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Cineasta acadêmico

 

Rodrigo Fonseca

O Globo (11.03.2006)


Porres existencialistas, náuseas sartrianas e dilemas machadianos ocupam a cabeça de Nelson Pereira dos Santos, de 77 anos, desde seus tempos de adolescente, em São Paulo. Antes até dele se preocupar em entender o que Monteiro Lobato quis dizer com o papo de que grandes nações são feitas de homens e livros. Dependente desde jovem da cachaça político-cultural destilada pelos autores modernistas de quem ele sempre foi fã, especialmente Oswald de Andrade, o novo membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), eleito anteontem, com 27 votos (de um total de 38), teimou até acrescentar um terceiro elemento à frase do criador do Sítio do Picapau Amarelo. Desde que, há cinco décadas, Nelson lançou “Rio 40 graus” (1955), a “grande nação brasileira” passou a ser edificada por homens, livros e filmes. É por isso que ele se tornou o primeiro cineasta no país a vestir o fardão que concede a imortalidade aos intelectuais do Brasil.

- Olha que eu concorri à cadeira cujo patrono é Castro Alves. Isso é que é honra - alegra-se Nelson, que recebeu a notícia na casa que pertenceu a Austregésilo de Athayde (1898-1993), presidente da ABL de 1959 a 1993, na qual realizou, na quinta, uma festa reunindo colegas cineastas, entre eles João Moreira Salles, Tetê Moraes e Luiz Carlos Lacerda. - Parece que estou em um filme de fantasia que teve final feliz.

Outro paradigma cai entre os acadêmicos

Durante a festa, Eduardo Coutinho, considerado o papa do documentário brasileiro, calou a boca dos que ainda estranham ver um cineasta na ABL:

- Os roteiros dele são melhores do que muito livro escrito por aí.

A classe cinematográfica em peso compartilhou da alegria do cineasta.

- Imortal, Nelson já era, pelo menos para nós, do cinema - diz o também diretor Cacá Diegues. - Essa vitória agora surge como um reconhecimento da qualidade de artista e intelectual que ele tem. Junto com o Nelson, ganhou todo o cinema brasileiro moderno, do qual ele foi um pioneiro.

Ao assumir a vaga antes ocupada pelo embaixador Sérgio Corrêa da Costa, morto em 2005, Nelson vai exercitar, uma vez mais, aquela que é sua vocação natural: romper paradigmas. Só o diretor que transgrediu a gramática clássica do cinema nacional, consagrando o engajamento social como complemento ao verbo “filmar”, poderia pisar em uma instituição tão tradicional.

- Bom, pelo menos um livro publicado eu tenho. Se não, nem poderia entrar na ABL. Publiquei “Três vezes Rio”, com meus roteiros para “Rio 40 graus”, “Rio Zona Norte” e “O amuleto de Ogum” - lembra o cineasta, que no dia 28 de abril lança “Brasília 18%”, seu 18 longa.

Mas para além dos méritos de ele ter no currículo filmes que estreitaram os vínculos entre a excelência da palavra escrita e a contundência do plano filmado - vide os longas “Vidas secas” (1963) e “Memórias do cárcere” (1984), só para ficar nas obras de Graciliano Ramos por ele adaptadas - a vitória do cineasta é um indicativo de que a ABL está buscando se oxigenar.

- Na ABL, sempre seguimos o molde da Academia Francesa. Agora, não estamos fazendo diferente - disse Marcos Vinicios Vilaça, presidente da ABL, lembrando-se da instituição que, nos anos 30, integrou o cineasta René Clair (1898-1981), de “A nós a liberdade”, em suas fileiras. - Nelson é um criador. Buscamos nele a consagração de uma das vertentes mais ricas de nossa produção cultural: o cinema.

Riccelli vira Billac no novo longa de Nelson

Não é de hoje que a ABL passa por transformações. Conforme se aproximava dos anos 00, a instituição, fundada em 1897, começou a acolher autores mais próximos do grande público ou de um perfil mais transgressor no trato da poesia. É o que explica, por exemplo, a entrada de um medalhão da literatura dos anos 70, como Moacyr Scliar, eleito em 2003. Ou a de um poeta com absoluto domínio do abecedário pós-moderno, feito Antonio Carlos Secchin, imortalizado em 2004. Mas nada foi mais escancaradamente pop do que a eleição, em 2002, do maior vendedor de livros do planeta: Paulo Coelho.

- Minha eleição dá ao cinema o status de ser uma atividade presente na cultura brasileira - diz Nelson. - Mais que isso, é uma forma de a ABL estender o direito à palavra a quem faz filmes, permitindo que a classe cinematográfica tenha espaço para fazer intervenções culturais reconhecidas. Pelo menos vou me empenhar para isso.

Agora cabe ao cineasta, cuja trilha estética deu aos enfant terribles do Cinema Novo (Glauber, David Neves, Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade e cia.) um veio social a ser explorado, descobrir se procede ou não o coro queixoso que acusa a ABL de deixar seu saber enfurnado nas catacumbas de suas reuniões a quatro paredes. O diretor, que fez um elogiado longa (“Azyllo muito louco”) inspirado em um livro (“O alienista”) do herói dos acadêmicos, Machado de Assis, discorda dos protestos.

- Quem sou eu para julgar a Academia? Sou um novato na coisa. O que eu posso garantir é que, no plano da defesa da língua portuguesa, ela tem cumprido um papel essencial do qual, muitas vezes, ninguém toma qualquer conhecimento - diz Nelson, cujo “Brasília 18%” é, indiretamente, uma homenagem a ícones da literatura.

Não é por acaso que o protagonista, vivido por Carlos Alberto Riccelli - um médico-legista que, envolvido numa trama de corrupção, apaixona-se por uma mulher desaparecida, cujo corpo pode ser o que está em sua mesa de exumação - chama-se Olavo Billac. Em seu caminho, há um sem número de homônimos de medalhões da literatura. Por exemplo, o cineasta Augusto dos Anjos (Michel Melamed) batizado em homenagem àquele que convenceu a poesia simbolista e pré-modernista de que “a mão que afaga é a mesma que apedreja”.

Desatualizado da prosa dos jovens escritores

Há ainda o publicitário Gonçalves Dias (Nildo Parente), xará do poeta indianista.

- Essa escolha foi por acaso. E não tem nada a ver com os rumores da minha entrada na ABL. Comecei “Brasília 18%” há mais de dez anos. Mas, quando o roteiro estava pronto, percebi que esses nomes criavam um efeito interessante, ao evocar figuras consagradas no imaginário cultural brasileiro. Claro que nem todo o mundo, neste país que ainda tem problema de educação, sabe quem foi Gonçalves Dias. Mas, no mínimo, lembra que é nome de rua. Riccelli virou Billac, porque ele era um poeta científico, que usava a língua com precisão - diz o diretor, que assume estar desatualizado em relação à literatura brasileira contemporânea.

O ingresso na ABL é um convite à reeducação literária.

- Tenho que ler muita coisa. Recentemente, o Marçal Aquino, roteirista dos filmes do Beto Brant, deu-me um livro dele. E eu li, ainda no manuscrito, o livro “Kasula”, de Dora Sverner, que é uma prosa proustiana. Eu até tento me atualizar, mas não consigo. O cinema me consome - diz o diretor, que planeja um filme sobre Oswald de Andrade. - Eu fui paulista até o fim dos anos 50, quando me instalei no Rio. Oswald, com seu jeito explosivo, fascinava-nos.

Tom Jobim a 40 graus nas lentes de Nelson

Apesar dessa reaproximação com a literatura, as únicas letras que figuram no projeto que Nelson desenvolverá após a estréia de “Brasília 18%”, são as das partituras de Tom Jobim. A partir do livro de Helena Jobim, o cineasta prepara, com co-direção de Marco Altberg, um documentário em duas partes sobre o maestro: “O homem iluminado” e “A música segundo Tom Jobim”.

- O sucesso de “Vinicius” prova que o documentário desperta um interesse comercial. E Jobim é um símbolo de um momento de transição do Brasil, com a bossa nova - diz o diretor, que não acredita que a condição de imortal da ABL vai lhe facilitar no ato da captação de recursos. - Estou rezando para a situação ser diferente. Acho que, se “Brasília 18%” for sucesso, a vida será mais fácil. Se não...

 

(Colaborou Bianca Kleinpaul, do Globo Online)

 

22/05/2006 - Atualizada em 21/05/2006