Se é de paz, pode entrar, diz-se na Bahia, nossa terra, Sr. Acadêmico Dias Gomes, quando alguém chama à porta da rua. Sois da guerra, vossa vida é uma sucessão de combates, mas vossas armas foram a escrita e a imaginação, e a causa pela qual lutastes é a da paz e da felicidade do homem sobre a terra. Sede pois bem-vindo a esta Casa da Cultura e da convivência, onde chegastes devido aos altos méritos de vossa criação literária.
Em trinta anos de vida acadêmica – por curiosa coincidência, como diria D. Arminda, personagem de romance, eu os cumprirei amanhã, 17 de julho –, assumo pela segunda vez esta tribuna para dar boas-vindas a um confrade na hora solene da posse. Quando me convidastes para vos receber, chamei vossa atenção para minha total incompetência crítica. “Compadre, eu vos disse, estais cometendo um erro, sou incapaz de fazer a análise densa e profunda que vossa obra reclama e merece. Dos quatro escritores que constituem a pequena bancada baiana na Academia Brasileira de Letras, sentam-se, ao lado do romancista Herberto Sales, dois grandes da Crítica e do Ensaio, Afrânio Coutinho e Eduardo Portella, ambos teus admiradores e teus amigos. Recorre a um deles, ou a mestre Antônio Houaiss, que, pelas virtudes e pelo saber, bem poderia ser baiano. Com qualquer deles, estarás servido a contento, tua obra será objeto, do preclaro louvor decorrente de estudo acurado, de justa interpretação. O meu louvor será limitado e pobre, apenas o aplauso de leitor, as palmas de espectador, faltar-lhe-ão profundidade e brilho, sou inepto”, assim vos disse. Não aceitastes meus argumentos, recorrestes aos ritos de amizade que, na Bahia, como sabemos, são exigentes e precisos, ninguém pode ignorá-los ou deixar de cumpri-los sem pecar por desatento, sem causar ofensa.
Esses mesmos deveres de amizade fizeram-me subir a esta tribuna há 26 anos, em 1965, quando me coube a alegria e a honra de receber um escritor singular, mestre da Ficção, duas vezes conterrâneo – por baiano e por grapiúna: paridos nas roças de cacau, crescemos nas ruas de Ilhéus –, colega de internato no Ginásio Ipiranga, em Salvador, adversário político, fraterno amigo, amizade que começou antes de nos conhecermos, pois nossos pais, coronéis do cacau, já eram velhos amigos quando os filhos nasceram. Coube-me receber e saudar Adonias Filho, vosso antecessor, de quem acabastes de traçar o retrato de corpo inteiro.
No Brasil, a cegueira, a burrice do sectarismo comanda a atividade política e social, à direita e à esquerda, iguais no atraso e na baixaria, degrada as relações, envenena o convívio. Contra tal concepção, Adonias Filho se bateu sem medir consequências não só com a palavra, sobretudo com o exemplo: jamais confundiu adversário político com inimigo pessoal a quem se deve, de forma obrigatória e violenta, ódio e repulsa. Tendo sido um dos tutores intelectuais dos militares que desencadearam o Golpe de Estado de 1964, prestigiado, citado para postos importantes, Ministro da Educação, Governador da Bahia, Adonias gastou seu capital político, despendeu o prestígio de que gozava na tarefa de impedir perseguições a adversários, para tirar da cadeia oposicionistas ao regime, para sustar processos de intelectuais de esquerda, inclusive de alguns que o haviam insultado e se preparavam para persegui-lo, se chegassem ao Poder.
Desde a adolescência, optamos por posicionamentos mais que diferentes, opostos, ele na Ação Integralista, eu na Juventude Comunista. Também nossas obras de criação, a dele e a minha, se bem nascidas de idênticas raízes, de vivências similares no chão do cacau, nas encruzilhadas da cidade da Bahia, respondem a visões pessoais e dessemelhantes: Adonias viveu voltado para o eterno, eu vivo afundado no materialismo grosseiro. Nossa amizade, no entanto, perdurou e cresceu acima de toda e qualquer divergência. Jamais permitimos que as ideologias, a nos prenderem e limitarem, impusessem os termos de nosso relacionamento, desfizessem os laços de admiração, respeito e bem-querer a nos unirem. Talvez porque idêntico humanismo baiano marcou nossa conduta de cidadãos e escritores: a confiança no ser humano. Ele sabia, e eu sei que, por maior seja a miséria material ou moral, brilha uma luz no coração dos homens.
Assim sendo, em 1965, ao tomar posse, Adonias me escolheu para recebê-lo, a mim, inimigo jurado do regime militar, “subversivo e pornógrafo”, como se escreveu na ocasião: talvez o houvesse feito por isso mesmo. Certamente o fez por isso mesmo.
Desejei, Sr. Dias Gomes, que minhas primeiras palavras hoje, nesta tribuna, fossem de homenagem a Adonias Filho que, para completar a beleza exemplar de sua vida, morreu de amor: não pôde suportar a ausência de Rosita, a esposa bem-amada.
Também nossa amizade, Sr. Dias Gomes, data de antes de nosso relacionamento pessoal: vosso irmão Guilherme foi meu companheiro de juventude, juntos iniciamos nosso aprendizado no ofício das Letras e o fizemos, impetuosos e virulentos subliteratos, nas hostes da Academia dos Rebeldes nos anos derradeiros da década de vinte. Guilherme morreu cedo, deixando ao irmão caçula, a vós, Sr. Dias Gomes, a tarefa de concretizar a aspiração do jovem rebelde. Vós o fizestes na dimensão democrática e popular das Letras baianas: temática de problemas sociais e humanos, questionamento da sociedade, solidariedade com os despossuídos e os discriminados, escrita despida de artifícios, transmutação da língua falada, viva e criativa.
Nossa tradição se assenta em Gregório de Matos Guerra, libertário, anarquista, indomável, dito o Boca do Inferno para de logo assinalar-se a originalidade da literatura baiana que encontrou perfeita consciência moral no canto do poeta Castro Alves: o beijo ardente, os escravos, a liberdade e o amor. A narrativa de Xavier Marques definiu os amplos limites de nossa ficção e nos ensinou a fazer do povo o herói maior, o personagem principal.
Nos anos finais da década de vinte, o Modernismo esgotara sua eficácia renovadora após ter-nos dado uns poucos livros fundamentais: Memórias Sentimentais de João Miramar, Macunaíma, Cobra Norato, Brás, Bexiga e Barrafunda, o 1.º Caderno de Poesia do Aluno de Poesia de Oswald, a Pauliceia Desvairada, de Mário. Provindo dos ruidosos movimentos europeus do pós-guerra de 1918 – o Futurismo, o Surrealismo, o Dadaísmo –, cedia lugar a novas formas de criação, saídas das tripas do povo. Em 1928, José Américo de Almeida publicava, na Paraíba, o romance A Bagaceira, e quase na mesma data o poeta Carlos Drummond de Andrade assinava seus primeiros poemas, em Minas Gerais: iniciava-se a etapa mais significativa da Literatura Brasileira.
Na Bahia, o discurso retórico e vazio dos ilustres professores da Faculdade de Medicina via-se contestado pelos jovens do Samba e do Arco e Flecha, poetas e pasquineiros, pelos malignos pé-rapados da Academia dos Rebeldes. Cruzada de meninos destemidos, implacáveis, dessas arruaças decorre a literatura moderna da Bahia, a já citada condição democrática e popular que condiciona sua originalidade. Dessa tradição contestatária e polêmica, decorre a obra que realizastes, Sr. Dias Gomes, cumprindo o mandato recebido de vosso irmão Guilherme.
Ao debruçar-me sobre vossa obra, de logo uma consideração me vem ao espírito e a quero aqui consignar, pois elogio maior não lhe poderei fazer. Quero dizer-vos que a obra que concebestes e realizastes já não vos pertence, nem à Crítica que a estuda, nem às trupes que montam vossas peças nos teatros, ela pertence ao povo por direito de propriedade – o povo, coautor dessa obra, vosso parceiro, a incorporou à sua criação anônima. Outros grandes de nossas Letras podem ser conduzidos em procissão nos andores da Crítica enfatuada, aquela que tem horror ao popular, ao sadio, ao deleitável, mas são pouquíssimos os poetas e os prosadores cujas criações deixam de lhes pertencer, viram domínio público, se transformam em bem de todos, patrimônio de cada brasileiro. Raríssimos esses eleitos, a maioria deve contentar- se com o ruidoso ou obscuro elogio dos profissionais da Crítica.
Penso no claro enigma de Carlos Drummond de Andrade, o poeta mais distante da facilidade: sua poesia, por vezes tão difícil, sempre à altura da obra-prima, deixou de pertencer ao tímido vate para se tornar sentimento e condição de todos nós, brasileiros. Qual de nós não diz que “havia uma pedra no meio do caminho”, repetindo verso seu? Que homem do povo – quantos deles analfabetos – não perguntou, na hora da dificuldade: “e agora, José?”, repetindo verso seu? Campeão do carnaval carioca no desfile da Escola de Samba da Mangueira, Drummond é o exemplo da poesia que extrapolou do livro, se fez dito popular, frase correntia, canção de Escola de Samba, dom do povo. Depois de Castro Alves, somente ele, nenhum outro.
Idêntica apropriação aconteceu com vossa obra de dramaturgo, Sr. Dias Gomes: cruzamos com vossos personagens nos caminhos do sertão e nas ruas das cidades onde convivem e participam, gente de carne e osso. Neles, o povo se reconhece, como reconhece o Brasil, a grandeza e a miséria, os equívocos absurdos e os espantosos acertos, nas histórias que construístes no universo do palco, nas ilimitadas polegadas dos vídeos. Um privilégio único, esse que vos coube, Sr. Dias Gomes: bem poucos o alcançaram em nossa Literatura.
Tamanho sucesso popular, presença poderosa e evidente, deve-se ao caráter social e político de vossa dramaturgia, à amplitude dos espaços e tempos nela delimitados, por ela questionados. Os problemas brasileiros referentes à liberdade, a individual e a coletiva, aos direitos humanos, à batalha entre o atraso e o progresso, foram expostos ao debate público, às luzes das ribaltas, em palcos que não se limitaram aos dos teatros, multiplicaram-se nas antenas das estações de rádio, nos vídeos das televisões.
Parte considerável de vossa obra de dramaturgo foi realizada em circunstâncias difíceis que tornaram vosso trabalho extremamente penoso: raros os autores brasileiros, na época da ditadura militar, tão visados pela censura. Fostes obrigado, em mais de uma ocasião, a recorrer a estratagemas literários, a recursos sutis de escrita e composição, para conseguir levar vossa mensagem ao grande público. Recordo que uma de vossas peças mais significativas, “O Berço do Herói”, proibida no Brasil, teve sua estreia mundial nos Estados Unidos, em tradução para o Inglês. Mantendo uma intransigência essencial, mas usando a astúcia e a fantasia, conseguistes as mais das vezes ludibriar a estupidez da censura, derrotar a intolerância do autoritarismo.
O Pagador de Promessas, O Santo Inquérito, A Revolução dos Beatos, O Bem Amado, O Berço do Herói, A Invasão, O Túnel, Os Campeões do Mundo, Amor em Campo Minado, Meu Reino por um Cavalo, essas dez peças, cujos títulos venho de citar, constituem o núcleo central de vosso teatro. Nelas traçastes extenso e incisivo panorama de nossa realidade. Tomastes dos temas mais candentes – a liberdade negada ao indivíduo pela sociedade opressora, a dura luta contra o regime militar, o painel feudal da vida camponesa nos sertões de cangaceiros e fanáticos, a intrujice política nas cidades, domínio da demagogia e da corrupção, o atraso e o progresso, a audácia e a violência, a reação e a revolução – tomastes dos temas mais candentes e os trouxestes à mesa da discussão, ao debate nacional. Vale salientar a unidade que identifica o conjunto de vossa dramaturgia, ditada por vossa posição de autor: não se trata de criação gratuita, o que antigamente se dizia ser Arte pela Arte, vossa criação possui causa e compromisso.
Cada peça vossa significou impacto, constituiu-se em acontecimento relevante, ultrapassou o simples episódio literário. A começar pelo êxito mundial de “O Pagador de Promessas”: não somente todo o Brasil se comoveu com essa fábula pungente e grave, a emoção se estendeu aos quatro cantos do mundo. Destinadas às cenas dos teatros, essas dez peças vos situaram entre os principais dramaturgos brasileiros, entre os grandes da Dramaturgia Contemporânea.
Quero fazer referência especial a outra face de vossa dramaturgia, aquela que se destina a ser difundida pela televisão. Sei que é de bom-tom falar horrores da televisão, apontada pelo elitismo dos intelectuais como um dos males de nosso tempo. O que os leva a querer terminar com todo e qualquer programa destinado a divertir, a alegrar a gente simples do povo, ou seja, nós todos. Não lhes parecendo punição suficiente a vida miserável a que a população brasileira está sujeita, querem lhe retirar ademais o direito à diversão, ao ócio, à descontração, ao riso; nossos intelectuais têm horror ao povo. Nos países onde tais teorias se impuseram, os programas de televisão tornaram-se de uma pobreza abominável. Aí estão os exemplos das televisões da União Soviética stalinista, de Portugal salazarista. Sem desconhecer e esconder as limitações e os perigos inerentes à televisão, não se pode tampouco desconhecer e esconder seu imenso poder de informação, de ensinamento e de entretenimento, a dimensão cultural, a eficiência incomparável da comunicação.
No que se refere a esse aspecto de vossa dramaturgia, devo vos dizer que eu o valorizo ao extremo, pois as séries e novelas televisivas levaram vossa proposição, vosso protesto, a um público infinitamente maior do que aquele que frequenta as salas de espetáculos. Foi sobretudo nos vídeos dos televisores que o povo se identificou com vossos personagens e reconheceu o Brasil, nossa espantosa realidade, o lado podre da vida de miséria e opressão, o lado luminoso da luta e da esperança.
Não aceito que se estabeleça diferença de valor entre os dois segmentos de vossa dramaturgia. Por que tal diferença, se o autor das peças de teatro e das novelas de televisão é o mesmo escritor, situado em idêntica posição, um senhor dramaturgo, um obstinado combatente?
Parte considerável de meu trabalho de romancista tem servido de base para séries e novelas de televisão. Se bem eu encare como uma violência contra o autor a adaptação de qualquer livro de ficção para outro meio de comunicação, creio que essa violência é compensada pela ampliação da audiência às ideias e emoções que o autor quis transmitir. Por mais a adaptação se afaste do original, alguma coisa resta: a ideia básica, a emoção mais profunda.
Há poucos dias um jornal de Lisboa, noticiando o êxito polêmico na tevê portuguesa da novela Tieta, realização da Rede Globo baseada em romance meu, presenteou-me com a autoria de vosso O Bem-Amado. Podeis imaginar como me senti vaidoso. Não é a primeira vez que os generosos portugueses me conferem falsa autoria de novelas de televisão. Certa ocasião, vai disso vários anos, estávamos em Lisboa, Zélia e eu, andávamos às compras no Rocio, em companhia do romancista baiano João Ubaldo Ribeiro (faço um parênteses para dizer que espero viver tempo suficiente para recebê-lo e saudá-lo desta mesma tribuna em sua inevitável posse na Academia Brasileira de Letras), quando numa loja as vendedoras me reconheceram. Foi uma algazarra. Isso se passou logo após o sucesso da novela adaptada de Gabriela, Cravo e Canela, cuja autoria é de Walter Georges Durst, mas que com frequência me é atribuída por ser eu o autor do romance. As balconistas quiseram saber se eu era o “gajo que escreve as novelas de televisão”.
É ele sim – respondeu João Ubaldo –, o autor das novelas. Só que às vezes, em lugar de assiná-las com o próprio nome, assina-as com o pseudônimo de Janete Clair.
Pronuncio aqui, hoje, nesta hora, o nome de Janete Clair com respeito e afeto, com real emoção, pois sei o que ela significou para Dias Gomes: esposa, companheira, mãe dos filhos mais velhos. Ilustre figura de um novo gênero literário, a Dramaturgia Televisiva, Janete Clair deu-lhe a dimensão e a humanidade do talento e do coração.
Adonias Filho, adversário político, fraterno amigo. Vós, Sr. Dias Gomes, sois fraterno amigo e companheiro de ideais e lutas. Juntos temos andado um bom pedaço de caminho entre acertos e erros, generosos e honrados os acertos e os erros, e, sem abdicar de nossas posições, chegamos ambos a esta Casa da convivência.
Vossa posse ocorre no momento em que, com rapidez incrível, o mundo se transforma, cava-se um abismo entre o dia de ontem e o dia de hoje. Um muro de preconceito e de demência política ruiu, e nos seus escombros soterraram-se teorias, concepções, sistemas de governo, estados, ideologias, lideres e heróis. Fragmentos do que foi o sonho e o combate, a esperança e a certeza de milhões de seres humanos pelo mundo afora estão sendo vendidos em pequenos pedaços por ávidos comerciantes norte-americanos a colecionadores de relíquias, junto com as lascas do muro de Berlim. Sei de homens e mulheres, magníficas pessoas, que de súbito se encontram desamparadas, esvaziadas, mergulhadas na dúvida, na incerteza, na solidão, no desamparo, perdidas, suicidas. O que as inspirou e conduziu pela vida afora, o ideal de justiça e beleza pelo qual se bateram, pelo qual tantos sofreram perseguição e violência, exílio, cadeia, tortura, muitos outros foram assassinados, se transformou em fumaça, em nada, em coisa nenhuma, foi apenas mentira e ilusão, mísero engano, ignomínia. De muitos, eu sei que se encontram nos limites do suicídio, como se a noite mais horrenda se houvesse abatido sobre o mundo, de vez e para sempre.
De mim, não vejo motivo para desespero e suicídio. Permanecem atrozes e urgentes, com as mesmas perspectivas e exigências, os problemas por cuja solução nos batemos, Sr. Dias Gomes, durante toda a nossa vida: o sonho que sonhamos permanece íntegro em seu fascinante desafio. Apenas rasgou-se o véu da fantasia, viu-se exposta ao sol a indigente nudez das ilusórias ideologias que cerceiam e diminuem o ser humano e são armas de opressão a serviço dos donos do poder: veio abaixo o que era falso e feio, podre e perverso.
Tem sido imensa a repercussão de tais acontecimentos, e é natural, pois eles atingem o destino de toda a humanidade. Sucede, porém, que na avalanche do noticiário sensacionalista e dos comentários facciosos, a mídia ocidental falsifica-lhes a significação, ao apresentá-los como se fossem a batalha final do confronto histórico entre o Capitalismo e o Socialismo. Estaríamos assistindo ao derradeiro combate, do qual resulta a completa vitória do Capitalismo, que se afirma o regime político mais perfeito, justo e humano, e a definitiva derrota do Socialismo, julgado e condenado pela História, repudiado pelas grandes massas populares.
Total adulteração da verdade, tal interpretação dos fatos é falsa e salafrária. O combate é bem outro: trava-se entre a Democracia e a Ditadura. No Leste europeu e no resto do mundo, estão ruindo ditaduras inconcebíveis, instauradas em nome do Socialismo, que eram ou são o oposto da Democracia – eram ou são porque algumas ainda resistem entrincheiradas na mentira ideológica e no terrorismo das policias políticas. Não é o Socialismo que está acabando, e, sim, sua contrafação fraudulenta e desumana, o chamado “Socialismo real”, imposto por déspotas cruéis através da mais monstruosa máquina de embuste e opressão.
O triunfo é da Democracia e não do Capitalismo, a derrota é da Ditadura e não do Socialismo. O Capitalismo permanece o mesmo sistema econômico e político falho que sempre foi, defeituoso e injusto, em nada melhorou. Continua a colocar a ambição de lucro, a ânsia de dinheiro acima de qualquer outro ideal, a cultivar fatores da miséria e da guerra. O Socialismo tampouco deixou de ser a meta almejada pela humanidade, etapa superior da marcha do homem em busca de uma vida melhor sobre a face da terra.
Socialismo sem democracia significa ditadura, e nenhuma ditadura presta, seja de direita ou de esquerda. Atrevo-me a dizer que as de esquerda são as piores, pois contra as de direita pode-se lutar de peito aberto; quem o fizer contra as de esquerda acaba patrulhado, acusado de reacionário, vendido, traidor. Eu próprio me vi sujeito a tais acusações quando, em fins de 1955, mantendo intactas minhas convicções socialistas, deixei de militar no Partido Comunista e passei a denunciar o Stalinismo, a criticar os erros, a condenar os crimes que continuavam a se repetir.
Há dois séculos a Revolução Francesa mudou a face do mundo. Novos valores, maiores, se estabeleceram, a vida tornou-se mais justa e mais bela. Quando, porém, os caminhos democráticos da Grande Revolução foram abandonados para dar lugar à ditadura sangrenta do Terror, ainda mais monstruosa porque exercida em nome do povo e do progresso, houve na França uma volta atrás, semelhante à que se dá hoje no Leste europeu. Primeiro foi o Império, Napoleão e as guerras de conquista levadas a cabo sob as bandeiras da Revolução Francesa, farsa somente comparável à da ocupação da Polônia, da Hungria, da Tchecoslováquia pelas tropas soviéticas sob as bandeiras do Socialismo. Depois de Napoleão, o retrocesso prosseguiu com a volta da monarquia dos Bourbons, com a entronização de Luís XVIII.
O retorno ao passado não significou o fim, a liquidação dos valores novos e maiores trazidos no bojo da Revolução Francesa, o mundo não voltou a ser o mesmo de antes, aquele que a Revolução destruiu, liquidou para sempre. Também a Revolução de Outubro, a Revolução Socialista, mudou a face do mundo e a vida dos homens e o fez para sempre. Os novos e maiores valores humanos e sociais trazidos em seu bojo persistirão mais além da suposta derrota de hoje.
Os acontecimentos atuais tampouco modificaram o quadro deplorável, sinistro, da realidade do Brasil onde a sociedade se torna a cada dia mais egoísta e injusta. Nenhum dos grandes problemas foi resolvido, a começar do problema fundamental, o maior de todos, da posse e da exploração da terra até aqueles que se referem à Infância, à Educação, à Saúde Pública, à Ecologia, à Cultura. Prosseguimos no trágico quotidiano de miséria e fome, na guerra contra milhões de crianças abandonadas ao crime, na crescente devastação do solo, na extinção das florestas e das espécies animais. Nosso retrato nacional, mostrado diariamente nos vídeos das televisões, dá vontade de chorar.
Foi válida a luta que nos coube lutar, Sr. Dias Gomes, por maiores e mais grosseiros tenham sido os erros cometidos. Apenas diante do fim do Império soviético e de suas colônias na Europa, na África e na Ásia, do desmoronamento das ideologias e das teorias que orientavam nossa tomada de posição, devemos compreender que cabe a nós, brasileiros, tão somente a nós e a mais ninguém – a nenhum cidadão soviético ou norte-americano, cubano ou chinês, alemão ou albanês –, a luta pela solução de nossos problemas, o remédio para nossas mazelas, a mudança para melhor da mesquinha, amarga, inaceitável sociedade atual.
São de nossa responsabilidade, única e exclusiva, os problemas da Amazônia e do Pantanal, dos rios e florestas, das cidades que são campos de batalha, das favelas da violência e da droga, das nossas desgraçadas crianças, dos servos da terra nos latifúndios, problemas imensos, monstruosos, são todos eles de nossa inteira responsabilidade, temos de resolvê-los com urgência, se ainda desejamos ter pátria e chão, se desejamos que a cordialidade e o riso retornem, que o brasileiro retome suas virtudes de povo, reencontre o canto, a dança, o futebol, a festa, o carnaval. As causas pelas quais nos batemos, Sr. Dias Gomes, continuam a exigir de nós a mesma coragem, idêntica decisão, completa e generosa consciência.
Contemplo este Salão Nobre da Academia Brasileira, repleto na cerimônia de vossa posse. Trazidos, quem sabe por minha comadre Bernadete, esposa, companheira, namorada, mãe de vossas filhas mais jovens, enxergo, misturados aos senhores acadêmicos, figuras insólitas que não costumam frequentar academias nem comparecer a eventos assim solenes. Parecem estranhos a este ambiente, não receberam convite, serão intrusos.
Não, não são intrusos. Aqui estão de pleno direito, com convite ou sem convite, pois, para tudo dizer, direi que foram essas pessoas que vos trouxeram a esta tribuna e a esta Casa, que vos deram fama e honrarias, popularidade. São vossos personagens, tantos! Não posso citar a todos eles, mas quem não reconhece, em meio à seleta, nobre assistência aqui presente, quem não reconhece Branca Dias desavergonhadamente nua, o Bem-Amado Odorico, Porcina, Carlão, Roque Santeiro, Sinhozinho Malta, as irmãs Cajazeira, o Senador e o Imortal, o Inquiridor e o Velho – há gente de toda espécie hoje nesta sala –, o Padre Cícero Romão Batista com seu cajado e sua santidade sertaneja, à frente de beatos e de cangaceiros, nosso padrinho Padre Cícero queiramos ou não; embaixo de sua batina, esconde-se a fraude de Floro Bartolomeu, senhor de baraço e cutelo. Vejo Zeca Diabo e Chico Moleza, Zabelinha, Dirceu Borboleta, Zé das Medalhas, heróis fabulosos, pequenos figurantes, Malu, Santa e os favelados, ai! Tanta gente, meu Deus, não os posso citar a todos, que os demais me perdoem. No comando dessa malta de Comédia e Drama, ergue-se Zé do Burro com sua cruz de brasileiro.
São muitos, a população que criastes, Sr. Dias Gomes, gente simples e sofrida. Deles é esta festa, bem a merecem.
Axé, Sr. Dias Gomes, eu vos digo em língua da Bahia, axé.
16/7/1991