irritação ao ver Branca não compreender a inexorabilidade do processo a que está submetida é uma prova de sua humanidade, embora isto não chegue a conscientizá-lo. Mais consciência da iniqüidade de seu papel tem o Guarda - também certo da impossibilidade de modificá-lo.
Diz a lenda que, em noites de plenilúnio, quando o nordeste sopra na copa das árvores, Branca desliza pelas ruas silenciosas da capital paraibana e vai visitar o noivo prisioneiro e torturado nos subterrâneos do Convento de São Francisco. Um dos mais belos aspectos da estória é esse amor e a fidelidade a ele. Mas não é apenas o amor que tem por Branca o que leva Augusto a preferir a morte a acusá-la, é a certeza de que sua vida não vale a indignidade que querem obrigá-lo a cometer. Augusto é o homem em defesa de sua integridade moral, cônscio de que o ser humano tem em si mesmo algo de que não pode abrir mão, nem mesmo em troca da liberdade. Ele troca a vida pelo direito de vivê-la com grandeza, ao contrário de Simão. Neste, prevalece o sentimento de salvar-se a qualquer preço. Mesmo ao preço da própria dignidade. É a voz que não se levanta diante de uma injustiça praticada contra outrem, que não protesta contra uma violência, se essa violência não o atinge diretamente, esquecido de que as violências contra a criatura humana geram, quase sempre, uma reação em cadeia que talvez não pare no nosso vizinho. Seu receio de comprometer-se leva-o a assistir à morte de Augusto sem um gesto ou uma palavra em sua defesa. Essa omissão o torna cúmplice, como cúmplices são todos aqueles que se omitem por egoísmo ou covardia, podendo fazer valer sua voz. Quem cala, de fato, colabora.
(Coleção Dias Gomes, vol. 1, Os heróis vencidos, 1989.)