Senhor Álvaro Moreyra,
Agora podeis ver mais uma vez, meu prezado confrade, a inutilidade das promessas acadêmicas... Foi inútil a promessa que fizestes à sombra querida do Poeta das Cigarras – a promessa daquele mesmo silêncio, em que outrora se envolveu Hamlet. Pelo nosso regimento, temos o dever de falar, mesmo naqueles momentos em que preferiríamos ficar em silêncio.
Agora, por exemplo, a voz de um poeta encheu de ressonâncias mágicas esta sala, e trouxe a cada um de nós urna ternura, uma saudade, o frêmito de uma íntima e verdadeira comoção. Pelo poder encantatório das palavras desse poeta, as imagens dos queridos mortos que pertencem à Cadeira que vindes ocupar na Academia, e sobretudo a daquele gentil e cavalheiresco Olegário Mariano, ainda tão perto de nós, ficaram, por um momento, vivendo, sentindo, amando e sofrendo, ao nosso lado. Não era bastante que parássemos aqui? seria como que a parada de Ulisses na visita aos seus mortos diletos quando o herói vê surgir do eterno mistério tenebroso as sombras dos companheiros extintos, e sobretudo a de Aquiles, o guerreiro sem igual.
Mas essa parada, que eu, pelo meu lado, tanto desejaria, nos é vedada.Temos de prosseguir na cerimônia. Perdoai-me, portanto, se eu ouso quebrar esse eco de alongada Poesia, que ainda de vossa voz perdura em nosso ambiente, para vos dizer a acolhida da nossa Casa...
TEMPOS DE INFÂNCIA
No delicioso discurso que acabastes de pronunciar, deixastes, sob a forma de recordações da infância, algumas imagens que explicam em parte a vossa poesia, a vossa obra, isso que poderíamos chamar a vossa filosofia da vida. Recordastes, por exemplo, D. Maria Angélica, a vossa avó cega, aquela que sabia encher de uma encantada luz o vosso lar. E com essa simples evocação muito nos dizeis acerca do ambiente em que se plasmou a vossa primeira sensibilidade. Era essa senhora, uma partidária ardente dos Farrapos, o movimento libertário que agitou o povo do Rio Grande do Sul, nos tempos em que ela fora menina e moça. E tão ardentemente se conservava fiel a essa antiga paixão, que, velha e cega, quando roncava nos céus de Porto Alegre uma daquelas trovoadas formidáveis, D. Maria Angélica se levantava, fazia o sinal da cruz, e anunciava: “São os Farrapos que vão galopando no céu.”
Outra nítida imagem familiar que conservais é a do vosso avô Manuel Pinto da Fonseca. Era português, filho daquela Póvoa de Varzim, que teve a glória de ser o berço do maior escritor que Portugal deu em todos os tempos, esse maravilhoso Eça de Queirós, tão brasileiro em tantas coisas, e ao qual,seguindo uma de vossas fórmulas queridas, é preciso voltarmos sempre. Era esse vosso avô um homem pitoresco, dono de um grande espírito de irreverência, desprovido quase por completo de qualquer respeito humano.
Para mostrá-lo, bastará referir uma passagem que da vida dele nos contais. Chegara a Porto Alegre, no alvorecer do século, Camelo Lampreia, que era Ministro de Portugal no Brasil. Informado ali acerca do velho Manuel Pinto da Fonseca, quis prestar-lhe uma homenagem. O cônsul português combinou o assunto com o vosso pai. No dia aprazado, os salões de vossa casa se abriram para a cerimônia. Correu o vinho, correu o champanhe. Camelo Lampreia dirigiu-se ao vosso avô nestes termos: “Tenho a honra de saudar em Vossa Excelência o mais antigo representante da minha Pátria na capital do Rio Grande do Sul. E em nome de Sua Majestade, o Rei D. Carlos, é com orgulho que lhe ofereço o título de Barão.” Vosso avô não vacilou em quebrar a solenidade da cerimônia magnífica. “Quanto é que custa isso?” perguntou ao diplomata. E, para aumentar o pasmo de Camelo Lampreia e o estupor de todos os presentes, acrescentou: “O Rei o que quer é dinheiro. Diga quanto é que quer que eu dou. Quanto ao título, que o ensope com batatas.”
Já que nos demoramos nessas evocações domésticas, transportemos para aqui, em uma justa homenagem a quem tanto significou sempre para vós, uma outra figura de vossa mitologia íntima: a de João Moreira. Era aquele a quem deveis a vida um espírito gracioso, boêmio, estouvado e alegre. Os deuses deram-lhe um privilégio único, tão bem herdado pelo filho – o privilégio de nunca envelhecer. O retrato que de João Moreira nos dais é o de um homem que sabia sorrir e que só teve um medo neste mundo – o do aborrecimento.Foi um autêntico escritor, o Areimor de tantas páginas, e aí estão,para prová-lo, os seus livros de crônicas, tão cheias de informações e de pitoresco, e os seus contos e as suas meditações filosóficas – tudo isso que evocais com tão comovido carinho.
Eis aí o que é um privilégio raro, um privilégio que a vida só concede a bem poucos: vir para a existência em um lar como o que tivestes. Possuir uma avó cheia de sonho e de fantasia, capaz de ver com os olhos da alma o que está para além das formas efêmeras da terra... Possuir um avô de tanto destemor cívico e republicano, capaz de não levar a sério os títulos de um rei... possuir um pai que dá o exemplo e a lição da perpétua alegria, da salutar conformação com as coisas...Que caminho poderieis vós acabar por tomar em um lar como aquele, em convivência como aquela? Unicamente o caminho que tomastes. Ficastes assim, pelo imperativo dessas forças amoráveis, e de outras que também influíram na formação de vossa personalidade esse homem que sois hoje... Esse homem tão simples na aparência, porém de uma complexidade tão profunda... Esse ser compósito, feito da superposição de tantos outros seres, e no qual se misturam o poeta e o sentimental, o ironista, o zombador e o embromador, e até o histrião, e o cínico e o místico...Sois tudo isso, meu caro confrade, em diluições sutis e quase imperceptíveis. E sois mais o revoltado contra todas as convenções sociais. E ainda, e bem no fundo: o político de corajoso pensamento, o homem das esquerdas capaz de ferir de frente os ídolos do dia, ou mesmo os ídolos do século, escritor que não tem medo de ostentar, na sua forma desencantada e risonha as idéias mais audazes...
TEMPO DE COLÉGIO
Vimos como o ambiente doméstico em que decorreu a vossa infância contribuiu para a sedimentação de vossas qualidades de escritor e de homem de idéias. Vejamos a contribuição que paralelamente forneceu para a vossa formação o ambiente colegial.
Muito criança, estáveis matriculado no Colégio Nossa Senhora da Conceição, em São Leopoldo. Um de vossos companheiros ali foi o nosso ilustre João Neves da Fontoura. Saudemos aqui essa bela amizade que através de mais de sessenta anos vos tem unido aos dois. Foi ela, essa pura afeição sem sombras, um dos apelos que mais poderosamente vos falaram, quando, distante e volúvel como sois, acabastes por querer ouvir o chamado da Academia, que tanto desejava ter o vosso nome na relação dos seus eleitos.
Ali, no Colégio Nossa Senhora da Conceição, tivestes como professores jesuítas alemães, os quais vos transmitiram, com a continuada lição e o continuado exemplo, o amor ao trabalho, o gosto pelo estudo, e esse prazer na mediana e na modéstia, que ficou como um traço dos mais fundos de vossa alma. Muitos desses velhos mestres estão para sempre vivos na vossa saudade. O mais vivo deles, o mais presente em vosso espírito, creio ser o Padre Rick, que vos lecionava a matemática e a história natural, e que teve a malícia de premiar a vossa esplêndida Ciência com um grau um. Era, como o descreveis, um indivíduo de fato apavorante: muito comprido, muito magro, muito feio – e sabendo tudo.
Foi esse padre que tudo sabia que um dia vos fez um vaticínio pitoresco. Chegara o momento de deixardes o colégio, e vos despedíeis de vossos antigos companheiros e de vossos mestres. Veio a vez do Padre Rick. Ele vos abraçou e vos abençoou, e depois vos interrogou acerca do vosso futuro. Quis saber o que pretendíeis estudar. Respondestes modestamente que íeis para a Faculdade de Direito. O padre abriu-se em uma gargalhada terrível, e, bom conhecedor do boêmio, inimigo dos prazos e das convenções, que já aquele tempo havia em vós, exclamou.: “Vai, Morrera, vai! Nunca será nada na vida”. E com efeito, no sentido a que se referia o Padre Rick, vós nada fostes na vida! De fato, para as realizações que conseguistes a vossa carta de bacharel de Direito, sempre foi o mais inútil dos diplomas.
O que aquele sábio de batina ignorava de todo, porém, é que existem outras maneiras de um homem conseguir na vida os belos triunfos, sem entretanto, conquistar os galardões da vaidade e da fortuna. A que altura tão bela e tão gloriosa quanto a da Poesia por acaso subir um homem, um desses homens vitoriosos segundo o mundo? Qual o êxito político, do grande capitalista, do estadista, que se possa comparar com a glória do modesto cidadão florentino que escreveu a Divina Comédia ou do espanhol sofredor que escreveu o D. Quixote? Aplicando a meditação ao nosso Confrade Álvaro Moreyra –, qual o êxito dele se houvesse sido governador do Rio Grande do Sul, deputado ou senador federal pela mesma região, ou até Ministro do Estado, ou até Presidente da República, que se pudesse comparar com a glória que cerca o comediógrafo de Adão, Eva e outro membros da família, ou com a que coroa o doce poeta de “Um sorriso para tudo”, de “As amargas, não” e de “O dia nos olhos?”
Já no colégio obtivestes belos momentos de triunfo. Fostes ali o poeta que todos celebravam, o orador que representava a sua turma, o ator mais aplaudido nos espetáculos que se faziam.
Foi ali que tivestes também o vosso primeiro amor: aquela paixão em que ardestes por Santa Cecília. Ela nunca soube, é bem verdade, desse grande amor que despertara no coração de um menino. Mas é bem verdade também que esse amor só desapareceu quando se sentiu decepcionado e talvez traído – no momento em que soubestes que a Santa contou a Valeriano este seu celestial segredo: “Eu possuo um amante. É um anjo de Deus, que, com o maior ciúme, cuida do meu corpo.”
AMIZADES NO CÉU
Foi naquele mesmo colégio que contraístes as mais suaves e desveladas amizades que vos têm acompanhado através dos dias da vida – a dos santos da corte celeste. Sois, sem dúvida, amigo de todos os varões sagrados que estão próximos a Deus, e basta-nos ler uma de vossas páginas relativamente a um São João, a um Santo Antônio, a um São Pedro, para sentirmos transportados a uma atmosfera de ternura, de emoção e de poesia. Creio, porém, que na corte Celeste evitais o contato com muita gente. Posso surpreender um gesto de timidez, de afastamento ou de desconfiança de vossa parte, toda vez que se trata de um desses grandes santos – os doutores, os sábios, os reis, os chefes, os papas – que detêm o poder, a força, a infalibilidade da ordem ou da doutrina.
Os que de fato adorais são os santos espontâneos, os simples e os ingênuos, os mansos ou os obscuros. Adorais, sobretudo os que tiveram o privilégio da perfeita ignorância, os que, para vencer o demônio, só possuíram a força do amor. Adivinho que a vossa galeria predileta, aquela para a qual naturalmente caminhareis, quando, um dia, de hoje a muito anos, houverdes de penetrar no céu, será a de certos monges doces e modestos que enchem a hagiografia medieval. Tiveram eles por si a inocência, e, por terem sido inocentes, tiveram a predileção de Nossa Senhora... Pobre pecador que sou, de certo estarei bem longe dali, daqueles deslumbrantes lugares dessa outra vossa e incomparavelmente mais gloriosa eleição... Porém estou daqui, com o auxílio da incorrigível fantasia, a ver-vos penetrar nos salões da glória sem igual... Com a mesma risonha e suave timidez que ora exibis, vos aproximastes das portas de diamante da Jerusalém resplandecente. Vínheis cavalgando o burro de asas nos pés e que sabe conversar convosco com uma voz de violino – o único dos burros de vossa infinita coleção de hoje que guardais num cofre bem escondido e cuja existência não revelais nem aos mais íntimos dos vossos amigos. Vestis um manto alvo e leve, tecido de raios de estrelas – e tão ofuscantemente luminoso que, aos pés dele, esse orgulhoso uniforme que aqui trazeis, todo de ouro como é, parece sem brilho e triste como o burel de um monge... Ao chegardes, São Pedro, em pessoa, vos recebeu, e ele, que vos ama tanto vos disse com uma doçura paternal, tal como um dia o dissera a Irene preta, a Irene boa, a Irene sempre de bom humor de Manuel Bandeira: Pode entrar filho... Não faça cerimônia... A casa inteira é sua... Entrastes com um ar vacilante, e, continuando a sorrir o mesmo sorriso vago vagamente contrafeito, que neste momento vejo pairar em vossa fisionomia, fostes passando, de grupo em grupo, sem demorar em nenhum... Ali estão os primeiros Príncipes do Céu, os Rafaéis e os Miguéis, cujo esplendor maravilhoso mal podeis contemplar...Depois, estão os grandes mártires, os Estêvãos e os Sebastiões... Depois os incansáveis missionários, tendo à frente esse cavaleiro andante de Deus que se chamou Paulo, o verdadeiro organizador do Cristianismo... Depois, os escritores incomparáveis, os quatro evangelistas... Depois, esses triunfantes doutores, um Gregório, um Basílio e um Tomás de Aquino, que souberam tudo. São varões magníficos todos eles. E o simples brilho de qualquer um daria para encher séculos inteiros...
Mas vejo que passais de longe por todos, inefavelmente aterrorizado diante do fulgor e da glória que exalam... E caminhais para um recanto distante e obscuro do céu (se o há!), caminhais para um grupo modesto de santos sem tanta luz – e que são os que verdadeiramente preferis...
Ali está um deles: é aquele monge venturoso, que se achou enfermo e pode restabelecer-se de seus males por efeito do mais poderoso dos remédios – o leite que um dia amamentou Jesus criança, o leite do seu próprio seio a Rainha dos Anjos deu a beber aquele servo querido... Ali está outro: é o feliz ladrão adorador de Nossa Senhora. Condenado por causa dos roubos que fez, ia morrer enforcado. Mas ficou vivo, pendurado na forca durante três dias, porque a Virgem Maria sustinha nas suas doces mãos a cabeça do seu devoto... Ali está um terceiro: é monge entre todos ignaro, que só sabia uma forma de oração – a Ave-Maria – o que fazia com que fosse desprezado e humilhado por todos na comunidade. Quando morreu, entretanto, a sua santidade ficou comprovada nas cinco rosas que brotaram de sua boca – rosas que representavam as cinco letras do nome de Maria... Ali está ainda outro: é o Tambor de Nossa Senhora, aquele que se tornou conhecido de todo o mundo, por ter inspirado um conto a um dos vossos mais perigosos amigos, nada menos do que Anatole France...
AMOR POR SÃO FRANCISCO DE ASSIS
São os santos dessa espécie os que na corte celestial mais merecerão o vosso afeto, Sr. Álvaro Moreyra.
Entre todos, porém, um existe que inspira as vossas afeições mais profundas e mais comovidas – é aquele que vemos em tantas de vossas páginas sendo o Santo por excelência, aquele que mais se aproximou do ideal de Nosso Senhor Jesus Cristo, o monge que cantou a irmã Humildade e a irmã Pobreza...
Sois por excelência o devoto do São Francisco de Assis. É por ele que Sonhais ir para o céu. Com ele desejais estabelecer uma intimidade de amigo ou de companheiro, a tal ponto que chegueis a chamá-lo, como nem mesmo o irmão Bernardo o irmão Leão ou o irmão Ângelo o chamariam –de Chiquinho... É o meigo monge de Assis quem vos conduz a tantos dos vossos amores divinos e humanos, a começar por esse afeto que tributais aos animais.
A esse propósito encontro, em um dos vossos livros, uma reflexão que será interessante recordar aqui. É aquela em que realizastes o vosso constante anelo de chegar à presença do santo entre todos querido, e de conversar com ele. No curso dessa conversa, São Francisco se referiu ao seu próprio corpo e o chamou “meu irmão burro”.
Pensastes então:
Irmão pode ser. Mas, burro, São Francisco? O corpo humano não possui nenhuma das virtudes que tornam os burros animais exemplares entre os seus semelhantes: a paciência, a compreensão, a bondade. Aliás com esses resignados amigos de quatro pés, somos sempre, santos e pecadores, injustos.(Desculpe, meu santo!) Tenho conhecido muitos homens burros. Ainda não conheci um burro homem.
A amizade com o grande santo teve um explêndido resultado: amadureceu, senão criou, muito dessa vossa deliciosa filosofia – a qual consiste em dois únicos preceitos: a paciência para com todos..., a resignação para com tudo...
Um dia tivestes a prova prática e real desse vosso franciscanismo. Acabáveis de falar em uma estação de rádio, expressando idéias que vos são das mais queridas. Finda a tarefa, íeis vos retirar, e por um momento ficastes no saguão, à espera de uma pessoa que devia sair em vossa companhia. E foi nesse momento que de vós se aproximou um monge franciscano. Tinha o aspecto macerado das pessoas que se entregam aos infinitos jejuns. Mas aparentava a alegria e a tranqüilidade... Aproximou-se... tomou entre as suas a vossa mão, que acariciou como se fosse a mão de uma criatura... Olhou-vos longamente os olhos, com uma expressão de afeto e gratidão... E depois, como a mais eloqüente das despedidas, vos disse apenas estas palavras:
– Meu irmão!
INÍCIOS DE UMA CARREIRA
Creio que é possível marcar o ano de 1908 como o de vossa estréia no jornalismo do Rio Grande do Sul. Estudáveis o vosso Direito, e vós e os vossos amigos encheis as noites da cidade modesta – que era a Porto Alegre daquele tempo – de um rumor de boêmia e estouvamento. O grupo era numeroso e certo dia, estava congregado na redação do Jornal da Manhã, o órgão tão cheio de promessas que Alcides Maia acabava de fundar. Alguns dos nomes que ao grupo pertenciam chegaram gloriosos até nós. Um deles é o de Felipe de Oliveira, essa figura de príncipe do Renascimento: outro é o de Eduardo Guimarães o poeta da Divina Quimera, aquele que já foi apontado por um crítico – talvez com um exagero de amor – como a terceira figura máxima do Simbolismo em nosso País, como um irmão, pelo gênio criador e pela música do verso, de Cruz e Sousa e de Alphonsus de Guimaraens: outro é o do vosso querido Homero Prates, o fascinante poeta que a Academia permitiu que fosse ser mais um dos ocupantes da sua Cadeira 41
– aquele poeta que tão bem sabia se definir a si mesmo, dizendo que se sentia “um exilado em seu próprio País”. Outro ainda é o de José Picorelli, alma de fundas sugestões, que entretanto desdenhou sempre de realizar em versos a Poesia que traz na alma. Era este último grupo, o que sabia sacudir a sensibilidade dos companheiros com descargas de emotividade súbita e maravilhosa. Evocais uma dessas descargas... Era já no Rio de Janeiro, em 1914, na casa em que, na Rua de São Clemente, residíeis, em companhia de Felipe de Oliveira e Homero Prates. José Picorelli às vezes ia dormir ali com os amigos. Naquela noite chovia, chovia muito. Os quatro amigos estavam tristes, trágicos, bebendo Madeira R e fumando cigarros sobre cigarros... Picorelli, calado na sua cadeira, não fumando nem bebendo, permanecia com os olhos fixos no chão... Em vão os amigos se dirigiam a ele, procurando atraí-lo à vaga conversa, insistindo para que bebesse, para que fumasse... Um deles não se conteve. Gritou, como se quisesse acordar alguém que estivesse a dormir.
– Picorelli!
E então o companheiro pareceu mesmo despertar..., e, como se houvesse chegado dos longos mares da Poesia de alguma peça de Maeterlinck, fez esta pergunta ansiosa:
– E as mãos das mulheres que morreram sem pecar e foram enterradas hoje? É a primeira noite debaixo da terra... A chuva vai molhar as mãos... É claro que, como dizeis, ouvindo essas palavras, ninguém viu mais nada: todos mergulharam de súbito na mesma dor, na mesma ansiedade, no mesmo romantismo, na mesma desesperada e tenebrosa Poesia...
A esses rapazes de vinte anos juntavam-se os escritores um pouco mais velhos – eles, também, vivendo no sonho ou na extravagância: como aquele singular Marcelo Gama ou como aquele singularíssimo Pedro Velho.
De Marcelo Gama recordais uma atitude decerto bem estranha... Tinha ele tido um poema recusado pelo diretor de um jornal, e por isso convocou o grupo dos amigos jovens, seus admiradores incondicionais. Com esses amigos tomou um carro, e mandou que o cocheiro rumasse para o cemitério. Ali saltou, aproximou-se da grade da cidade dos mortos, e gritou para os eternos adormecidos:
– Mortos! Mortos! Os vivos não querem ouvir o que lhes digo! Venho dizer a vós!
E recitou os versos do seu poema recusado – os versos que, depois ampliados, deram a “Noite de Insônia.”
Pedro Velho foi um talento radioso, que se perdeu na insana boêmia...Certo dia, já muito enfraquecido de tanto cultivar as vinhas de Noé, adoeceu gravemente de uma gripe. Na convalescença, os amigos cotizaram-se e o mandaram repousar em Caxias, onde os ares são doces e o leite é uma delícia... Vinte e seis dias depois reaparecia o poeta. Vinha vermelho, inchado e com uma tosse horrível... Os amigos compreenderam o que tinha acontecido, e energicamente protestaram... Naturalmente Pedro Velho quisera interromper as suas farras... o sacrifício dos amigos tinha sido inútil... E mais isto... E mais aquilo... O incorrigível tapava a boca dos recalcitrantes:
Pára com esse sermão – dizia ele. Eu o que não quis foi explorar vocês. O leite em Caxias é caríssimo. Custa 800 réis o litro. E sabe quanto custa o litro de vinho? 400 réis. O que eu fiz foi trocar o leite pelo vinho, para não exigir sacrifícios maiores dos amigos.
Esse poeta, que morreu aos trinta anos de idade, devastado pela tuberculose, tinha graça, ternura, finura e emoção. Um dos seus epigramas, destinado a uma rapariga feia, diz assim:
Ida foi vista despida.
Pelo seu primo Fernando
Bem feito! murmura Ida –
Quem manda andar espiando?
LEITURAS E INFLUÊNCIAS
Esse grupo de jovens poetas se acha sob a influência de meia dúzia de mestres cujo belo gênio irradia da Europa... Vós e os vossos amigos mais chegados tendes os principais ídolos em um D’Annunzio, em um Maeterlinck, em um Eugênio de Castro. Vindo da Bahia alguns anos antes da época em que viestes do Rio Grande do Sul, um outro moço, um pouco mais maduro do que vós, dedicava o seu livro de estréia a esses três poetas, que proclamava “a Trindade Santíssima que eu adoro...” Esse jovem se chamava Afrânio Peixoto ou, como se assinava naquele tempo: Júlio Afrânio – e o livro em que punha essa dedicatória era a Rosa Mística, o espantoso ou espalhafatoso, símbolo trágico em cinco atos, que foi impresso a cinco cores em Leipzig. No drama atroz, e mais do que qualquer outro catastrófico, Júlio Afrânio colocava em cena um pai que, para não ver a filha corrompida pelas iniqüidades do mundo, naturalmente o conduzia depois à loucura. Mais tarde, amadurecido no espírito, Afrânio Peixoto pretendeu corrigir aquele desvario dos seus vinte anos. Tomou da Rosa Mística e a foi emendando linha a linha, quase palavra a palavra. Afinal desanimou desse esforço sem glória... E abaixo da linha em que parou o seu trabalho de emendador, escreveu estas palavras desiludidas, que assinou e datou, como o podeis ver em nossa biblioteca: “É Inútil. Só com o fogo.”
A esses três ídolos, fostes, de acordo com as amorosas leituras que fazíeis, acrescentando outros. No Brasil, creio que não encontrastes ninguém digno de vossa preferência: ainda não tínheis a dose necessária de amargura na alma para sentir Machado de Assis, e não conseguíeis aquele ardente incêndio que se chamou Raul Pompéia... Em Portugal encontrastes, ao lado de Eugênio de Castro, Fialho de Almeida, Antônio Nobre, Cesário Verde, e Sobretudo Eça de Queirós. Mas foi na França – ou, melhor, foi no idioma francês que encontrastes os vossos mais queridos mestres, na figura de um Verlaine, na de um Sarmain, na de um Flaubert, na de um Anatole France, na de um Rodenbach, na de um Maeterlinck, na de um Jules Laforgue, na de um Jean Dolent.
Os dois últimos são, ao que posso crer, os vossos autores mais diletos, cuja graça, cuja melancolia, cuja ironia mais fundamente se afinam com a vossa graça, a vossa melancolia e a vossa ironia. São, pelo menos, os nomes que encontro mais vezes citados em vossas páginas.
De todos, acredito que o predileto dos prediletos seja Jean Dolent – traço que só por si é suficiente para indicar a extrema independência de vosso critério de julgador literário. Aposto que a maior parte dos vossos leitores se perguntam, quando lêem uma de vossas passagens em que aparece o nome daquele escritor: Mas quem é Jean Dolent? Que autor, poeta ou prosador, será esse? E terão motivo para assim se interrogar... Trata-se, como eu próprio tive ocasião de verificar, de um autor inteiramente esquecido de biógrafos, de críticos e de historiadores literários. Seu nome não figura nos compêndios oficiais da Literatura francesa, pelo menos nos quatro ou cinco que tive ocasião de consultar. E não aparece sequer nas duas linhas de um modesto verbete do Larousse! Entretanto, vós o amais enternecidamente, e o reledes tanto! Possuís, preciosamente encadernados, três livros dele – Amoureux d’Art, Art des Femmes e Les Monstres. E não acabais de catar-lhe as opiniões ou os conceitos, as frases e as meditações, nossa ostentação de citações, que é a maior demonstração de um grande amor.
É ele, com efeito, um dos vossos amigos mais queridos: um daqueles raríssimos! – que levais convosco para longe da cidade... E quanta coisa ele vos ensinou! Ensinou-vos a impossibilidade da certeza – ou segundo as vossas palavras, que “a certeza é uma ilusão interina...” Ensinou-vos a não julgar... Ensinou-vos também esta verdade vaga, porém amorosa e divina: que só as mãos que beijamos são brancas. E foi ele também quem vos fez compreender esta coisa deliciosa: o silêncio que conduzis convosco.
Se é necessário reduzir a umas linhas frias e exatas uma figura tão longínqua e tão poética – eu esclarecerei as vossas inúmeras admiradoras, Sr. Álvaro Moreyra, dizendo-lhes que aquele escritor que vos comunica tanta ternura e tão alta Poesia era com efeito antes um erudito do que um poeta. Pertenceu ele, sem dúvida ao movimento simbolista francês, e foi um dos grandes amigos de Eugène Carrière, o pintor suave e enevoado que aparece em tantos versos do jovens brasileiros daquele momento. Todo o Jean Dolent se acha condensado, ao que posso sentir, em certa resposta que ele deu a um inquiridor (ou inquisidor) literário, desses que de vez em quando inventam uma relação de perguntas monstruosas destinadas a pôr a alma da gente a nu. Levadas a Jean Dolent as tais perguntas desse inquisidor, ele se limitou a dar como toda resposta esta síntese de sua imensa melancolia: “Viver sem ruído consola de viver sem glória.”
VIAGEM À EUROPA
A essas várias influências, fostes juntando outras e outras – como em primeiro lugar, a daquela viagem que fizestes à Europa em 1913. A Europa – é a maneira de dizer. O que fostes ver foi Paris, o Paris em que residiam tantos dos poetas que mais amáveis, na vida e na tradição das leituras... E depois de Paris, Bruges, a cidade do sonho, a cidade por excelência da Poesia, a morta Bruges que vivia no vosso coração, vinda do coração de Rodenbach...
Antes de receber o grande deslumbramento de Paris, aportastes a Portugal, a terra daquele vosso avô republicano e irreverente, com o qual tínheis tão fundas afinidades. Data desse remoto dia a vossa amizade com João de Barros. Juntamente com esse poeta, que vos fora receber a bordo, fizestes de carro longo passeio através de Lisboa. Ao findar a excursão, tivestes o gesto de pagar ao cocheiro. João de Barros não vos permitiu a liberalidade... Houve então um pequeno debate, cada um pretendendo para si o privilégio de ser o dono da despesa. Na dificuldade, o poeta português e o poeta brasileiro deliberaram entregar a solução do caso ao próprio Portugal. Iniciastes o torneio:
Portugal de meus avós!
Portugal de João de Barros!
Dize tu qual é de nós
Que deve pagar os carros!
João de Barros respondeu com esta quadra:
– Portugal fez-se de mudo
Portugal não respondeu.
– Sou eu cá quem paga tudo!
Quem paga tudo sou eu!
Foi evidentemente ele o vitorioso. Coube-lhe o doce prazer de pagar a despesa do passeio.
De Portugal atingistes a França, tendo como companheiros Felipe de Oliveira, Rodrigo Octavio Filho e Araújo Jorge, este que mais tarde se tornou uma das figuras mais brilhantes da nossa diplomacia. Foram os três escritores – Araújo Jorge era, já àquele tempo, um estudioso ensaísta dos austeros temas literários, um biógrafo ou biólogo de Jesus, quase um teólogo... foram os três hospedar-se no Quartier Latin. Sentiam-se perfeitamente senhores da grande cidade – Como se fossem personagens de Stendhal ou de Balzac. E foi então – tomava alguma coisa, champanhe ou absinto, na Taverne du Pantheon – foi então que Araújo Jorge propôs:
– Ecoutez mes amis! Dorénavant, nous allons parler seulement français, parce que, si nous parlons portugais, tout le monde va voir que nous sommes des étrangers et nous explorerons.
Felipe não ficou de acordo com a adorável fraude:
– Não, senhor. É melhor continuarmos a falar português, porque assim eles poderão pensar que nós somos franceses...
E então consumais os vossos idílios com as ruas e as praças de Paris, os idílios em que já vivíeis tão fundamente engolfado da infinita distância... E é então que realizais outros divinos sonhos – o de ir ver e amar Florença, o de ir ver e amar Bruges...
TRABALHOS DO POETA
Éreis a esse tempo, um poeta de puras e suavíssimas efusões como o comprovam os vossos livros daquele momento – A Legenda da Luz e da Vida, de 1911, e A Lenda das Rosas, de 1916.
Nesses dois livros vos encontramos em pleno luar simbolista. O mundo para vós é, nesses versos, o Outono é o crepúsculo, e a Violeta, é o Silêncio, é a Música em surdina, é o dobre de um sino que fosse bem plangente... É, como o dizeis, a saudade da luz... E a saudade da luz anda no espaço e eleva, cheia de mágoa, o seu perfil dentro da treva...
Mas já, aqui e ali, se vão acentuando, em vossa Poesia, sinais que revelam uma personalidade que se distancia do indistinto do grupo. É do segundo desses livros “A Pobre Cega”, momento que considero dos mais felizes em vossa poesia de todos os tempos:
– Pobre cega, por que choram assim tanto esses teus olhos?
– Não, os meus olhos não choram.
São as lágrimas que choram
Com saudades dos meus olhos.
É só mais tarde, porém, que, ao que posso sentir, ides conquistar a inteira posse de vossa personalidade de poeta. E isso, paradoxalmente, quando, deixando de lado o verso formal, tomardes o caminho do prosador. É aí que, em seu entender, tendes o mais belo do vosso território lírico – de tal maneira que há, depois que escreveis e que publicais os vossos livros, há alguma coisa que é vossa, alguma coisa que unicamente vos pertence, e que, quando a ouvimos, já sabemos de onde é que vem... É aí que tendes essa mistura estranha de emoção e de zombaria, de ternura e de malícia, de graça risonha e de lágrima amarga... É aí que vos mostrais o parente de Heine – um parente remoto, mas que mantém tantas afinidades com o velho poeta dos Reisebilder. Peço-os licença, meu ilustre confrade, para, no acervo de vossa numerosa obra, ir recolhendo, aqui e ali, uma ou outra de vossas produções...
ASPIRAÇÃO
– Papai, se eu te pedisse uma nuvem, tu me dava?
– Dava....
– E o sol?
– Dava...
– Não vê!...
– Dava, sim..
– E aquela árvore, lá em cima do morro?
– Dava...
– E todos os vapores que andam no mar?
– Dava...
– Ah!
– Que é?
– Eu só queria um tostão pra comprá um pirulito...
PRETO VELHO
– Pai Adão, conta uma história do tempo da escravidão.
– Pai Adão olha com os olhos tristes os netos de Sinhô Moço.
– Pai Adão, conta uma história do tempo da escravidão.
– Pai Adão baixa a cabeça.
– Não conta não.
ENCONTRO
– Sinhô Moço já morreu.
Quando o homem disse que se chamava Jesus, todos desandaram a rir.
Só Madalena, no extremo da mesa, ficou séria e cravou nele os grandes olhos espantados.
O banquete chegara ao fim.
Tinha sido idéia de um doutor qualquer, revelarem os convidados os nomes próprios.
Quase ninguém se conhecia ali e os vinhos instigavam intimidades.
Depois o baile tomou conta daquela gente alegre.
Até de manhã, jazz-bands puseram os corpos unidos em movimento.
Jesus não dançou.
Madalena também não.
Jesus foi para o terraço, ouvir as ondas e fumar cigarros.
Madalena quedou-se, no vão de uma porta, para não perdê-lo de vista, mas sem coragem de aproximar-se.
Às quatro horas, Jesus caminhou para o vestiário.
Madalena seguiu atrás dos passos dele.
Ele pediu o chapéu e o sobretudo.
Ela pediu a capa cor de ouro e cor de morango...
Saíram.
Jesus ia entrar num automóvel.
Madalena correu e perguntou, com a última palidez na voz:
– Diga... diga... O senhor é Jesus mesmo?
– Sim, minha senhora. Jesus Maria de Vasconcelos, cirurgião dentista.
PUZZLE
– Podes formar uma estrela, uma casa, uma mulher...
Quanta coisa tu podes formular com esses pedacinhos coloridos.
Mas, não tens paciência.
Queres acertar depressa. Misturas tudo. Erras. Erras. Erras...
Devagar, menino. Imagina quando fores grande, se fizeres o mesmo
com as horas da tua vida.
Foi assim que eu comecei...
HOMEM CALADO
Ele tinha um ar de papagaio tristonho.
Andava sempre de fraque.
Não falava.
Pensava.
Pensava.
Um dia, afinal, deu um suspiro e disse:
– Depois que a gente se casa, é que vê como as outras mulheres são interessantes.
HISTÓRIA TÃO PEQUENA
Naquela manhã de inverno um floco de neve e um cabelo branco caíram juntos na terra.
O cabelo branco perguntou:
– De onde vieste?
– Do céu. E tu?
– Da cabeça de uma mulher bonita.
O floco de neve curvou-se:
– Passa na frente.
Não é linha esta história tão pequena?
OFÍCIO DE NIGROMANTE
Que singular feitiçaria, meu caro confrade, existe nesse ofício misterioso, que é vosso ofício de escritor! Como às vezes um simples vocábulo – um verbo, um nome, uma partícula, mil vezes já empregada por mil escritores – nos parece de repente carregado de sortilégios estranhos, de uma nova significação que diríamos vinda de Deus ou do demônio!
Não seria preciso aprofundar muito a nossa meditação para demonstrar o que tanto dizer. Os exemplos estão à mão, e são numerosíssimos. Darvos-ei aqui três. O primeiro será tirado a Castro Alves. É aquele verso vago e quase sem sentido, que sempre nos penetra de emoção e de tristeza:
Vem, formosa mulher, camélia pálida,
Que banharam de pranto as alvoradas.
O segundo é tirado a Cruz e Sousa – e é aquele final de soneto em que o poeta se pergunta se as estrelas não serão os ais perdidos das primitivas legiões humanas.
O terceiro será um pequeno trecho em prosa: estas simples duas linhas de Graça Aranha:
“...as mulheres, por mais inocentes que sejam, são antigas porque são as mães.”
Vedes aí três adjetivos – pálida, perdidos, antigas – que nada têm de raro ou de novo. São antes palavras das mais corriqueiras, das mais gastas do idioma. Usamo-las, todos nós, em nossas conversas de todos os dias. Mas já vem um feiticeiro de vossa família – um daqueles em que o demônio e o anjo se associam para formar aquilo que chamamos de poeta, e eis que dá nascimento a essas maravilhas de emoção e de novidade!
Qualquer um dos três exemplos que citei pode dizer-nos muito sobre essa misteriosa coisa que é a força da palavra. Que poder imponderável e impreciso, que é esse! Mas também que poder poderosíssimo!
Quando Castro Alves se dirige à mulher que ama, comparando-a à camélia pálida, introduz em nosso espírito uma série de idéias infinitas. Pela sugestão do substantivo camélia, sentimos que acorrem ao nosso espírito as idéias da fragilidade e da pureza. Pela sugestão do adjetivo pálida, sucedem-se nele as idéias do efêmero, do precário, do vão, do triste, do tão próximo ao fim e à morte, que há naquela flor e naquela mulher... E quando essas imagens, já de si tão melancólicas, são completadas pela imprecisão nevoenta do verso que segue – que banharam de pranto as alvoradas – a nossa imaginação se abre em perspectivas novas, de emoção, e quase que de saudade...
Idêntico sortilégio banha o verso que citei de Cruz e Sousa. “As estrelas são os ais perdidos da humanidade primitiva...” Como esse pensamento é carregado de sugestões indecisas e longínquas, como ele nos arrasta a imaginação aos confins das coisas, como ele é cheio de infinito... De um lado, faz-nos ver os primeiros tempos da Terra, quando, no planeta mal formado, se arrastavam as primeiras levas dos homens ainda afogados na amarga animalidade: do outro lado, arrebata-nos aos mais distantes segredos do céu, lá onde vivem e brilham, veladas não sabemos em que invioláveis nuvens, as últimas estrelas.
Uma carga de emoção semelhante encontramos na frase que citei de Graça Aranha. Qualquer um de nós poderia dizer que uma pessoa do sexo feminino é antiga, e isso não teria maior significação. No texto do prosador cheio de poesia o adjetivo surge carregado de uma comoção que eu não sou capaz de definir. Sei, porém que é uma comoção quase dolorosa, que nos leva o espírito à imagem de nossa mãe, e através dela, à imagem de nossas remotas avós, à imagem de todas as mães e de todas as avós que têm existido em todos os tempos, na sucessão desses sombrios dias sem fim que formam a História do homem na terra.
Será assim mesmo, ou estarei, pelo meu sonhando coisas que só minha própria alma? [sic]
UM SEMEADOR DE POESIA
Dai-nos tão raro, acabados modelos de um sortilégio semelhante a esses que acabo de procurar definir. Vossos livros estão aí, cheios dessa mesma valorização de um vocábulo. Creio que era a isso que Unamuno chamava, numa feliz expressão, a “santidade da palavra”. Era esse encantador e varonil espanhol, era esse D. Quixote dos nossos dias quem fazia notar o prodígio em que esse mostrava perito Valle Inclán: o prodígio de unir pela primeira vez duas palavras que antes nunca se houvessem encontrado juntas.
Seria fácil anotar exemplos dessa mesma novidade de frases e de idéias, através de vossa obra. Contento-me com dois exemplos, tirados à mesma página do mais comovido dos vossos livros. No primeiro desses dois exemplos, narrais a despedida que, ao partir para a aventura do Rio de Janeiro, tivestes com vossa mãe. E como o dizeis? Com estas poucas palavras – que me parecem tão novas, cheias, como o são, de uma ternura infinita: “Depois (eu já estava homem...) beijei o meu adeus na criatura que me dera ao mundo, e vim para o mundo.” No outro exemplo, tendes uma referência às ruas adormecidas em que adorais vagar à noite, sem destino. E como expressais esse sentimento? Dizendo que as ruas que assim percorreis estão cheias de céu. –Este beijar um adeus em uma criatura muito querida, esse ver cheias de céu as ruas em que passais sem destino à noite – não é isso descobrir para velhas coisas que todos nós conhecemos uma expressão nova capitosa e fresca como o orvalho da madrugada?
E agora, pelo ministério de vossa adjetivação graciosa, pelo mistério de vossas imagens tão cheias de emoção, eis-nos transportados à pura região da Poesia.
Creio que é essa a vossa definição verdadeira, Sr. Álvaro Moreyra: sois, em essência e em tudo, um poeta. Podereis fazer quantos livros de prosa quiserdes: o que neles haveis de deixar é unicamente poesia. Podeis aplicar a vós mesmo a lúcida fórmula que destes um dia para explicar aquele raro clarão de nossas Letras, que se chamou João Ribeiro. Eis a vossa fórmula:
Disseram que era gramático, por haver escrito gramáticas. Disseram que era historiador, por haver escrito histórias. Disseram que era crítico, por haver escrito críticas. Escreveu poemas e não disseram que era poeta. Pois poeta, só poeta, era. Um grande poeta que escreveu gramáticas, histórias, críticas, acreditando apenas na Poesia.
Estive anotando, aqui e ali, nos vossos últimos livros – nesses livros de contextura tão complexa, que fogem a qualquer classificação precisa, conjuntos, que são, de Poesia, de meditação filosófica de aforismas, de recordações da infância e da mocidade, de fantasias de crônicas e de sonhos... – estive anotando, aqui, e ali, uns rasgos mais nítidos dessa Poesia que em vós é tudo, ou sobredoira tudo. Permiti que, para delícia dos que se acham nessa sala, eu diga alguns desses pequenos e luminosos trechos.
“Para fazer um céu basta uma estrela...”
“Saudade de ser embalado. Insônia é isso.”
“Sereno... orvalho... relento... Os mortos choram por nós nas noites
claras.”
“A eternidade é a vida de cada um. Na vida de cada um quantas eternidades!”
“O meu maior prazer é mudar de opinião. Com esse prazer, vou evitando a velhice.”
“Só nos jardins há amores perfeitos. Só nos jardins os cravos não são para crucificar ou para ferrar. E as rosas, que sinceridade!”
“Eu tenho pena é do meu anjo da guarda. Coitado! Teve que vir comigo...”
“As minhas rosas se esqueceram de que tinham espinhos. As minhas abelhas se esqueceram de que tinham ferrões.”
“Não é a Lua que importa.... É o luar...”
“As lembranças são estrelas. A memória é uma noite bonita. Não faz mal que essas estrelas tenham morrido há muitos anos. A luz delas ainda me acaricia.”
“O perfume da rosa volta em todas as rosas.”
“... A hora dos sinos, quando cada um de nós é um pouco de Deus em sombra errante...”
“Felicidade... És do mundo e do céu. Tens um gosto de adeus...”
NA IMPRENSA DO RIO DE JANEIRO
Foi ao regressar daquela deleitosa orgia de Arte e de Literatura, em que se constituiu a vossa viagem à Europa, que iniciastes a atividade jornalística no Rio de Janeiro. Era o belo momento dos começos de Fon-Fon, a revista fundada por Gonzaga Duque, Lima Campos e Mário Pederneiras. A essas figuras da direção juntavam-se outras – Felipe de Oliveira e Homero Prates, os dois poetas gaúchos que tinham vindo para a capital da República. Também por aquele tempo: Olegário Mariano e Hermes Fontes; Ronald de Carvalho, Rodrigo Octavio Filho e Caio de Melo Franco. Tal era o grupo fulgurante daqueles poetas e daqueles prosadores. Sois um pouco duro com a tão simpática geração de Fon-Fon, pois é assim que a vedes:
A geração de Fon-Fon era tida por simbolista. Na verdade era maníaca: se os dois adjetivos não qualificam bem o mesmo substantivo, a diferença deve ser essa. Cada um dos iniciadores e dos incorporados, sem nenhuma combinação, adorava o Outono, o Poente, o Incenso. Polaire, Napierkovska, Monna Delza. Os pierrots de Willette, A Boêmia de Puccini, os Noturnos de Chopin, Bruges com todos os canais, Paris com todas as canções... Geração estrangeira. Estávamos exilados no Brasil. Achamos tudo ruim aqui. Vivíamos de cor...
Mas – pergunto-vos eu – quem é que no Brasil daquele momento não vivia em imaginação fora daqui, nas delícias da França, da Itália ou da Áustria –, nas delícias daquele paraíso europeu, que parecendo ter por si a eternidade, ia dali a pouco ser destruído pelas bombas aquele demônio louco que se chamou Guilherme II?
Dali, de Fon-Fon, saístes para ir dirigir a Seleta. E é a recordação desses dias que vos provoca uma confidência como esta:
Foi depois do aparecimento dessa revista na mesma empresa, pelo aumento do meu trabalho sem resultado para mim, e pelo aumento do capital dos patrões com resultado para eles, que eu descobri a minha vocação de pobre. Daí em diante tenho me consolado em ser uma ponte por onde o dinheiro passa, suspira e lá se vai, Não volta mais. Um trânsito, afinal de contas, divertido.
Embora fosse assim já declarada a vossa vocação de pobre, um dia cançastes desse trabalhar insano para aqueles patrões...
Aceitaste então o oferecimento de trabalho que vos era feito pela firma Pimenta de Melo e lá assentastes os vossos arraiais. Era, ao tempo, uma das empresas de publicidade mais poderosas do País. Abrangia um conjunto de revistas, no qual se destacavam a Ilustração Brasileira, o Para Todos, o Cine-Arte, O Malho, o Tico-Tico, a Leitura para Todos.
Sob a vossa direção literária e festiva estavam as três primeiras. Tínheis como companheiro, na qualidade de diretor artístico das três revistas, o grande ilustrador que foi J. Carlos. Na redação contáveis com três trabalhadores fabulosos – Adalberto Matos, Luís Peixoto e Onestaldo de Pennafort, aquele fugitivo e raro poeta, cuja ausência das Cadeiras azuis de nossa Casa mais de uma vez tenho daqui mesmo lastimado. Na colaboração dessas revistas figuravam brilhantes nomes, alguns dos quais, como os de Olegário Mariano, Adelmar Tavares, Afonso de Taunay, Peregrino Júnior e Osvaldo Orico, atingiram a consagração acadêmica. Outros poderiam ter pertencido à relação das nossas Cadeiras – como o de Lima Barreto, o de Homero Prates, o de Angione Costa: outros poderão com plena justiça a essas relações pertencer algum dia – como o de um Raul Bopp, o de um Paulo Filho, o de um Carlos Drummond de Andrade... Havia também colaboradores portugueses, como Eduardo Vitorino e Antônio Ferro.
Trabalhador desses que não conhecem o cansaço, ali, à frente daquelas revistas, tudo fazíeis, líeis a todas as colunas a todas as tarefas, desde a crônica leve e poética até ao mister miúdo do paginador. Era a vós que cabia, com o auxílio da tesoura e da goma, organizar o espelho de cada página. E com tanta graça, com tanto bom humor, dáveis cumprimento a esses trabalhos, que éreis por todos adorado. Ainda agora ouço de um dos vossos companheiros daqueles dias o depoimento relativo à estima que todos ali, desde os diretores da Empresa até os últimos operários, vos dedicavam. Quando comecei a conhecer de perto a imprensa do Rio de Janeiro, naqueles idos da década de 1920, o clarão do vosso nome se encontrava em pleno zênite. Éreis glorioso pelo talento com que sabíeis exercer a Arte literária. E posso dar o testemunho deque cercava o vosso nome o prestígio raro da generosidade, da bondade verdadeira, do carinhoso acolhimento para todos os estreantes. Se fui daqueles que não se beneficiaram com essas dádivas belíssimas do vosso coração e da vossa alma, aqui estão muitos, entre os vossos eleitores de agora, que agradeceram a Deus terem tido a oportunidade de pagar com um modesto voto a quem tão profundamente o merecia, o gesto de acolhimento e de proteção que receberam outrora...
O TEATRO DE BRINQUEDO
Foi em 1927, quando ia mais intensa a vossa atividade de jornalista, que conseguistes levar à realização o mais ardente dos vossos anelos de todos os tempos: a criação teatral. Nasceu então o Teatro de Brinquedo, o qual proclamais que ficou sendo a vossa única vaidade...
E tendes razão para essa vaidade. Foi aquela uma hora belíssima de vossa vida. Nós todos, os que tivemos ocasião de vos acompanhar naquele momento, jamais poderemos esquecer o grande ator que ali vimos viver com tão comovida atuação, aquele ator que se movia tão naturalmente, e que tinha, na sua facilidade, na sua segurança, no seu domínio da Arte cênica, alguma coisa de um De Sica, ou mesmo de um Chaplin, porém do Chaplin da última fase, depois que o grande ator se despiu da dor e do patético de Carlitos.
Ao vosso lado evocamos os companheiros e as companheiras, que tivestes a sorte de descobrir para aquele trabalho. Em primeiro lugar tornamos a ver Eugênia. E a vosso lado e ao lado de Eugênia, tornamos a ver tantos que convosco precisamente colaboraram – como os três da família Ferreira. Procópio, Aída e a jovenzinha que então se iniciava, essa deliciosa Bibi, e Marques Porto, e Joraci Camargo, e René de Castro e Luís Peixoto, e Machado Florence, e Frederico Barrete, e Atílio Milano, e Briolanja Sottomayor, e Alvarus, e Flávio de Andrade, e Sérgio da Rocha Miranda e Tinon de Melo.
A estréia do Teatro de Brinquedo se fez com a vossa peça “Adão, Eva e outros Membros da Família”, na qual representáveis o papel de Um – que devia ser o principal personagem, sendo aquele em cujo pensamento mas transparecia o pensamento íntimo e desencantado do autor.
Que queríeis provar naquela pequenina comédia? Acredito que nada. A Literatura que fazeis não é dessas que se pagam com o demonstrar nenhuma verdade. Queríeis ali apenas representar...
Está em uma de vossas páginas de As Amargas, uso uma confidência que acho preciosa, relativamente a essa vossa comédia.
Dizeis:
Eu queria um teatro que fizesse sorrir, mas que fizesse pensar. Um teatro com reticências. O último ato não seria o último ato... Justamente eu queria o Teatro de Brinquedo, que tinha uma legenda de Goethe: “A humanidade divide-se em duas espécies: a dos bonecos que representam um papel aprendido, e a dos naturais, espécie menos numerosa, de entes que vivem e morrem como Deus os criou...” Um teatro de bonecos? Sim. Mas, supondo que nessa estação do século XX, os bonecos de tal maneira aperfeiçoados dessem a sensação de gente de carne, osso, alma, espírito... Por que de brinquedo? Porque os cenários imitavam caixa de brinquedos, simples, infantis. Um teatro que não contrariou aquela cantiga que resume todas as histórias, todas as filosofias, todos os pontos-de-vista:
Les petites marionettes
Font, font, font,
Trois petits tours
Et puis s’en vont.
Os vossos personagens, ali, são, tanto quanto possível, simbólicos – simbólicos de atitudes ou de posições na vida. E a peça resulta, assim, numa espécie de síntese da própria existência humana.
A representação de Adão, Eva e reis não obrigaria o desgraçado!
Representada a peça, logo todos nós, simples adoradores desse universo maravilhoso e único que é o teatro, tivemos a impressão de que havia surgido alguma coisa de nova em nossa Arte cênica. Essa foi também a impressão da crítica especializada. Sem demora, um crítico teatral dos mais capazes que tínhamos então, Alberto de Queirós, chamou a atenção de todo o Brasil para esse alvissareiro fato. E fez mais: mostrou a semelhança que havia, quase que a identidade, entre a vossa peça e a peça de Marcel Pagnol – “Topaze” –, que naquele momento constituía um dos maiores êxitos de Paris e do mundo. Queirós, porém, não se esquecia de fazer esse reparo: que “Adão, Eva e outros Membros da Família” tinha sido escrita em 1925 e representada pela primeira vez em 1927, enquanto que “Topaze” só subira à cena em 1928.
Tomando conhecimento dessa informação do crítico, escrevestes a Alberto de Queirós uma carta na qual aceitais a observação da semelhança de vossa peça com a peça de Marcel Pagnol. E é ali que tendes uma queixa – coisa rara em vossa obra, sempre de tanta resignação e de tanta paciência com todas as iniqüidades que vos cercam – uma queixa, amargurada e justa, em meio à qual dizeis:
Num páreo assim, a desvantagem deve ser minha: escritor brasileiro – escritor clandestino. Também não me passa pela cabeça que Pagnol me imitasse! “Adão, Eva e outros Membros da Família” apareceram aos pedaços! em “Para Todos”... de 1925 e 1928 e completas na Ilustração Brasileira, números de março e abril de 1928. Pagnol não me poderia ter lido num idioma que ninguém lê... Coincidência apenas. Eu descobri aqui, em 1925, um jeito de fazer teatro. Não me levaram a sério. Marcel Pagnol descobriu em Paris, o mesmo jeito, três anos depois. Todo o mundo achou estupendo.
Coincidência, da qual estou gostando muito. Principalmente porque “Topaze”, neste momento, é representado em vinte teatros, até no Lírico do Rio de Janeiro, e “Adão, Eva e outros Membros da Família” dormem nas saudades do Teatro de Brinquedo.
Restar-me-ia, aqui, encarecer a contribuição que, com a vossa iniciativa daqueles dias temerários do Teatro de Brinquedo, destes para a renovação maravilhosa que nos últimos vinte anos tem ocorrido no teatro nacional. Essa renovação teve, decerto, várias causas... e entre elas convém enumerar pelo menos algumas – a proteção e as garantias trazidas pela legislação de Getúlio Vargas; as beneméritas medidas postas em prática por esse grande Ministro da Cultura que foi Gustavo Capanema: o desenvolvimento da SBAT; a criação em São Paulo, do Teatro Brasileiro de Comédia, fato que auspiciou a vinda para o Brasil de talentosos diretores europeus: a atuação no Rio de Janeiro de outros mestres de cena mundial: a lição do Teatro de Amadores de Pernambuco: as iniciativas incansáveis de Paschoal Carlos Magno.
Devo, aqui fazer alusão, se não desejo ser injusto, a outras belas realidades da nossa vida teatral, mesmo nos tempos indecisos que se situam entre o falecimento de Artur Azevedo e alvorecer do Teatro de Brinquedo – isto é, naquele triste período em que todos aqui vivíamos clamando, a uma voz, que a Arte teatral tinha morrido no Brasil... Lembrarei, em primeiro lugar, aquela paixão ardente que pelo teatro brasileiro jamais deixou de sentir fossem quais fossem os tempos... paixão que fazia com que os moços da nossa geração se consumissem de admiração e de fervor aos pés de uma Germaine Dermoz ou de uma Marie Thérèse Pierat, tal como fazia com que os adolescentes da geração de nossos pais morressem de amor aos pés de uma Sarah Bernhart, de uma Eleonora Duse ou de uma Clara Della Guardia, tal como fazia com que os nossos avós, os jovens do tempo de Machado de Assis, se fanassem de adoração aos pés de uma Charton, de uma La Grua, de uma Adelaide Ristori... Lembrarei os nomes de tantos sonhadores impenitentes – tantos autores e tantos atores que, mesmo naqueles dias sem brilho, jamais deixaram de lutar em prol do bom teatro em nosso País – um Roberto Gomes, um Paulo Barreto, um Renato Viana, um Benjamin Lima, um Cláudio de Sousa, um Viriato Correia, um Oduvaldo Viana, um Joraci Camargo, uma Apolônia, um Fróis, um Mesquitinha, um Jaime Costa, uma Dulcina, uma Alda Garrido... e eu estou certo de que nessa relação esqueço os nomes de muitos, muitos outros, que representam momentos fulgurantes nessa esplêndida campanha... Lembrarei o papel da Escola Dramática, em que resplandeciam nomes de mestres como Coelho Neto, João Ribeiro e Alberto de Oliveira... Lembrarei igualmente – agora no campo das coisas mais práticas – o denodo com que, na década de 1920, o nosso heróico Viriato Correia se lançou à aventura do Trianon, com, inclusive, a revelação, para nós tão cara, do único trabalho para a cena, que nos ofereceu Ribeiro Couto...
É no meio desses momentos que “Adão, Eva e outros Membros da Família” constituiu um êxito em verdade raro.
As palavras dos vários personagens que criáveis viviam com uma vida curiosa – pois é uma evidência que aquela peça é antes de realidade interior. Peço licença para mostrar, nas falas de um outro daqueles personagens, ou em um ou outro episódio alguma coisa que mais de perto nos comova ou nos faça sorrir.
Eis aqui um pensamento do Escritor – um pensamento em que há como que uma síntese de um estado de espírito sempre vosso:
“O estardalhaço da vida!... Para mim, ela é o silêncio sem termo, a imensa solidão, A vida é um jardim fechado...”
Eis outro pensamento, em que Um externa um paradoxo bem à la Álvaro Moreyra:
“O tempo é o ganha-pão dos historiadores, dos filósofos e dos relojoeiros.”
Eis agora um retrato que vem de uma de vossas páginas, porém que nos é muito familiar. Fala Um:
É juiz. Irrepreensível, com uma simpatia intransigente, do chapéu às polainas, ele desliza pela vida, afável, civil, perfeito. Sabe na ponta da língua as frases de maior consumo da sociedade. Apesar de pertencer à Academia, há de deixar a terra mortal como qualquer um de nós. Nesse dia, chegando ao Reino dos Céus, quando o apresentarem a Deus, dirá com certeza: “Deus! Ah! muito prazer, em conhecê-lo pessoalmente, já o conhecia há muito de nome”.
Para encerrar este pequeno excurso através de vossa peça, transcreverei uma passagem em que podemos bem ver como se mudararn, de 1927 para cá, as condições de vida no País.
Moça – Quase que se foi. (Refere-se a um empresário que tinha prometido aparecer na festa em que ocorre o diálogo e acabara não vindo). Vinte e seis dias entre a vida e a morte. Um batalhão de médicos, balões de oxigênio, injeções. Sabem em quanto lhe ficou essa brincadeira?
Velha – Imagino!
Moça – Seis contos
Que acumula – Puxa!
Um – Pneumonia dupla?
Moça – simples.
Um – É o caso de dar-lhe os parabéns.
Mulher – Sim... Porque, se a pneumonia fosse dupla, não fazia a festa com menos de doze contos.
Seis contos de réis... Doze contos de réis... Visão idílica de um Brasil para sempre perdido... Hoje, uma enfermidade dessas, tratada em um dos grandes hospitais da cidade, a que despesas de centenas de contos de rútilos, de entusiasmo e de fé, que temos de colocar a vossa iniciativa no Teatro de Brinquedo. Foi com efeito, da conjunção de todos esses elementos que surgiu a grande hora que o teatro brasileiro está vivendo hoje, a hora prodigiosa em que vemos a nossa cena ilustrada pela figura de uma Tônia Carreiro, de uma Maria Della Costa, de uma Maria Clara Machado, de uma Cleyde Yáconis, e de uma Cacilda Becker, esse ímpeto fremente de talento e de paixão... a grande hora em que a vemos palpitar, em nossas províncias, em realidades maravilhosas, como aquelas a que ainda este ano, vindas do Norte, do Sul, e do Centro tivestes ocasião de assistir no congresso teatral de Santos.
Desse congresso trouxestes a alma vibrando de entusiasmo, na convicção em que estais, e em que estamos nós todos, de que o Teatro brasileiro atingiu afinal a sua fase de maturidade, e é hoje alguma coisa do mais alto nível, digno de ser posto ao lado dos melhores teatros do mundo.
AMBIENTE DOMÉSTICO
Bem sei que não é habitual, nos discursos com que saudamos os escritores que aqui chegam, a evocação do ambiente doméstico ou familiar dos novos companheiros. No vosso caso, Sr. Álvaro Moreyra, uma omissão dessas seria como que uma injustiça. Tão rara, tão diferente de tudo, foi a construção que nesse terreno também fizestes.
Permiti, pois, que eu convosco recorde a casa da Rua Xavier da Silveira, n.º 99, na qual decorreu grande parte de vossa vida, junto àquela que foi vossa companheira durante 34 anos. Ali, no lar que construístes com Eugênia, cresceram ao vosso lado, aprendendo a lição de vossa resignada conformação com as coisas, seis dos oito filhos que o destino vos deu, pois os outros dois vos abandonaram crianças. É inspirada por essa meninada inquieta, cheia de infinita Poesia que Deus só concede aos inocentes, a parte de vossa obra escrita naquela fase – esses deliciosos livros em que o endereço é a Humanidade em qualquer idade em que esteja, porém em que o motivo ou o ponto de partida é a infância – esses livros que porejam ternura e carinho e que se chamam Circo, Boneca Vestida de Arlequim, Caixinha dos Três Segredos e também O Outro Lado da Vida, Cocaína, A Cidade-Mulher, Tempo Perdido...
Aquela casa foi como um convento da Porciúncula, no qual pusestes em ação o vosso franciscanismo. Tinha, em primeiro lugar, esta originalidade: era uma casa sem muros e sem portas, uma casa de todos. Basta dizer que as panelas nunca saíam do fogão e que a mesa nunca deixava de estar posta. Quem tinha fome ia ali, comer, quem tinha sede ia ali beber. Não precisava para isso nenhum título – a não ser o de estar informado de que existia aquele prodígio na cidade egoísta e fechada. Não raro sentado à mesa, a uma determinada hora, que uma vaga convenção das pessoas da família chamava hora do almoço ou hora do jantar, comendo com a sobriedade que vos garantiu sempre essa linha fina e elegante que tanto vos invejamos, víeis, defronte de vós ou ao vosso lado, sujeitos que, possuídos de uma fome de impingem, devoravam, devoravam, devoravam, febris, as vossas vitualhas. Quanta vez no curso dos dias, exercestes esse meigo papel de São Boemundo!
Em tais ocasiões, assombrado com a fome insaciável ou com a presença agressiva de um daqueles não-convidados de vossa casa, tivestes uma curiosidade natural. Quem é aquele sujeito? A pergunta corria discreta, em todos os que a podiam responder... E corria inutilmente! Ninguém sabia quem fosse o visitante de apetite insaciável ou de aspecto rebarbativo. Era alguém a quem alguém, amigo por sua vez de outro alguém, que, um dia, por casualidade, fora vosso hóspede de um almoço, aconselhara que, para matar a fome talvez de vários dias, fosse procurar o socorro de vossa mesa...
Acontecia freqüentemente que, como nos versos de Castro Alves, a corça e o tigre iam encontrar-se ali. Certa noite vos aparecera, solicitando o vosso amparo, um pobre diabo que uma agitação política qualquer ameaçava com os terrores de uma enxovia. Oferecestes ao ameaçado uma hospedagem sem prazo. No dia seguinte, quando, pela manhã, o hóspede se sentou para o almoço, empalideceu e quase desmaiou, ao fixar os olhos em outro comensal que descobriu na ponta da mesa. Vistes o vosso protegido abandonar o lugar em que se achava, e sair da sala, evidentemente espavorido. Fostes ao seu encontro, desejando esclarecer o mistério... Ele vos disse o que ocorria... E pudestes perceber então que aquele outro hóspede, o que comia na ponta da mesa, era exatamente o policial, que estava encarregado da perseguição ao fugitivo...
Um tal sistema de vida vos foi possível manter quando os tempos eram outros. As condiões da cidade e do País modificaram-se fabulosamente, de 1930 para cá. Eugênia morreu... Vossos filhos, com a idade e com o casamento, dispersaram-se... A casa da Rua Xavier da Silveira n.º 99 não existe mais, transformada que foi em um arranha-céu...
Hoje, a vossa existência tomou nova feição – hoje que no vosso reino impera nova rainha... Mas eu aposto que ainda agora, ao lado dessa doce protetora de todos os necessitados, que é Sila, as disposições de vossa alma são as mesmas do tempo de Eugênia... Continuais a ser o mesmo apoio, o mesmo dispensador de favores, o mesmo franciscano prático, que fostes nos dias de outrora. Dais tudo o que possuís dos modestos bens materiais que os destinos repartiram convosco, e, sobretudo, das riquezas da alma e do coração –, que estas em vós são infinitas, e desafiam as arcas de todos os Rothschilds do mundo.
E como a vida de hoje não permite mais a liberalidade do outro tempo – a panela sempre no fogão, a mesa sempre posta para o hóspede que chegasse – resolvestes
transferir a outro terreno o vosso caridoso acolhimento para todos. Tornastes o vosso gabinete, todo o vosso apartamento da Rua Francisco Sá, o paraíso de todos os burros. Haverá nisso algum malicioso simbolismo? Só a vossa alma, graciosamente secreta e enternecida, será capaz de responder que não...
IDÉIAS POLÍTICAS
Tratando-se de um homem como vós, meu caro confrade, – um homem que jamais teve medo de suas convicções –, um perfil como este que tento aqui traçar ficaria demasiado impreciso, senão incompleto, se deixasse de todo de lado o exame das idéias políticas.
Creio que inutilmente tentaríamos procurar essas idéias num ponto determinado de vosso exercício jornalístico. Homem de imprensa que se conserva em atividade – ora em jornal, ora em rádio – há mais de cinqüenta anos, jamais exercestes o jornalismo propriamente político, mesmo quando tivestes o cargo de diretor de algum órgão. O fenômeno – jornalismo – para vós é, e sempre foi, meramente literário. Eis como o expressais:
Os jornalistas são apenas as vozes que se escutam antes. Depois todas as vozes os repetem, murmurando ou gritando. Evangelistas da realidade. Os últimos poetas. Sem idade. Ficam sempre meninos. Contam tudo.
A casa deles não têm portas nem janelas. O sol entra, o vento passa, a gente vai e vem. Podia ser a torre de marfim. É o albergue dos pobres. Pobres que dão e não pedem.
Evidentemente esse é o retrato do jornalista Álvaro Moreyra – e o dele unicamente...
Para podermos penetrar na vossa verdadeira orientação política, para sabemos até onde se estendem as vossas convicções nesse terreno, teremos de ir rastejando, aqui e ali, através de centenas e centenas de páginas, esse ser flutuante e problemático que sois... Dei-me um pouco a esse divertido trabalho...
Em certa resposta que destes a um jornalista que vos ouvia no dia em que fizestes setenta anos, contastes alguma coisa a respeito de vossa alma. Encontro ali alguns traços que vos são característicos, e que têm muito interesse, quando tentamos o exame de vossas opiniões políticas. Entre eles ponho em destaque os seguintes: não levastes trote na Faculdade de Direito em que vos matriculastes, porque pudestes contar com a proteção de um veterano, que se chamava Getúlio Vargas... sois, para que todos o saibam, um homem de esquerda... já estivestes preso nove vezes... acreditais em Deus, e esperais modestamente um lugar no Purgatório... Creio que, em síntese, são essas as principais idéias que no terreno da Política – nacional, internacional e extraterrena – ali expendeis. Ora bem essas confidências já nos dizem muito acerca do indivíduo que sois...
Poderíamos agora prolongar um pouco mais o exame de vossas idéias políticas. Iríamos ver, por exemplo, a vossa simpatia constante por todos os inconformados da vida e da história – sentimento que expressais todas as vezes que tendes contato com um homem como Romain Rolland, que se sagrou tão heroicamente na luta pelo pensamento livre, como Anatole France, como Henri Barbusse, como Eça de Queirós ou como Garcia Lorca, iríamos descobrir, no Brasil, a vossa simpatia por um herói literário como Tiradentes ou por um homem de idéias sem temores, como Silva Jardim. Um dos brasileiros que talvez paradoxalmente mais merecem a vossa ternura é o vosso amigo de adolescência Getúlio Vargas. Para Rui Barbosa, a vossa simpatia é bem menor. E isso é natural, dado que sois esse homem todo medida, e que Rui é aquele escritor diluvial que todos conhecemos... Parece que na figura do grande baiano o que vos amedronta sobretudo é a eloqüência.
Orador inesgotável – dizeis, subia, descia, andava de lá para cá, de cá para lá e em volta, numa gravidade, numa severidade absolutamente fora das medidas nacionais. Claro que não se pode negar o valor desse homem formidável. O que se pode negar é que se saiba o que foi que ele disse.
No terreno internacional, também poderíamos acompanhar um pouco o ritmo de vossas opiniões. Iríamos ver como, em primeiro lugar, amais a França – para a qual, quando a vedes em luta com a Alemanha, tendes esta bela imagem: ela é “a Branca de Neve que a madastra pensou que tinha matado”. Iríamos ver como relativamente a quase todos os grandes países da Europa, que serviram de fonte a cultura brasileira, a vossa maneira de julgar é dupla – adorando nelas aquilo que deve ser adorado, detestando aquilo que deve ser detestado... Amais a Espanha de D. Quixote e a Espanha de Santa Teresa de Jesus, a Espanha em que Garcia Lorca sentiu no coração um vago tremor de estrelas... Mas abominais a Espanha de Franco. Quereis a Itália de Eleonora Duse, mas fugis da Itália de Mussolini... Adorais a Alemanha de Wagner e a de Goethe, mas tendes horror à Alemanha dos chanceleres, dos guerreiros, dos imperadores e de Hitler...
Para um País, entretanto, creio que o vosso desdém, a vossa ironia, a vossa malícia não encontram tréguas – são os Estados Unidos. Já tínhamos, em nossa Literatura panfletária, um grande livro contra a grande Nação que se diz tão nossa amiga – tínhamos A Ilusão Americana, de Eduardo Prado, a obra destemida que Capistrano de Abreu chamou livro de um homem... Temos agora também o vosso disperso e risonho articulado... Eis dois pequenos trechos – três ou quatro frases apenas – desse articulado implacável: “Os norte-americanos em geral têm alergia pela inteligência. É um direito que ninguém lhes contesta.” – “Na América do Norte, liberdade é uma estátua.”
A CADEIRA DE LIBERDADE
A Cadeira para a qual a Academia vos elegeu, Sr. Álvaro Moreyra –perdão Sr. Álvaro Maria da Soledade Pinto da Fonseca Velhinho Rodrigues Moreyra da Silva, que tal é o vosso complicíssimo nome civil! – é, em verdade,uma das mais brilhantes da instituição. É, como tão bem o dissestes, a Cadeira simbólica da liberdade, pois nela recordamos os grandes nomes da Abolição. O patrono e o fundador são dois jornalistas destemidos, dois poetas que se transformaram em campeadores, dois corações que viveram para urna grande paixão, que por essa paixão sofreram e ainda na embriaguez dela morreram.
O Patrono Joaquim Serra, mal chegou a ver a vitória da causa pela qual tanto lutou pois morreu em outubro daquele mesmo ano de 1888. Era, segundo a tradição que deixou, um escritor genial, que nas páginas das folhas em que trabalhava se mostrava apto a tudo. Encontrei, num contemporâneo dele, a impressão assombrada de que Serra tinha qualquer coisa de demoníaco – tal a agilidade com que dentro de um jornal sabia mover-se em todas as colunas, desde a do mais leve e ágil noticiário até à dos artigos de fundo sisudos, circunspectos, desses que os nossos jornais usavam outrora e que não sei se usam ainda hoje – os tais artigos que pareciam vir vestidos de sobretudo negro, trazendo cartola na cabeça. Com essa virtuosidade risonha, com esse fácil saber, ele se constituíra a confiança e o esteio de muito jornalista em crise de falta de assunto.
O fundador José do Patrocínio, é aquele atleta lendário de tez de bronze e de alma de columba que, um pouco a exemplo de Luís Gama, certamente o maior dos negros brasileiros, saiu da humilhação de um pátio de senzala, para se tornar o redentor de todo um povo. Teve um grande papel na evolução literária do nosso País, e romancista sem rebuços, foi apontado por um dos nossos maiores crriticos do século passado e do século atual como o verdadeiro introdutor do Naturalismo em nossa terra. O prestígio dele é desses que crescem à proporção que os dias vão passando. E ainda agora vemos um crítico cheio de sensibilidade, cheio de isenção para o julgamento dos fatos literários, um crítico da independência e do ardor combativo de Nilo Bruzzi, demonstrar, com os mais sólidos argumentos a tese de que Patrocínio é o criador do romance nordestino no Brasil – a tese de que é do modelo dado pelo grande negro, nos seus Retirantes, que decorre toda essa extraordinária florescência de romances trágicos e sombrios que, vindos da região nordestina, dominam grande parte do horizonte da nossa novelística.
Segue-se um interregno – o de Mário de Alencar, o poeta medido, o prosador de ritmo clássico e tranqüilo, o homem timidez, o homem suavidade, o homem reticência, o homem que detestava o tumulto e fugia da ação. Ele é, isso, sem dúvida. Mas é bem mais do que isso: é o contista gracioso, o novelista sutil, o analista das almas, penetrante e erudito. Basta-nos ler qualquer uma de suas páginas – qualquer daqueles estudos em que ele, ainda em plena juventude, já se mostrava tão compreensivo para um mestre cheio de nuanças e dificuldades como Machado de Assis, ou uma de suas novelas mais características – a Surdina da Morte, ou, talvez melhor, A Tia Lulu, pequena história que poderia sem desdouro figurar nos Papéis avulsos – para tempos uma idéia do escritor de qualidades puríssimas que houve nele. Apoucaramno,parece duas sombras soberbas: a do gigante, que foi o seu pai, e a do semideus, que foi o seu grande amigo, o seu protetor e o seu padrinho. Mais tarde vieram, para ainda mais prejudicá-lo aos olhos do leitor comun, outras circunstâncias – em primeiro lugar o fato de haver ele vencido, na porta desta Casa aos trinta anos de idade, um veterano luminoso da nossa criação literária, aquele soberbo Domingos Olímpio, cujo brasão de glória se chama Luzia-Homem. Mas a verdade é que a vitória de Mário de Alencar, naquele momento, ao que posso sentir, foi de apenas um pseudônimo: atrás dela estava o fato verdadeiro, que era a animosidade de Rio Branco contra Domingos Olímpio, animosidade que vinha desde a jornada das Missões, nos Estados Unidos. E estava antes de tudo, no temperamento inconformado, vivaz, certamente irritadiço e irreverente, do poderoso romancista. Dele, Souza Correia traçava a Rio Branco um retrato como este.”... de certa idade, calvo, cearense – gaiteiro – jornalista consumado, supõe-se que sabe inglês. É muito inteligente, mas ruim. Nada deve confiar nele...” Rio Branco, pelo seu lado, o chama de trêfego, de despeitado, de célebre, e se compraz em recordar as circunstâncias em que ele fora demitido de fiscal das loterias por Murtinho. A má vontade prossegue recíproca, e se vai fazendo cada vez mais intolerante.Domingos Olímpio a comprova nos editoriais que escreve nos jornais em que trabalha, ou naqueles em que pode ter mesmo indiretamente alguma influência. – Era natural, sendo assim, que os amigos do Barão aqui dentro tudo fizessem, mesmo sem que houvesse algum gesto claro do grande homem, para evitar a presença de um adversário tão temível. Luís Viana, na excelente biografia do Barão do Rio Branco, que acaba de editar, deixa esse assunto muito bem indicado.
E afinal, depois de José do Patrocínio e de Mário de Alencar, vem Olegário Mariano, o poeta ardente, o que viveu sempre embriagado pelo amor e pela vida, o filho do Paladino, aquele que soube evocar a sombra paterna em belos versos como estes:
Deus abençoou minha existência pobre,
Dando-me o coração de meu pai que foi nobre.
Se parou de bater no engaste de seu peito,
Continua a bater no meu forte e perfeito.
A ele devo o que sou – ramo do mesmo arbusto – E o orgulho de ser bom na glória de ser justo.
Essa é, como o vedes, e como o proclamais, a cadeira por excelência varonil, entre as quarenta da Academia.
Nela vos assentais agora, sem cerimônia e sem constrangimento – vós que tendes sido, sempre, em vossa vida, o homem livre no seu espírito, o escritor que se despojou de todos os preconceitos e de todos os formalismos, de todas as convenções de todas as hipocrisias.
SIMBOLISMO E A ACADEMIA
Chegastes à Academia, para virdes ser, neste momento, o mais qualificado representante daquela grande escola poética, hoje quase inteiramente desaparecida: o Simbolismo.
A Academia se formou sob o signo do chamado Parnasianismo. Parnasianos, ou que assim se consideravam, eram um Alberto de Oliveira, um Raimundo Correia, um Olavo Bilac, um Afonso Celso um Magalhães de Azeredo, e até um Machado de Assis ou um Luís Murat. Parnasianos se consideravam muitos dos que foram sendo eleitos nas vagas que se sucediam –um João Ribeiro, um Vicente de Carvalho, um Augusto de Linha, e até um Martins Júnior. É claro que aí a palavra não valia senão como um remoto mito, e não correspondia a nada de real. Já não falarei do absurdo que seria batizar com o nome de parnasianismo – o que indica uma idéia de ordem, disciplina, precisão, exatidão, sobriedade – uma desordem romântica e nebulosa, como era o verso de Luís Murat, ou uma orgia metafísica e muita vez incoerente e do pior gosto, como era a Poesia de Martins Júnior. Falarei dos próprios corifeus da escola, dos três maiores representantes dela. Que eram eles – o nosso Alberto, o nosso Raimundo, O nosso Bilac – senão doces vates românticos, tão românticos como os mestres que tanto amavam – um Gonçalves Dias, um Castro Alves, um Casimiro de Abreu? Um deles, e provavelmente o maior dos três, teve mesmo ocasião de escrever um pequeno ensaio acerca do ideal parnasiano, ensaio em que renegava essa escola, em que mostrava qual era a verdadeira inspiração sentimental e apaixonada de sua alma.
Também com referência ao que se convencionou chamar simbolismo existe na obra daqueles três grandes poetas alguma coisa a rever, algum conceito a reformar. Leia-se, na obra de Olavo Bilac, uma Poesia como Surdina. Não é uma peça de meios-tons, de atmosfera turva e triste, de musicalidade embaladora e suavíssima? Não poderia, por tudo isso ser assinada pelo mais decadente dos decadentes? Veja-se, na obra de Raimundo Correia, aquela orgia de imagens, de sons, de sugestões, de reflexos pálidos e vagos, que se intitula Plenilúnio. Não uma página digna de ser assinada pelo mais nefelibata dos nefelibatas? E, tome-se, agora, na obra de Alberto de Oliveira, a Poesia intitulada “Horas de Ouro”. Não é uma página em que existe tudo o que é vago, tudo o que é incerto, todo o que é distante e fluido – a começar do edifício de nuvens que o poeta evoca, e a findar nos três planos diferentes em que decorre a Poesia? Não é, assim, a página de um simbolista – e de um simbolista dos mais capacitados que tenha possuído a escola?
Que nos indicará tudo isso? Eu creio que indica, em primeiro lugar, esta evidência: que os orgulhosos nomes que usamos, em nossos vãos estudos de críticos e de historiadores da Literatura, nomes que indicam escolas ou tendências literárias, não passam de um mero luxo de eruditos... A Poesia é e permanece uma só.
Foi pena que a Academia se tivesse formado em hora de tantos preconceitos. Não me conformo com a idéia de que, no grupo dos nossos fundadores, ou no dos que para aqui vieram depois, tenham ocorrido omissões tão graves como as que encontro... Como compreender que, em uma Academia literária que se fundava em 1896, tivesse deixado de figurar um poeta sem igual como Cruz e Sousa – já naquele tempo o autor glorioso dos Broquéis? Como admitir que tivesse deixado de figurar no mesmo quadro um B. Lopes, já autor aquele tempo, de Cromos, Pizzicatos e Brasões? Como compreender, ou sequer admitir, que, na sucessão dos dias, – desde 1899, quando rompeu nos céus mineiros a alvorada do Setenário das Dores de Nossa Senhora, até 1912, quando o grande poeta faleceu – tenha a Academia deixado que vivesse no esquecimento e no abandono, em suas remotas cidades serranas, o poeta que se chamou Alphonsus de Guimaraens e que eu considero uma das glórias da Poesia do mundo no século atual? Como compreender, ainda, a ausência em nossas Cadeiras de um Gonzaga Duque ou de um Mário Pederneiras?
Sois o depositário que ainda resta dessas tradições, meu ilustre confrade, vós que soubestes impregnar a vossa Poesia, a vossa prosa, toda a vossa criação literária, daquele vago, daquela meia luz, daquela música inserta e irregular, daquela atmosfera de tênues sugestões, que são características da escola simbolista.
É claro que aqui estiveram, antes de vós, um Félix Pacheco, e um Emílio de Meneses, e um Rocha Pombo, um Pereira da Silva, é claro que ainda agora temos aqui o Antônio Austregésilo.
Mas todos vêm da primeira hora do Simbolismo, representam o movimento em sua nascente, falam-nos de Cruz e Sousa, de Nestor Víctor, de Saturnino Meireles, de Tibúrcio de Freitas, da Rosa Cruz... Vós ficais aqui ao lado de Rodrigo Octavio Filho, que foi vosso companheiro de todos os dias naquela fase que evocamos, e também ao lado de Luís Edmundo, representando o movimento em seu desenvolvimento ulterior, na sua última fase, isto é, no crespúsculo em que ele se perde e se dissolve, nas colunas do Fon-Fon, da Seleta, e mesmo de outras revistas, na vasta cidade literária.
E não creio que haja aqui dentro, nesta Academia, em que dominam hoje os corifeus do movimento que ficou chamado Modernismo – e do qual também fostes magna parte – alguém que possa representar melhor do que vós a cambiância, a transição entre as duas épocas de nossa Poesia.
Assim – em gradações imperceptíveis, como as do colo de um pombo diria o nosso mestre Renan – assim se ligam e se perpetuam as fases da história literária...
SAUDADES DO SIMBOLISMO
Daqueles velhos dias – de tanta inquietação de espírito e de tão ingênua crença na Literatura – permaneceu em vosso coração uma saudade sem remédio... É a saudade de quem recorda de longe uma doce Pátria perdida – pois, como belamente dizeis, a mocidade foi um jardim por onde passamos...
Em uma de vossas páginas encontro uma síntese perfeita de tudo o que nesse capítulo pensais – uma síntese do que foi para vós o Simbolismo, uma síntese dos vossos sentimentos de saudade diante daquele fulgurante momento que se dissolveu no passado. Eis como o dizeis:
Baudelaire e Verlaine, Mallarmé, os Sãos Joãos Batistas do Simbolismo. Jules Laforgue, Francis Jammes, todos os Evangelistas... Maeterlinck, Rodenbach, Samain, Antônio Nobre, Eugênio de Castro... Vejo Yolanda de Mercioritto, com aquelas olheiras, aquele andar lento de quem chegava da bruma de Carrière, uma canção florentoina na boca, o sol do cais, Voltaire na cabeça. Meias pretas. Chapéu-salgueiro. Ninguém falava sobre Hollywood; nem o cinema mudo. Rádio era nome de outra coisa. Adorávamos a voz da água caindo no tanque dos chafarizes. O século tinha dez anos, e bons modos, Yolanda de Mercioritto não faz mal que você esteja no céu. É para você que Debussy continua tocando. Você é a Colombina de Willette. Você é a mulher triste de Steinlen, sentada no chão, olhando para o homem do seu amor. – Tu! queres me deixar?
Se você entendesse esta língua, gostaria de ouvir uns poetas do Brasil:Alphonsus de Guimaraens, que viveu numa cidade de Minas chamada Mariana, irmã mais pobre de Assis; Cruz e Sousa, neto de escravos negros; B.Lopes, conde, marquês, às vezes duque, feliz no seu palácio maravilhoso, na verdade um quarto de casa de cômodos: Mário Pederneiras, parecido com o homem que dava pão para os passarinhos das Tulherias. Augusto dos Anjos – dos anjos rebelados...
É uma saudade longa, uma saudade que não tem mesmo remédio – e que se expressa a todos os momentos.. Ela está presa a tudo – a uma forma de nuvem, à sugestão de um verso ou de uma bela frase de prosa, ao nome de um pintor, de um músico, de um poeta querido... Está presa ao nome de um Laforgue – escritor e poeta do qual jamais vos despedis... Como uma chama suave, uma chama que não é deste mundo, o sorriso da alma de Jules Laforgue ilumina as palavras que ficaram contando o que ele contou dos dias em que viveu no meio das outras criaturas... Está presa a Fialho de Almeida, cujo estilo ainda hoje vos deslumbra pois sentis nele “aquela música solta,transformada em música das esferas”, e nele sabeis viver na evocação do violoncelista Sérgio, da Velha, da Ruiva, da divina figura daquela menina doente e se eternizou em nosso conto como a Madona do Campo Santo... Ela está até presa a todas aquelas maravilhosas mulheres que através do tempo viestes adorando – e que, a partir de Santa Cecília se chamavam Monna Delza, Napierkovska Clara Della Guardia, Francesca Bertini, Theda Bara, Clara Bow, Greta Garbo, Marlene Dietrich, Michelle Morgan, e tantas tantas outras... São muitas, são infinitas... mas, que tem isso, se como ainda dizeis, em cada homem há um Sultão pobre, e um pouco triste?...
O PASSEIO DE UM BOÊMIO
Concluindo esta saudação da praxe acadêmica, Sr. Álvaro Moreyra, eu poderia contar-vos a história de certo rapaz amável, gracioso e boêmio, ao qual a vida desde cedo prometera aquilo a que ele tinha tanto direito – uma das Cadeiras da Academia do seu País. O rapaz partiu para a aventura encantadora... Mas era tão fantasista, divertia-se tanto com as paisagens, com os objetos, com tudo o que via em torno de si, entregava-se tanto às emoções que se iam sucedendo na sua alma – que de todas as coisas que não fossem a sua própria e inefável Poesia se esquecia... De sorte que levou lentos anos para realizar a conquista do galardão outrora prometido. E só nas imediações da velhice chegou àquela modesta glória que poderia ter alcançado em plena mocidade.
Foi isso que em verdade aconteceu convosco. Devíeis ter vindo para a Academia há mais de trinta anos, quando para cá vieram os vossos amigos e companheiros de geração, um Adelmar Tavares, um Olegário Mariano, um Gustavo Barroso e um Guilherme de Almeida, nascidos, como vós, nos alvores da Abolição e da República. Devíeis ter figurado entre os eleitores daqueles que, como eu, nasceram nas proximidades do raiar do século. No dia em que me comunicastes esta que foi para mim uma grande notícia – a de que estáveis disposto a vir disputar uma de nossas Cadeiras e me perguntastes se poderíeis contar com o meu apoio, a impressão que me destes foi a de que havia, no mundo literário, algum desgoverno,inexplicável e injusto. Pois era eu quem deveria um dia ter ido, na inquieta posição do candidato, bater à vossa porta, para solicitar a honra do vosso sufrágio.
Ainda bem que soubemos corrigir a falha inexplicável. E embora aqui devêsseis ter chegado muito antes, agora entre nós vos assentais, cercado desse profundo carinho que não vem só do coração dos vossos confrades acadêmicos, porém sim da alma de todo o País, que reconhece em vós um dos legítimos valores da nacionalidade.
Aqui chegais, decerto, com esse longo atraso... Mas que tem isso, se ainda sois no espírito, o mais jovem de todos nós?
Considero a vossa juventude permanente uma prova a mais do escandaloso amor com que a vossa grande amiga, a Vida, vos tem invariavelmente distinguido. Sois, em verdade, em nossa geração, o homem eternamente moço, creio que posso dizer o eterno adolescente. Não é esse um dom que qualquer de nós vos possa disputar... Eu estava aqui imaginando partir de uma das mais belas reflexões de Joaquim Nabuco para vos dizer que a mocidade é uma dessas coisas sagradas, que ninguém pode fingir, que ninguém pode sequer imitar. É moço quem de fato é moço – quem acredita em alguma coisa boa e bela, seja o amor, seja a mulher, seja a Poesia, seja a humanidade. É moço aquele que sabe se entregar à embriaguez de um desses amores, aquele que tem uma alma capaz de, por força de um desses amores, vibrar e sentir sofrer. Ou, para adotar uma fórmula que decerto vos é cara – é moço aquele que conserva a capacidade de se espantar, de se deslumbrar... Por isso é que vemos tanta vez jovens em plena primavera transformados em velhos sem remédio. Por isso também descobrimos, de repente, um milagre como o vosso – o de um homem que soube realizar alguma coisa melhor do que o ideal de Byron, o de homem que jamais saiu dos seus vinte anos.
Possamos aqui dentro aprender depressa convosco esse doce milagre...
23/11/1959