AO ENCETAR o seu discurso magnífico, de recipiendário, nesta Casa, enunciou o espírito formoso de Afonso Arinos, tão cedo apagado, que, perduradoramente, lhe dera a nossa Academia a impressão de um templo cujo pórtico lhe parecia por demais severo, para acaso, alguma vez se lhe poder afigurar acolhedor e transponível.
A primeira evocação persistente da imagem da Academia se me prende a episódio da já afastada mocidade, quando, afanosamente, principiava a percorrer a bibliografia xenobrasileira de viagens.
Entre os visitantes célebres do Brasil, no século XVIII, arrola-se Parny, em singular preeminência. Foi, quiçá, o primeiro acadêmico estrangeiro que no Rio de Janeiro haja pisado.
A leitura do que tão agradavelmente escreveu sobre este padrão do nosso orgulho pátrio e da beleza do Universo, constituído pela região guanabarina, instigou-me a, mais de perto, conhecer-lhe a biografia.
Parny, Evaristo de Forges, Visconde de Parny. Quase ninguém, talvez, o leia hoje detidamente.
Em todo caso, vivaz lhe permanece o nome, o que é imenso, no mare magnum das lembranças extintas, das obras e autores, do tout passe e do tout lasse intrinsecamente humanos.
Às duas sílabas do seu título eufônico se associa a recordação imediata de belo renome, em dilatada fase da literatura francesa.
Apreciada pelos contemporâneos, e pelos pósteros, a ponto de incitar a numerosos imitadores, alguns dos quais ilustres até, como Lamartine, à obra do poeta da Guerra dos Deuses assistem característicos de imaginação e elegância, graças aos quais conquistou direitos a um non omnis moriar perdurável.
O erotismo e a irreligiosidade sobremodo concorreram para estear a fama do homem talentoso, senhor de estro vivaz e abundante verve, a quem Voltaire saudou do modo mais desvanecedor, chamando-lhe “meu caro Tibulo”.
Triunfal lhe foi a entrada na Academia Francesa, relata o biógrafo que me fazia acompanhar-lhe as peripécias da carreira.
A poltrona de que veio a ser o titular, fundara-a em 1637 volumoso, derramado épico, cujo nome graças à férula de Boileau escapou ao olvido total: Chapelain, o da Pucelle.
Já antes de Parny tivera a Cadeira número 37 vários ocupantes como Pavillon, Sillery, Devaines, Mirabaud, Wattelet e outros.
Nada me diziam tais nomes. Com afinco, e por desfastio da curiosidade, os rebusquei em muitas das enciclopédias francesas.
A alguns se consagravam magras, magríssimas biografias. A vários nem sequer a menor menção.
Por completo os circundava o “muro da treva e do silêncio” da poderosa imagem quentaliana. Nem a mais pequenina referência, contrariadora do seu como irremediável anonimato.
Quem haviam sido esses imortais? Deles que restava? Seriam então, assim, irressuscitáveis? A quantos desses bafejados, tão transitórios, da fama literária, se não aplicaria, agora, a faceta expressão de nossa gíria deles se podendo afirmar que se tinham convertido em “ilustríssimos desconhecidíssimos”?
A quantos se não ajustaria uma como que antonímia do famoso epigrama pironiano: “Embora acadêmicos nada haviam sido”?
Nunca se me deparara tão flagrante demonstração da inanidade de nossa imensa e mesquinha vanglória, impotente nos seus recursos infinitesimais de resistência à justiça do olvido, as mais das vezes, oracular.
E a imersão desses imortais ignotos no torvelinho da amnésia das gerações me recordou um dos melhores achados de certo e alegre contista, manejador emérito da velha, e, por vezes, nada casta facécia gaulesa.
Em dada ocasião, atribuíra o governo francês, a um de seus almirantes, chamado com toda a urgência a palácio, tão reservada comissão, tão e tão reservada, mas de tal modo reservada, que ele próprio, o governo, não tinha a menor ideia do que se tratava!
Assim, àquela série de imortais, pela segunda vez defuntados, trouxera o altissonante título, inerente à sua eleição, e conferidor da ilusória eternidade, o apregoamento irrevogável da insubsistência dos créditos, perante a débil, mas quase sempre justiçosa, memória dos exigentes pósteros.
Recorri às listas, avultadas, dos titulares das demais poltronas da Academia cardinalícia, paradigma da nossa e de tantas mais. Em cada uma, dentre, pelo menos, uma dezena de ocupantes, sobrenadavam três ou, quando muito, quatro nomes daqueles que, até hoje, realmente, da lei da morte se haviam libertado.
Um único desses assentos acadêmicos ufanar-se podia da série completa de seus titulares, estes sim, genuínos imortais: o famoso quadragésimo primeiro, cujos inauguradores se chamaram Descartes e Pascal, prógonos de Molière e Diderot, de J. J. Rousseau e Balzac, Beaumarchais e Le Sage, do abade Prévost e de Baudelaire, Flaubert, Zola e tantas glórias mais da França e da literatura universal.
Mas como teriam aqueles pobres Sillery, Pavillon, Devaines, et reliqua, tão completamente soçobrado no Letes das reputações literárias?
Acaso pertenceriam, estes imortais falecidos, falecidíssimos, à categoria daquele famoso Conde Huberto de Latour-Latour, da inventiva gaiata de De Flers e Caillavet? o acadêmico que depois de eleito, imortalizado, sentia em si qualquer movimento impelindo-o vagamente, muito vagamente, a refletir que devia principiar a escrever o que quer que fosse?
Só assim se explicaria que ao quidam Pascal houvesse a sábia e imortal Companhia, em sua fase instauradora, preferido o imenso Giry, autor de imortais... traduções; ao pigmeu Descartes o formidável Gomberville, celebrizado por uma circunstância de capital relevo literário: a guerra sem tréguas movida à conjunção “car” que lhe atacava os rijos nervos, e cuja Doctrine des mœurs é aquela obra procuradíssima... por causa do gravador de suas estampas.
Assim se solucionava o caso dos gloriosos antecessores de Parny. Preterira Pavillon, gênio em potencial, à nulidade do humanismo de Bayle; suplantara Sillery, mentalidade profundíssima, mas en herbe, até o dia do seu trespasse, aos poetastros Regnard e João Batista Rousseau; Mirabaud, talento formosíssimo, mas em eterna fase larvar, mil vezes mais merecera as honras da eleição do que as mediocridades autoras desses romances desvaliosos intitulados Manon Lescaut e Gil Braz de Santilhana. E quando, em 1761, fora Wattelet eleito naturalmente, se refletira que a sua prosa, servida por elegante facilidade pictórica, valia cem vezes mais do que a obra daqueles dois zeros chamados Diderot e Jean-Jacques Rousseau.
A filosofar de modo simplista, mas imparcial, sobre o estranho caso, ocorreu-me a reflexão de que, assim como o espírito de equidade da opinião pública instituíra uma cadeira número quarenta e um, para os que não foram acadêmicos, quando imperiosamente o deveriam ter sido, tornava-se impreterível a criação de outra curul, extranumerária e simbólica, a cadeira número zero, chamemo-la assim, destinada aos acadêmicos efetivos que, ainda mais imperiosamente, jamais deveriam ter sido eleitos.
Assim seria a Academia Francesa representada pelo símbolo de uma função integrável entre os limites de mais infinito e zero.
E, instigados, por uma moda, nossa contemporânea, quase convertida em mania, seríamos levados a pensar na conveniência de se erigir, em face do busto de Molière, e do seu famoso dístico, um padrão homenageador do acadêmico desconhecido, do imortal desconhecido.
Integrada numa característica essencial da Humanidade, – aquela a que relembra a tão conhecida e solene observação contista, – já se compõe a Academia Brasileira, apesar dos três decênios escassos de existência, mais de mortos do que de vivos.
Desde que surgiu, com o quadro totêmico de quarenta lugares, fundou a opinião nacional a sua quadragésima primeira cadeira, prestigiada pelos nomes de brasileiros ilustres a quem, por este ou aquele motivo, jamais pôde acolher quando, para tanto, sobejos títulos lhes assistiam.
Receio, meus eminentes colegas, que o voto de vossa benevolência, expresso a 7 de novembro último, vos haja levado a um passo de que resulte a instauração daquela poltrona extranumerária, obliteradora do renome dos seus titulares.
Cessaria aliás o vosso cenáculo de ser humano se tal fundação, mais dias menos dias, se não realizasse, insuportável, como aos homens é, o fenômeno antinatural da perfeição.
Compelidos pelo espírito ático, essencialmente sutil e contraditório, fartos de vos sentirdes os êmulos do justo, mas monotonamente maçador, Aristides, a uma imprudência vos abalançastes. Seja-me porém permitido invocar, e em abono das intenções de vossa cordialidade, a simpatia com que avaliastes o esforço de longos anos de trabalho intenso e honesto, posto ao serviço de antiga preocupação pelo maior desvendamento dos fastos de nossa terra.
* * *
Para o exame de seus méritos devia o meu predecessor ilustre ter tido alguém cujos dotes de intuição permitissem o perfeito cumprimento do ultimatum sintetizado por dois decassílabos, em nossas letras famosos. Os que apontam a contingência do julgamento dos poetas por aqueles que poetas não sejam.
Tocou o elogio de Luís Murat a quem, jamais, imaginara a possibilidade de realizar a apreciação de qualquer obra poética. E, ainda menos, a de um espólio da valia desse que lhe legou o fundador da nossa poltrona número um.
Assim, apenas por obediência ao nosso regulamento, efemeramente tratarei de desempenhar as funções de analista de tão belo acervo.
Em aberto, permanecerá pois tal elogio que instante delego ao primeiro poeta a quem caiba ocupar a Cadeira de Adelino Fontoura.
Nascido a 4 de maio de 1861, em Itaguaí, num dos mais lindos recantos desta terra fluminense, suntuosíssima de paisagem, a Luís Barreto Murat girava-lhe nas veias, precípite, impetuoso, um caldeamento de sangues nórdico e meridional. E daí lhe proviera talvez a simbiose da pugnacidade e da irrequietude, dominantes de toda a sua vida.
Existência que, no dizer magnífico de Roquette-Pinto, foi uma rajada de entusiasmo e de paixão...
Filho de distinto médico, cujos nomes realizavam a associação de um apelido anglo-saxônio e outro francês, o Dr. Tomaz Norton Murat tivera por progenitora ilustre senhora de bela inteligência e elevada instrução, muito acima da média brasileira de seu tempo: D. Antonina Pereira Barreto Murat.
Era filha do conselheiro Antônio Pereira Barreto Pedroso, doutor de Coimbra, magistrado prestigioso, representante da Província do Rio de Janeiro, em diversas legislaturas do parlamento imperial, e a quem acompanhava a reputação de homem de bela cultura e notável energia. Valera-lhe esta circunstância, em 1837, a incumbência de presidir a Bahia, então a braços com a desvairada e mortífera Sabinada, que o regente, futuro Marquês de Olinda, tratava de sufocar.
Com brilhante êxito desobrigara-se da perigosa e sanguinolenta comissão.
Do Império, a que dedicadamente servira, guardou Barreto Pedroso o ressentimento inapagável, de, por três vezes, haver figurado em lista tríplice senatorial e não merecer o galardão da escolha da coroa.
À filha coube herdar a energia e a inteligência paternas.
Viúva, muito moça, deixara-lhe o carinhoso marido, prostrado em plena mocidade, muito parcos recursos e três crianças a educar. Com uma coragem e espírito de decisão, raríssimos, entre as brasileiras de seu tempo, intimidadas pelos preconceitos seculares da educação ibero-ismaelita que, frequentemente, as infantilizava, enfrentou as agruras da vida.
Possuía, no mais alto grau, o sentimento da dignidade.
Acima de qualquer coisa, pretendia não ser pesada a quem quer que fosse. Ouvira dizer que em São Paulo conseguiria, facilmente, angariar discípulos. Não hesitou em transferir-se para a capital paulistana onde, instruída como era, vantajosamente poderia encarreirar os seus. Dentro em breve ali estava, a lecionar.
Assim, graças a um esforço admirável, pôde esta esposa exemplaríssima, e mãe inexcedível, educar os filhos.
* * *
Adolescente, percebeu Luís Murat os primeiros ecos que a infiltração da ideia republicana ia operando, reacendendo o braseiro das explosões de meio século atrás, agora reavivado, pelo contacto dos nossos com os homens do Prata, nascido graças à guerra do Paraguai.
Ainda não atingira vinte anos quando se lhe deparou o ensejo de presenciar a poderosa arrancada da opinião nacional, em prol da extinção do hediondo instituto, desonrosíssimo estigma do Brasil, perante o consenso do Universo.
Terminara então o estágio humanístico, matriculando-se na Faculdade de Direito de São Paulo, onde não tardaria a conquistar, entre colegas e mestres, merecido destaque, graças à inteligência agílima e penetrante como raras.
Era um belo rapaz, alto, esbelto, de vivíssimo olhar, traços muito regulares, e tez sobremodo alva, a contrastar com o negrume da basta e ondeada cabeleira.
A exuberância do temperamento levava-o a, apaixonadamente, comparticipar das estudantadas de toda espécie, nas múltiplas manifestações do gaudeamus igitur.
"“Estudante levado da breca que fostes” dir-lhe-ia, anos mais tarde, Artur Azevedo, a proclamar conceito endossado pelo próprio buliçoso, pois em um dos seus livros o transcreveu.
Em 1879, na pequena cidade piratiningana e ainda preparatoriano, frequentador do “Curral dos bichos” como se dizia em gíria paulista do tempo, fundava Murat o Ensaio Literário, órgão de certo Clube Literário do Curso Anexo.
“O homem nasceu para o trabalho, como as aves para o voo”, tal o dístico inscrito no alto da efêmera folícula, daqueles rapazolas inteligentes e sequiosos de popularidade.
Mas calhava bem o mote às tendências do estreante que, de fato, sempre se mostraria, durante meio século, o escritor apaixonado do manejo da pena.
Findo, em 1885, o curso jurídico, passou o nosso futuro acadêmico, imediatamente, a advogar no Rio de Janeiro.
Grande renovamento intelectual se operava no país no decurso dessa década presenceadora dos dois incidentes máximos de 13 de maio e 15 de novembro.
Vultoso grupo de moços de inteligência, e de talento, surgia no campo das letras, no da tribuna parlamentar e pública e, sobretudo, no jornalismo, agora ventilado pela influência vivificadora dos moldes introduzidos por Ferreira de Araújo, na Gazeta de Notícias.
Ali se levava de vencida o antigo espírito da imprensa nacional, sorno, gravibundo e oco, pesado como um dia de bochorno do nosso fevereiro.
Como que existia tal publicismo, para a divulgação exclusiva dos preços dos secos e molhados, catálogos de leilão, manifestos de lugres e patachos, e sobretudo, para os anúncios de escravos fugidos, subordinados à clássica vinheta do negrinho de trouxinha de roupa dependurada da extremidade de um bastão.
Corriam os anos triunfais do Naturalismo e do Parnasianismo. No cenário fluminense, e com o maior realce, atiravam os homens da geração nova, os poetas como Bilac, Alberto de Oliveira, Raimundo Correia, Afonso Celso, B. Lopes, Guimarães Passos, Lúcio de Mendonça, Múcio Teixeira, Fontoura Xavier, e tantos mais, ao lado dos prosadores como Aluísio e Artur Azevedo, Pompeia, Valentim Magalhães, Coelho Neto, Domício da Gama, Francisco de Castro e muitos mais; polemistas e propagandistas, como José do Patrocínio, Pardal Mallet, Silva Jardim, Alcindo Guanabara e outros; eruditos como Capristrano, Vale Cabral, João Ribeiro e outros.
Aos agitadores de novas ideias, e novos processos literários da capital do Império, se associavam nas províncias valores reais, indiscutíveis, como Martins Júnior, Eduardo Prado, Martim Francisco III, Vicente de Carvalho, Júlio Ribeiro, Artur Orlando e tantos mais.
* * *
Neste ambiente de excitação política e literária se afirmaram as características da personalidade original de Luís Murat.
Desde muito moço, revelara o jovem poeta a intransigência que o acompanharia até os últimos dias de vida.
Dele com toda a exação alega Artur Mota, o prodigioso sabedor da nossa história literária: “Espírito eminentemente combativo, com denodo pelejou sempre em todas as campanhas em que se envolveu.”
Ele próprio Murat, no prefácio das Poesias Escolhidas, assim se exprimia: “O espírito que aviventou a geração a que pertenço, foi enérgico e decisivo.”
Era admirável nos seus ímpetos cavalheirescos, em seus excessos mesmo. Que abnegação, que coragem, que temeridade!”
Com imenso entusiasmo lançou-se à luta contra o elemento servil e o trono solapado do quase ancião Imperador Magnânimo, a cujo estado de validez parecia fatal, indissoluvelmente, ligada a existência do Império americano.
Em 1885, aos 24 anos, estreava-se o jovem aedo fluminense, como autor de livro impresso, publicando Quatro poemas.
E, como receasse a acerba represália daqueles a quem já de longe, fogosamente, vinha combatendo, investia com os esperados inimigos, os malsins de uma crítica “charra e desmiolada, que badurreava pelas esquinas e cafés, enxovalhada pelo próprio descrédito, e a que, se não podia pôr-lhe barbilhos à ganância, para que o não mordesse, como se fazia aos animais, opunha todavia, a indiferença”.
Esta apregoada insensibilidade ninguém podia considerá-la sincera, valha a verdade. O próprio Murat a cada passo a desmentia.
No prefácio do livrinho, esforça-se por expor o modo de conceber e interpretar a poesia, primeira demonstração de uma diretriz muito sua, por vezes exagerada, senão mesmo paradoxal, a que procuraria obedecer a vida inteira.
“Era tudo a Ideia! Desde que o poeta a dominasse, ipso facto se assenhorearia da forma!” proclamava, a verberar os confrades cujos esforços convergiam apenas para a contextura e meneio do verso.
Atraiu a obra do estreante cantor a curiosidade das rodas literárias.
Abroquelados nos ouriços do prefácio reptador, eram os Quatro poemas um cartel aos parnasianos, que não podia deixar de ser correspondido à altura de sua violência.
Dentro em breve, aspérrimo, rompia Luís Murat, pelas colunas d’A Vida Moderna, com a rapaziada de sua geração, por quem, como era de esperar, não se viu poupado.
Em 1886, empolgado pelo avanço da propaganda abolicionista e republicana, entendeu tanger a lira guerreira a propósito de episódio histórico nacional, eterno clamor de vindita atirado à face da dinastia e do regime: o drama de 21 de abril.
Assim, executou A última noite de Tiradentes, em que ocorrem alguns trechos bons, mas não passa da mais fantasiosa deturpação histórica.
Ao assombrado leitor se lhe depara o mísero e nobre, o abnegado e impávido, mas inculto, mas ignaro Tiradentes, a discorrer por interminável e, sobretudo, eruditíssimo solilóquio, em que evocava o Kremlin e o Mississípi, o ventre de Moloch, as lágrimas de Esparta, Átila e seus hunos, Macbeth e outras figuras shakespeareanas, como a sediçamente meiga Cordélia e a interesseira Regana.
À cela do protomártir chega o confessor dos últimos momentos. Do modo mais indigno do seu ministério o interpela, a lhe exaltar a suprema ventura do viver.
E o pobre sentenciado, de quem se espera alguma apóstrofe da naturalidade da que o estro de Bilac soube traduzir, no clamor humano e estarrecente, do
Nunca morrer assim! Nunca morrer num dia
assim! de um sol assim!
o mísero inconfidente prorrompe em tremenda e eruditíssima invectiva filosófica!
Ele, Tiradentes, tão catolicamente resignado à morte, semiapatizado pelos quase três anos de horrendo cárcere, blasfema, amaldiçoa o “Deus que mata e o rei que envenena!”"
E divaga, divaga, por nova objurgatória, recheada de sábias alusões históricas, em que aponta uma série de nomes da sua especial execração e, certamente, notamo-lo nós, absoluta ignorância: os Bórgias, Luís XI, Filipe II e quejandos manipanços das frases feitas tiranicidas.
Tal a inverossimilhança desta composição estrambótica que o poeta a refundiu, vinte cinco anos mais tarde. Agora sob novo título, impessoal e mil vezes mais adequado, A última noite de um conjurado. Era a plena confissão da impropriedade daquela obra dos 25 anos.
* * *
Pela imprensa, incansavelmente, continuava Murat a espalhar a abundância do estro poético e da prosa literária e vibrátil.
Empolgado pelo hugoanismo, lia e relia a obra do poeta da Lenda dos séculos, comprazendo-se em afirmar, a cada passo, a altura do preito ao genial admirado.
Também o influenciavam, embora em menor escala, Théophile Gautier e os outros grandes próceres do Romantismo.
Nada o irritava mais do que tentar algum crítico uma aproximação de seu feitio literário com o de qualquer dos poetas nacionais, exceto Castro Alves.
Entendeu José Veríssimo poder afiliá-lo à escola do nosso, tão singelo e tão brasileiro, Casimiro de Abreu, e isto lhe provocou iradíssima denegação, revidadora e injusta.
Dos nossos escritores, fora ele, Veríssimo, contumaz e apaixonado “derrotador literário” quem, em matéria de crítica, maior número de dislates proferira.
Chamava-lhe discípulo de Casimiro! Por que não de Cláudio Manuel da Costa, ou de Tomás Antônio Gonzaga?! “O critério lhe andava às cabeçadas com a falta de gosto; dele tudo era possível esperar-se!”
“Não sou discípulo de Casimiro de Abreu nem de ninguém”, concluía, abespinhadíssimo, o poeta: mon verre n’est pas grand, mais je bois dans mon verre!
Apesar de tão formal repúdio, diversos foram os reparadores, autorizados e do melhor quilate, que lhe assinalaram os pontos de contacto com o feitio suave e plangente, o lirismo do delicado e meigo, do mísero cantor das Primaveras.
Contemporaneamente, e sem tréguas, politicava Murat.
Dera-lhe a campanha propagandista real preeminência entre o grupo dos mais ardorosos paladinos do regime republicano.
Também não tardaria que o Estado natal lhe galardoasse os esforços, delegando-o em 1890 à Assembleia Constituinte, onde se revelou parlamentar saliente, orador fogoso, espontâneo, fluentíssimo possuidor de vocabulário opulento, angariado pelo exercício contínuo da poesia e da rebuscada linguagem.
Pouco antes, imprimira o primeiro tomo das Ondas em que se lhe acentuara a feição filosófica da poesia.
Filho grato, dedicava-o à Mãe admirável a quem tanto devia e a quem apostrofava: – “Santa, ó minha Mãe, meu sol primeiro!”
Neste livrinho, numerosas peças surgem transbordantes, de alusões literárias as mais variadas, históricas e mitológicas, assim como de aproximações clássicas, por vezes cansativas.
Esforça-se o poeta por atingir a grande e constante meta do antigo almejo: envolver nas vestes da métrica as lucubrações do raciocínio inquieto e erudito.
Mas, ao lado deste pindarismo solene e complicado brotam as irreprimíveis espontaneidades líricas, felizes, por vezes felicíssimas, nas comparações e imagens.
Ela me veio ver ontem... Que ruído
Houve no bosque e entre as esferas de ouro!
Eu caminhava trêmulo e esquecido
Dos arvoredos a seguir-me em coro.
Beijei-lhe a trança cor da noite. Em tudo
Havia um vago e tímido concerto,
Meu beijo andava nos seus beijos, mudo,
Como um tritão de pérolas coberto.
* * *
Mas turvavam-se os tempos e o poeta, arrastado pela política, entrara num triênio de larga agitação de vida.
Grande admirador do Marechal Deodoro, fora dos que lhe apoiaram o golpe de estado de 3 de novembro de 1891.
Assim, pois, semanas mais tarde estava arrolado nas bancadas daquela oposição irredutível que a Floriano Peixoto tanto combateu.
Um motivo especial em Murat atuava para que, tão impetuoso, guerreasse o marechal vice-presidente. Derrubara este, do governo fluminense, um amigo querido, o Dr. Francisco Portela, o presidente que assumira meceniano feitio para com muitos dos mais ilustres homens de letras do tempo, colocando-os como seus auxiliares de administração.
Do abrigo acolhedor de Niterói deslocara-lhe o substituto, os reconfortados plumitivos.
E eles, irritabile, atque vindictae avidum, genus! lhe exprimiram o rancor zargunchando-o longamente em prosa e verso, de epigramas inúmeros e furibundos, e trocadilhos pavorosos!
Em 1893, a 6 de setembro, irrompia na Guanabara a guerra civil, e deu Murat, aí, notável prova de coerência e intrepidez. Trabalhava com Patrocínio na Cidade do Rio e nesta folha imprimiu o manifesto do almirante Custódio José de Melo.
Precisou pois fugir ao rancor do governo e pelejar como soldado da Revolução. Pouco depois estava na capital catarinense ao lado de Guimarães Passos, naquele cenário estupendo que é o de minha cidade natal, onde se não sabe o que mais impressione, se a opulência da Criação, se a cordialidade dos que em tão admirável ambiente vivem.
Pitorescamente descreveu Guimarães a fase revolucionária do nosso poeta:
Os chefes militares não nos revistaram, a Murat pelo menos, porque dentro da mochila, em lugar de balas, lhe encontrariam apenas uma bateria de rimas, e a Winchester que levava a tiracolo era a sua lira de ouro, copiada da do divino Apolo, e por isso tão sonora como ela.
Infelicíssimo se sentia o autor das Ondas.
Às apreensões sombrias agravava agora o reavivamento de contrariada paixão, irreprimivelmente surta na infância e dominadora de sua adolescência e primeira mocidade. “Belona a todos nós assoberbava, continua Guimarães Passos: todos só queriam saber do que se passava nos acampamentos. E Luís Murat escrevia os versos de Sara.”
Mas não tardaria que a impassível tenacidade, arguta e metódica, de Floriano abatesse o desconexo movimento da marinha e do federalismo rio-grandense.
Conseguiram Murat e Guimarães Passos escapar à repressão governista que anteviam inexorável. Dentro em breve estavam no Prata.
Numa cela, num cubículo, num quarto estreito do lazareto de Martim Garcia, no vão de uma janela, costas dadas a quem entrava, de chapéu e sobrecasaca, escrevia Luís Murat, – conta-nos o poeta de “O lenço”.
Tal o seu aborrecimento do exílio, que, posso dizer, era intratável.
Éramos muitos os que então não tinham Pátria, porém ele, além da Pátria, que não podia ver, tinha uma saudade, saudade de uma mulher que personificava a Pátria.
Era Sara, o seu amor de 25 anos passados, toda a sua meninice, toda a sua adolescência, toda a sua vida de homem.
E nesse momento doloroso, a não ser a lembrança augusta de sua Mãe, todo o mundo se encontrava em Sara.
Sob esta influência paroxística resolveu o nosso torturado vate enfrentar os perigos da represália legalista. Assim, apesar das notícias apavorantes dos horrores de Anhatomirim, e do quilômetro 65, decidiu-se a arrostar os riscos do cárcere, ou coisa pior, sujeitando-se aos azares de um julgamento regular, como rebelde.
Compareceu perante um júri paranaense, que o tratou do modo mais benévolo, pois o absolveu por unanimidade de votos.
Voltando ao Rio de Janeiro, encontrou hostil ambiente por parte dos antigos correligionários, exasperados pelo rancor da derrota crudelíssima da véspera.
Acerbamente lhe exprobrou a conduta outro homem iracundo, o padre João Manuel de Carvalho, o velho e turbulento parlamentar, republicanizado nas imediações de 15 de novembro. Partira do Prata, afirmou, certo do perdão que, do Marechal Floriano, implorara.
A estes ataques respondeu o poeta no tom a que se habituara, e caso curioso: em 1895 apareceu ele, republicano rubro, a colaborar numa polianteia publicada em homenagem à memória do último paladino do Império, o recém-caído de Campo Osório!
Verdade é que mais parece ter aproveitado o ensejo a fim de expor o seu caso ao veredicto da opinião pública do que para cultuar a personalidade do marinheiro ilustre. Fez-lhe contudo os mais elevados elogios. E, ao mesmo tempo, indignado com o padre João Manuel, que o apontara “ajoelhado aos pés tortos de Floriano Peixoto, a renegar o seu passado político”, vivamente rebateu as acusações de que era alvo, apodando, com a maior violência, os adesistas vindos do monarquismo.
* * *
Afastado da política volveu Murat às lides literárias. Em 1895 divulgou o segundo tomo das Ondas, coletânea de versos, abrangendo composições da década de 1884 a 1894, cheias de fantasias irrequietas e extravagâncias do talento poético.
Sete anos mais tarde imprimia o poema a que impusera o nome da mulher tão amada e escapa ao seu amor. Dele daria vinte anos mais tarde segunda edição aprimorada. “Não era outra coisa, declarava, senão o pranto vertido sobre uma esperança desfolhada no albor de uma existência.”
E, com singela imodéstia, do seu tentâmen afirmava: “possui Sara, como Laura ou Beatriz, as potências da dor que criam os poemas”.
Perpassam-lhe pelas páginas do livro magníficos brados da alanceada paixão:
Vinte anos! um martírio que não finda!
E eu, que dos sonhos vãos me acautelava,
Vejo-te em sonhos cada vez mais linda!
Oh! como é bom amar, aos vinte anos, querida,
Na primavera em flor!
São páginas de queixumes, de acabrunhamento, de saudade e desesperança. Cheias de lirismo por vezes soberbo, escachoante, nelas as vozes da meiguice interrompem as apóstrofes da revolta ante o inevitável e o consumado. Mas, infelizmente, é o livro desigual, encerrando peças refertas de difusão e obscuridade.
No terceiro tomo das Ondas, datado de 1910, firmou-se a feição da poesia filosófica de Murat.
A impregnação hugoana nele transborda. O culto pelo poeta magno leva-o a aclamar, cada vez mais inspiradamente arroubado, a glória do “titão que álacre se entregara à tempestade da vida”.
Em sua Musa que perfeição!
Se é chama de manhã, à tarde é sombra olente,
É o mantém do altar-mor, é a hipérbole, é o conceito,
Que a sugestão aviva e o termo escande e entalha
Numa onomatopeia altíloqua e imponente!
A tudo
Deu um sopro de vida, um claro pensamento.
O que escreveu no exílio, os astros decoraram!
E, ao terminar, irrompe-lhe largo clamor do mais legítimo estro:
Para os que pedem luz, Victor Hugo é a esperança;
Para os que pedem pão, Victor Hugo é a piedade.
A algumas das odes deste tomo das Ondas, dedicava o poeta especial apreço, delas tirando lindos motivos de envaidecimento. Neste caso se acham a “Vitória dos deuses” e o “Requiem e apoteose”, comemorador dos triunfos de 13 de maio e a que remata o condoreirismo da apóstrofe:
Pode hastear, Luís Gama! o pavilhão do Amor.
Patrocínio! começa a tua apoteose!
A “Vitória dos deuses”, consagrada aos heróis da Abolição, parece-me menos inspirada. Constitui nobre apelo a que os triunfadores se não desinteressem da sorte daqueles a quem libertaram, civilizando-os, orientando-os e dando-lhes sobretudo instrução:
De vós a Pátria exige ainda este sacrifício.
O eito não deve ter por sucursal o hospício.
Uma das composições do volume, a ode “Gralhas” tem pitoresca origem: motivou-a o fato de haver certo e impudente poetastro, em pública manifestação, recitado, como sua, longa poesia de Murat, o que lhe valera largos elogios dos jornais cariocas.
Indignadíssimo, verbera o plagiado a ignorância da imprensa que melhor devia conhecer os escritores pátrios. E, cada vez mais colérico, ao empenado gralho brada: “Falsário!” e à récua de seus imitadores “casta vil, que alastra como herpes!”
Para um homem de tão grande sensibilidade devia este incidente, até certo ponto ridículo, ter provocado a mais forte e aliás legítima irritação.
No prefácio deste terceiro tomo das Ondas e a contestar a execução de famoso aforismo boileauano, expõe Murat as causas de sua aversão ao soneto.
Com a habitual exuberância verbera o “gênero pernicioso, enganador e falho”. Comprime o estilo e o apouca tirando-lhe a seiva e a idealização, desaparelhando-o para os surtos de grande hausto.
“É o pé atrofiado pelo sapato chinês.”
Como exemplo frisante desta vis depressiva aponta o caso de Luís Delfino.
Dentro dos moldes restritíssimos do soneto irrompia, formidável, o estro do poeta catarinense, para logo depois, titubear, rolando, alfim, dos vértices atingidos, na projeção inicial “ao terreno descaroável do pletro”.
Inflamando-se, subitamente, como tanto lhe conduzia ao temperamento, acrescentava: “o soneto está à mão de qualquer renteador, feito para descer aos alcouces”.
“É um incentivo à mandriice. Apertado na sua coirela de quatorze versos, serve aos namoricos dos parvenus e a esterilizar energias adequadas às nobres missões educadoras. ”
Acudia-lhe, porém, imediatamente, a ressalva do amor-próprio. Receava que lhe irrogassem a incapacidade de triunfar, na realização dessas pequenas peças verbalizadoras, tão pouco havia ainda, do gênio e da glória de um dos maiores poetas e pensadores do século XIX: Antero do Quental.
Em aproximação, aliás pouco modesta, lembrava que de Victor Hugo apenas se conhecia um soneto.
Assim, – anunciava-o, – seu próximo poema, já em adiantada elaboração, o "Novo Templo", seria em sonetos.
E arrogante, orgulhosamente, proclamava: “quem pode o mais pode o menos!”
* * *
Nesta época, depois de longo afastamento dos mandatos políticos, voltara Murat ao Parlamento. Reaparecera, em 1909, na bancada fluminense da Câmara dos Deputados.
Pugnaz como sempre, tremenda guerra movia à agremiação a que chefiava Nilo Peçanha, então vice-presidente da República.
Alguns discursos dos que ali pronunciou, coligiu-os em volume.
Pouco lhe durou, porém, esta segunda fase parlamentar. Dos contatos com a política desagradáveis reminiscências lhe ficaram.
Daí as palavras de áspera recriminação com que, quase constantemente, verberou, nos últimos quinze anos de vida, a marcha dos nossos negócios públicos.
Furiosamente combatera a presidência Hermes da Fonseca. Longos anos mais tarde, ainda a caracterizava como “um agravo à dignidade dos homens livres” entre outros conceitos igualmente acerbos.
E o saudosismo da já longínqua juventude levava-o a duras comparações, desabonadoras dos tempos recentes.
Em 1917 fez arroubada e minudente profissão do credo religioso a que desde muito se prendera.
Deixara-se empolgar pelas doutrinas de Emanuel Swedenborg, de quem, talvez, haja sido o único sectário brasileiro de renome. A elas se entregara com as veras do habitual arrebatamento.
Exasperava-o a afirmação de que o grande místico, na fase apocalíptica da sua Nova Jerusalém, nada mais fora senão a vítima de irreparável cansaço, oriundo de um esforço cerebral, tão longo quanto descomedido, como raríssimas vezes o haviam comprovado os fastos da Ciência.
Do homem extraordinário, cujas doutrinas, posteriores à irrogada surmenage alucinadora, Goethe ridicularizou, e a quem atribuiu a alcunha de Pater seraphicus, tornou-se intolerante sequaz.
De nada lhe valeram as objeções das mais prestigiosas fontes.
E o recordar de opiniões dos mais célebres contraditores, como entre outros Kant, que dos swedenborgistas ironizava, aconselhando às autoridades curá-los “não pelo terror das fogueiras como aos demais espíritas, mas pela simples aplicação de um drástico”, – proclamava o nosso poeta, em verdadeira clama ne cesses! a excelência do credo do iluminado de Stockolmo, “o maior pensador que à face da terra jamais viera!”
Infundira-lhe a serenidade necessária para poder avaliar a nobreza da vida e a magnificência do Universo. A alma se lhe abrira a novos influxos, carreando luz para os seus ângulos obscuros...
“À geração que vem substituir a minha, exclamava, posso dizer: remocei!”
Também! que hino de gratidão e entusiasmo entoava ao arquiatra da magoada alma!
Enveredando pela estrada da sugestão, e violento como sempre, passava a amaldiçoar as noções religiosas que, na infância, lhe haviam incutido. Jamais credo tão nocivo fora à Humanidade quanto o catolicismo, malgrado as bênçãos de Auguste Comte e todos seus corifeus.
Agora, sim, o seu estro se alimentava da verdadeira, da única Sofia, inspirando-lhe o poema "Novo Templo", ensaio de reconstrução da Verdade pelo Belo.
Imprimira, pouco antes, pequeno volume de análise literária: Félix Pacheco. Das suas 75 páginas dois terços empregou-os numa dissertação místico-estética, tendente a demonstrar que na Bíblia, e sobretudo nos “Salmos”, quando interpretados pelo prisma swedenborgiano, reside a única fonte de inspiração poética.
Prosseguindo, combateu os erros dos parnasianos encarniçadamente, procurou desmanchar a reputação, a seu verin totum imerecida de Cruz e Sousa a quem sobremodo encarecera o ilustre poeta cujo nome servira de título ao livro.
Ao resto do volume enchem algumas poucas páginas consagradas à análise de parte restrita da obra de Félix Pacheco, tudo isto de envolta com novas divagações apresentadoras de pontos de vista estéticos do verso.
* * *
Antes de divulgar o tão anunciado carme swedenborgiano decidiu Luís Murat oferecer ao público uma coletânea de peças escolhidas a que resolvera dar definitiva forma. Mais de trinta anos abrangia de contínuo poetar.
Levara-o tal tentâmen a longo e aprimorado trabalho de buril.
Dentre estas Poesias escolhidas umas tantas há a que inspira o credo do místico sueco. Nelas exprime o autor a inabalável crença na eternidade da alma.
A todas estas modalidades da profissão de fé envolve em geral, porém, hirsuta fraseologia.
Nos versos complicados surde-nos, frequente, estrambótico vocabulário, por vezes jamais dicionarizado, referto de latinismos ainda não lusitanizados.
Subordinadas a velho veso, há, nestas peças, verdadeiros fogos de vista de alusões mitológico-geográfico-históricas, místico-literárias em que surgem alguns anacronismos agravadores de conclusões ilógicas.
Assim se adquire a impressão de que, impregnada da aura swedenborgiana, a musa do poeta brasileiro se tornara caliginosa além de campanuda.
Humildemente confesso a minha total incapacidade para encontrar satisfatórias abertas através do emaranhado garranchoso daquela como que caatinga místico-literária com que, pela segunda vez, tive contactos, depois da frequentação das páginas de Serafita. Deixaram-me estas, aliás, a impressão de indescritível mistifório, de uma das coisas mais enfadonhas que jamais conheci, apesar do apreço imenso em que me orgulho de ter o seu autor imortal, homem qui toujours voyait grand...
Enfim, swedenborgistas por swedenborgistas sejam lidos... e entendidos.
Mas, se neste volume das Poesias Escolhidas há o apocalipsianismo das composições subordinadas ao credo do iluminado escandinavo, nele também se encontram as coisas singelas, as vozes cordiais, os cantos espontâneos de uma alma impregnada de legítima poesia, transbordante de estro rico, meigo e elevado.
Pelo verso de Murat perpassam, então, soberbos laivos verlaineanos de infinita doçura apaixonada:
Dentro do meu coração
Cresce uma árvore frondente,
Onde uma triste canção
Gorjeia constantemente,
Um sabiá da floresta,
Cada ilusão que aparece,
Pergunta: que voz é esta
Que às ilusões adormece?
Cada folha e cada flor
Que cai dessa árvore imensa
São restos do teu amor...
A minha vida era calma
Sem parcéis e sem abrolhos:
Se eu tinha o céu em minh’alma!
E a tua imagem nos olhos!
A saudade da mãe admirável, levava-o agora, quase nos anos da velhice, a lhe alegrar em lindos versos o imenso reconforto que dela lhe proviera:
A tua mão me afaga e acaricia...
Só o teu coração recebe e acalma
O sofrimento do meu coração.
E o teu amor cresce-me dentro d’alma
Como uma flor cresce na solidão...
Quanta espontaneidade nos amavios das quadras de “Vendo-a passar”:
Todo este espaço freme quando voltas,
Rosada e matinal, dos teus passeios;
Perfumam o ar as tuas tranças soltas
E espiam-te, sorrindo, os ninhos cheios.
Tua pele é tão branca que parece
Luz de luar derramada pelos vales,
Andas com o murmúrio de uma prece
E o aroma de uma a flor dentro do cálix.
A borboleta tímida recua
E diz-te qualquer frase quando passa
E, entre invejosa e extática, flutua
Diante de tanta luz, e tanta graça!
Fica-se pesaroso de que preconcebida orientação de espírito haja conseguido captar este límpido e volumoso veio de inspiração, para, numerosas vezes, o turvar no embate entre a dificuldade expressiva de um tumultuar de intricadas ideias e a esquisitice de um sistema religioso, quiçá incoadunável às instigações do estro tropical.
* * *
Afinal, em 1920, apareceu o apregoado carme filosófico do poeta fluminense.
Fugindo à amplidão dos moldes antigos, condensara-se em pequeno número de páginas, a que brilhantemente prefaciou Félix Pacheco.
Entendera Murat, como notou o ilustre apresentador, realizar uma inovação nos processos habituais da factura dos versos, réplica brilhante aos que lhe censuravam “o abandono e desprezo pelos pequenos camafeus que no Brasil haviam virado mania”.
No prólogo destes Ritmos e ideias expôs o seu autor, abundantemente, as causas instigadoras dos seus novos cantares.
Imenso, afirmava, baixara o prestígio da poesia.
Quando se operasse o acordo entre a Ciência e a Religião, aí sim, toda a sua pureza, toda a sua graça, viriam à flor.
Inspirado pelo credo swedenborgiano queria transmitir aos leitores o seu conceito “do que fora o Homem e o que é”.
Acompanhava agora o que entendia ser a linha do aclive descendente do despenhadeiro da Humanidade, quando, expulsa do Éden, rolara do plano superior da Verdade.
Em tom e desalento imenso bradava ao decaído filho de Adão:
Nenhum raio ficou
Do sol que te gerou
Que te nutriu, que te alentou na infância.
Mas,
Então a obra de Deus não é perfeita? Encerra
Um vício original?
Em vez do Bem o Mal,
Foi o que a sua mão deixou cair na terra?
Depois, avistando a cidade, que João de Pátmos vira rompendo de pavoroso caos, para resplandecer ao sol do Paraíso, divinizava o báratro da erronia do êxul paradisíaco desvirtuado da essência original.
Ao Crucificado, e em nome da Espécie, pedia perdão de tanta injúria. E ao Homem clamava que confiante na Redenção deprecasse o divino insultado.
Traduz-se tal prece por belo e conceituoso soneto sobre a Imortalidade da alma, que é das boas coisas do Poema:
Espera homem! Não é em vão, que à porta bates
De quem, por muito amar, abjuraste e ofendeste!
Resiste, com vigor, aos últimos embates
E acusa no Pretório o que ontem defendeste.
No impaciente corcel enterra os acicates
E, lançando-o aos galões, sobre o píncaro agreste,
Verás que já não são tão rudes os combates,
Nem tão revolto o mar, nem tão frio o nordeste.
Ah! tudo tem o seu desenlace e seu termo,
E o que rolou na arena, ou definhou num ermo,
Não se transforma em pó, ergue-se e volve à luta,
E continua a ser o que era ou foi na Terra,
Ganga que o ouro contém, húmus que a flor encerra,
E a vida, palmo a palmo, à podridão disputa.
Prossegue o carme na ardente profissão de fé de seu cantor, ansioso pela reintegração do Homem na incorruptibilidade edênica.
É tudo isto tão íntimo, porém, dos sentimentos da exaltação religiosa do autor que, para os profanos, ficam, a meu ver, a beleza e, sobretudo, a lucidez da obra, notavelmente prejudicadas.
Percebemos o poeta na situação do pensador que o gênio de Antero de Quental evoca:
Em vão lutamos! como névoa baça
A incerteza das coisas nos envolve.
Nossa alma, em quanto cria, em quanto volve,
Nas suas próprias redes se embaraça...
Nos nove anos que ainda lhe restariam de vida, após o aparecimento dos Ritmos e ideias, imenso produziu Murat, mas nada mais publicou em livro.
Nem me seria possível, sob pena de compor alentado tomo, analisar a massa enorme de escritos por ele deixados, e frequentemente do melhor quilate, capazes de por si só firmar alta reputação literária.
Refundiu muitas poesias, realizou numerosos ensaios de crítica livresca e histórica, redigiu volumosas crônicas de reminiscências, de apreciação dos contemporâneos, etc.
Há anos já, ferido de morte, hemiplégico, a vitalidade intensa da magnífica robustez constitucional se lhe concentrava num cerebralismo incansável.
Até o último alento esteve a produzir, a escrever, a ditar...
* * *
Como colocar Luís Murat no conjunto da nossa história literária?
O feitio de seu verso causa-me a impressão de que, frequentemente dominado por invencível preconceito, esforça-se por contrafazer-se. Romântico até a medula dos ossos, hugoano, como tanto se orgulhava de ser, e o era, sentia, ao mesmo tempo, afinidades com esse parnasianismo dos contemporâneos que tanto combateu.
Dele o afastou talvez a aversão pessoal pelos corifeus brasileiros da escola.
Da valia, notável, de sua capacidade descritiva numerosos documentos existem. Entre eles a magnífica e tão justamente apreciada Veneza. Incompressível, o lirismo casimiriano lhe irrompia, a cada momento, em magníficos surtos, mais poderosos do que as instigações condoreiras. Estas aliás, muitas vezes, do mais alto quilate.
Discutida e discutível será a naturalidade do feitio de sua poesia filosófico-religiosa.
Aspectos superiores nela se nos deparam contudo, o da alta cultura histórica, filosófica, literária e o da ânsia espiritual, que a inspiravam.
Não podia, de todo, ser Murat um poeta para o grande público. E nunca o foi, circunstância que parece tê-lo vivamente magoado.
“Por que razão toda a gente aponta apenas três nomes, todas as vezes que se trata dos nossos poetas? Alberto, Bilac e Raimundo?” indagava, em 1902, Artur Azevedo.
Não direi que Murat seja maior nem menor que qualquer dos três, nem a mim compete apreciar aquela apuração, aliás feita sem escrutínio prévio. Mas não conheço entre nós ninguém que tenha, como o autor de Sara, o verdadeiro tipo moral do poeta.
A questão era de mera assintonia entre Murat e o público; divorciara-se o autor das Ondas do gosto de seus contemporâneos graças ao seu pendor em querer chasser le naturel.
Organizasse uma coletânea do que lhe surdira ex-abundantia cordis et ingenii e o apreço dos coévos lhe aureolaria unânime a reputação de altívolo poeta.
Um predicado lhe incorporemos ao ativo, neste desvalioso julgamento de méritos: a originalidade, a resistência à involução pelas propensões do seu tempo, o culto pela Ideia. Displicente, tenaz, voluntarioso, desacompanhado, senão mesmo solitário, avocou-se o apostolado de uma escola nova no Brasil.
Terá conseguido, perante os pósteros, os fins colimados na defesa de princípios literários tão longa e valentemente sustentados? Resguardar-se-á do olvido aquele acervo vultoso, nascido de um sistema constrangidamente arquitetado? Quer-me parecer que não. Jamais bafeja o juízo dos pósteros o contraproducente esprit qu’on veut avoir...
Mas, assim mesmo, da obra dilatada do morto ilustre de 3 de julho de 1929, muita coisa perdurará.
Aquilo sobretudo por onde se expande a alma de um grande inspirado, traduzindo os ímpetos e os ditames da sua humanidade, as vozes da solidariedade de seu pensar, e do seu sentir, com as da sua, com as da nossa gente brasileira...
* * *
Sobremodo imperfeito, meus Senhores, este apanhado pelo qual procurei retraçar-vos a vida do meu antecessor ilustre e transmitir-vos a impressão nascida da leitura atenta de sua obra.
É assunto que impõe estudo de largo tomo. Mais anos, menos, anos, encontrará quem o realize, dadas as dimensões da figura literária de Murat.
Não se pode cingir ao âmbito de um elogio acadêmico, constrito pela urgência dos minutos e o respeito indispensável à paciência do meu auditório ilustre, generoso, e cordato.
* * *
Recebo hoje nova e a mais honrosa recompensa da atração irresistível e diuturna que sobre o meu espírito, e desde os anos da infância, exerceu a noção da magnitude e da unidade de nossa terra.
No seu brasileirismo veementísimo comprazia-se meu pai, a cada passo, em recordá-la.
Estou a ouvi-lo narrar ao meu querido avô materno quanto, certa feita, na viagem de volta de Mato Grosso ao litoral, o desalentara a informação de um tropeiro: “Que distância há daqui Santos ?” indagara, sôfrego por chegar ao Rio de Janeiro, a abraçar os exemplaríssimos e estremecidos pais.
– Quatrocentas léguas, respondera-lhe, singelamente, o almocreve.
– Sempre no Brasil? interrompi-o surpreso.
– Sempre, certamente! respondeu-me meu avô, sorrindo. Isto não é nada para o Brasil, saiba-o você.
Quatrocentas léguas nada eram para o Brasil! Esta noção deixou fundamente perturbados os meus sete anos.
Quantas e quantas vezes, mais tarde, ouvi meu querido pai recordar uma imagem do Visconde de São Leopoldo, que achava singularmente bela e expressiva, evocadora da unidade estabelecida em nosso país pela homogeneidade das ideias, costumes e sentimentos: “É o Brasil como que formoso e gigantesco vaso alabastrino ao Império por Portugal entregue sem uma única frincha. Não temos, pois, o direito de sequer pensar na possibilidade de qualquer apoucamento deste legado imenso e glorioso.”
A impressão de mistério, que malgrado o avanço enorme da civilização, e as formidáveis jornadas de Rondon – ainda envolve grandes tratos de nossa terra, esta sensação do ignoto era, nos dias de minha adolescência, incomparavelmente mais intensa do que hoje.
Como que mesmo parece, com a entrada em cena da aviação, em vésperas de por completo desaparecer.
Sobre mim verdadeira fascinação exerceram sempre as soluções de continuidade do nosso povoamento, as grandes lacunas de nossos mapas, pois já então era o que as exigências da vida me forçaram a permanecer, um viajor infatigável, mas entre quatro paredes.
Vendo-me inclinado a tais indagações decidiu minha querida mãe, sempre solícita pela minha instrução, dar-me os melhores professores que de tais assuntos viviam no Rio de Janeiro.
Assim, durante um ano, estive em contacto com dois mestres eminentes de nacionalismo, a cuja memória, neste momento, quero oferecer um preito de saudade e reconhecimento.
Era um deles – desde muito desaparecido do mundo, – dominado pelo mais impetuoso e honesto brasileirismo, em contínua expansão explosiva de sentimentos: Alfredo Moreira Pinto. Vivia o nosso corógrafo, nec plus impar, para o entusiasmo da confecção de seu enorme e precioso dicionário.
O segundo, propenso à taciturnidade, entregue à meditação contínua, conhecia dos nossos anais as mais íntimas minúcias. – “Sabia e ressabia!” no feliz dizer de eloquente sintetizador: Alberto Rangel. Era o “Cariri jaguaribara”, como, afetuosa e abanheengamente, lhe chamava o boníssimo mestre Vieira Fazenda – a quem, em retribuição, e não menos afetivamente, interpelava: Tapera velha! Era o magister magnificus da ciência brasílica, cujo nome tanto merece ser o do patrono de nossa quadragésima primeira poltrona, não obstante, de sobra, haver provado não ter de todo querido pertencer senão à academia a que, malgrado seu, o haviam associado: a academia humana.
Durante vinte e cinco anos, dispensou-me Capistrano de Abreu a liberalidade extrema do mais leal e afetuoso serviçalismo, manifestação nova e iniludível daquela ausência diogênica de inveja que lhe formava o fundo do íntimo, divulgando, sem a menor restrição, os suntuosos achados do trabalho indefesso, e argutíssimo, amparado por mezzofântica memória.
Esta imposição da continuidade luso-brasileira apontava-ma insistente. Queria-a estudada sob novos aspectos e na maior intimidade.
– O que nos falta, sobretudo, é a história da dilatação continental e a da nossa civilização, – repetia a cada passo.
Em 1902, com entusiasmo saudou as primeiras e tão valiosas descobertas, por Washington Luís realizadas, nos até então ignotos inventários bandeirantes do Sertão, empilhados nos desvãos do Arquivo do Estado de São Paulo.
– Mais vale, às vezes, um destes autos, do que uma grande ruma de Cartas-Régias, – ponderava.
– Enverede por ali, dizia-me imperativamente, não esperdice tempo com Capitães-Generais e Vice-Reis!
Ao generoso ultimatum obedeci.
Assim me dispus a uma empresa que apenas vale pela exigência árdua do labor, a fidelidade da consulta às fontes e o desejo de servir à Verdade. Pois a narrativa da dilatação do Brasil pelos paulistas, avassaladores de milhões de quilômetros quadrados, que, por direito de bulas e tratados, deviam ser castelhanos, é tentâmen cujas dimensões cada vez mais se alarga e exige, para a sua explanação, o concurso de muitos trabalhadores animosos e encarniçados ao trabalho.
Contemporaneamente, e fato curioso, vivia um amigo excelente, – cuja memória persiste com especial saudade nesta Casa a que pertenceu e muito amou, – vivia José Vicente de Azevedo Sobrinho a dizer-me: “O destino marcou a você para escrever a história da nossa Pauliceia. Quem o mandou nascer no dia aniversário da elevação da vila de São Paulo a cidade?”
Deram os anos razão a estas instigações generosas que muito mais refletiam sincera amizade do que a valia das habilitações do instigado.
Já vários anos haviam decorrido desde que eu encetara uma carreira de que sempre auferi o maior desvanecimento: o serviço do Estado de São Paulo.
A princípio na Escola Politécnica de São Paulo, casa da ciência, que também é a da mais acendrado.
E ao lado de um ente excepcional pela inteligência, pela cultura e pelo coração, cujo nome quero recordar em testemunho de verdadeiro reconhecimento filial: Augusto Carlos da Silva Teles.
Em 1917, recebia eu do governo do presidente Altino Arantes a honrosíssima comissão, que até hoje procuro desempenhar à altura de minhas forças: a direção do Museu Paulista, onde mercê de Deus consegui muito do que imaginara para, no solo da Independência, recordar a grandeza da Pátria e homenagear a formidável tradição paulista, consubstanciadora da vastidão de nossa terra, do Brasil uno e indivisível.
A ocorrência das festas centenárias de 1922 e o apoio do tradicionalismo veemente do Presidente Washington Luís permitiram a realização de um projeto que me era sobremodo caro: a decoração simbólica do Palácio do Ipiranga, alusiva à unidade e amplidão do Brasil, através do evolver de seus quatro séculos, e a instalação condigna da secção de História de São Paulo.
Contemporaneamente, prosseguira eu na pesada faina do esclarecimento dos fastos lacunosos, lacunosíssimos, do bandeirantismo.
A uma das esfrangalhadas laudas dos autos gloriosos e ainda inéditos dos inventários do Sertão devi uma das mais fortes impressões de minha vida.
Revestiu-se-me a contemplação de seus toscos caracteres trisseculares da majestade evocativa dos padrões quinhentistas, singelos e rudos, em que se esculpem as quinas ou a esfera armilar, chantados, aqui e acolá, pelas primeiras navegações do descobrimento, em Porto Seguro, no Cabo de São Roque, em Itamaracá, no pontal de Cananeia.
Não! mais grandioso se me afigurou aquele papel do que pedras lioses dos navegantes do Rei Venturoso e do Rei Piedoso. Porque se os marcos atestam a obediência de Netuno e Marte, “ao peito ilustre lusitano”, as páginas do inventário bandeirante se condecoram com uma evocação que não é só portuguesa: pertence ao patrimônio da Humanidade.
E ainda: muito mais veemente significado brasileiro assumiu-me perante os olhos maravilhados o fragílimo ceci da lauda sertanista do que o marmóreo celà dos padrões litorâneos.
Prende-se o estranho e quase ignoto fato à história literária do Brasil; nada mais justo, pois, que o evoque eu agora, perante esta assembleia.
* * *
Aos 29 do mês de dezembro de 1616, e do ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, de mil seiscentos e dezessete, por ser já passado o Dia do Natal do Senhor, e por ser “morto e falecido” Pero de Araújo, naquele sertão de Paraúpava, na tranqueira e arraial do capitão Antônio Pedroso de Alvarenga, mandou o chefe bandeirante que o seu escrivão, Francisco Rodrigues da Guerra, fizesse o inventário da fazenda “deixada pelo defunto, dando-se juramento a Ascenso Luís Grou, para que avaliasse as coisas, conforme sua consciência”.
Era a bagagem do morto assaz considerável: roupa, calçado, redes, armas, ferramenta. Posta em hasta e adquirida pelos companheiros de jornada, a todos os termos de arrematação rubricou Antônio Pedroso, pospondo-lhe invariável, hierárquica e hieraticamente, as duas simples e fortes palavras: “O Capitão”.
Singela e solene mostra desse instinto organizador, profundo entre os paulistas.
Instigação que levava aqueles homens, perdidos no deserto, no meio dos transes da vida tão precária, tão constantemente ameaçada, a cuidar zelosamente dos deveres jurídicos, a respeitar os direitos dos ausentes e a razão de ser social...
Dos toscos apontamentos ia o escrivão tirando os termos sucessivos com que cobria as laudas do seu instrumento jurídico, na repetição das sumárias fórmulas consagradas pela consuetude forense coetânea.
E aquela demonstração civilizada, no meio de tão bruta natureza, insensivelmente, lhe evocou os duros transes que ele e os seus iam vencendo através da floresta americana, à busca de encontros sanguinolentos; de refregas com topiães temininós, gualachos, pés largos, abiuéus e muitas outras nações de negros do gentio da terra; à cata das pintas ricas do ouro, da prata e das pedras; dos súbitos e possíveis assaltos dos monstros e avantesmas do sertão, homens e animais.
Matuiús de pés para trás, e corredores agílimos; coruqueãs antropófagos, de quinze pés de altura; guaiazis, anões formigantes, inumeráveis, crudelíssimos; giboiussús, serpentes imensas, e terríveis, cujas carnes constantemente se refaziam; hahys colossais, nas árvores alcandorados, vivendo do ar, mas matando, por simples ferocidade, os homens que lhes passavam ao alcance dos infindáveis braços.
E, em tropel, lhe acudiram à mente os sacrifícios indizíveis daqueles longos meses de privações, desde a partida de São Paulo, os víveres maus, péssimos, escassos, frequentemente faltando, por completo; os dias de fome, em que, nem sequer, houvera a mastigar os guaribas, os “paus de digestão”, a perda dos rumos, os alarmes noturnos, as vozes misteriosas e aterradoras da Selva, os extravios nos pantanais, o assalto de milhões de insetos sanguissedentos, os entreveros com o gentio, o bochorno dos dias acabrunhadores do verão, as chuvas diluviais e intérminas, o ataque das moléstias ignotas e dizimadoras, a luta contra todos estes recursos de morte com que a terra, forte e virgem, obstinadamente recusava desvendar os seus segredos e repelia os devassadores.
Quanta miséria e quanta coragem! E quanto se lhe não inflaria o peito, num sentimento de orgulho imenso, ao refletir que ele, e os companheiros, serviam o nome luso com a constância e o espírito dos capitães e dos soldados das jornadas da África, e das jornadas da Índia!
Pertenciam àquela gente brava que, no desconforto extremo, na penúria das minúsculas caravelas, aguentava as calmarias podres, equatoriais, geradoras dos dias de desespero dos víveres putrefatos e formigantes de gusanos, da água imbebível, grossa e fétida; causadores dos horrores do escorbuto. Pertenciam à gente da maruja que forçara as tormentas do cabo de Bartolomeu Dias; vencia as insídias de árabes e persas, malaios e hindus; levara as quinas a Macau, a Nagasaki, às Molucas e onde a se mais mundo houvera...
Fora um dos de sua grei quem passara a grilheta da posse humana por sobre a soberbia do Globo não circundado ainda.
E o maior dos dinastas do seu século, a sacra e cesárea majestade de grande imperador quinhentista, concedera ao lugar-tenente, e sucessor, do formidável pró-navegante português o mais resplendente brasão e a mais altissonante divisa; aquela esfera terráquea agrilhoada pela rota do Vitória e acompanhada do mote pelo qual proclamara Carlos V a glória de Fernão de Magalhães: “Primus circumdidisti me.”
E agora, na terra americana, prosseguia, incansável, tenazmente insaciável, a epopeia lusa renovada pelos homens nascidos no planalto de Piratininga, de um cruzamento que elevava a mentalidade vermelha e reforçava a agilidade branca.
Afuroador da floresta americana, sentia o escrivão da bandeira a percepção confusa de que era um dos continuadores dos aventureiros das primeiras lides africanas do rei de Boa Memória e sua ínclita geração, um dos sucessores da maruja do Infante de Sagres, soldado do esforço português nas jornadas de África e do Oceano, da Ásia e da América.
Dilatava-se esse Brasil que as bulas e os tratados queriam mutilado. Ao castelhano, acaso encontrado, intimava-se a recuar bradando-lhe: “Esta terra é do nosso Rei e do nosso Conde donatário de São Vicente!”
E era a sua gente, a gente de sua vila de São Paulo do Campo, a gente já nascida no Brasil, quem promovia a obra do alargamento da terra de Santa Cruz, “pouco sabida”.
– Nós outros, que aqui estamos, diria de si para si, mais padecemos, talvez, do que os vassalos da conquista da África e do Oriente!
E assim, de repente, irrompendo-lhe na alma, pela voz do Épico, o clamor da glória de sua raça, levou-o a irresistível associação das ideias e das situações a escrever, no dorso do inventário do mísero e obscuro soldado da bandeira da dilatação do Brasil, uma das estrofes narradoras do episódio máximo do Poema:
Entrava neste tempo o eterno lume
No animal Nemeu truculento;
E o mundo, que co’o tempo se consome
Na sexta idade andava enfermo e lento.
Nela se vê, como tinha por costume,
Cursos do Sol, quatorze vezes cento,
Com mais noventa e sete, em que corria,
Quando no mar a Armada se estendia.
No pélago africano, infindo, velejavam as naus do Gama e a costa do continente negro continuava intérmina, para o Meridião.
– Rumo ao Sul! Rumo ao Sul! era a inflexível rota que o São Gabriel apontava aos dois outros arcanjos e ao Berrio.
O mar tenebroso, os lusos iam singrá-lo, cheio de horrendos e torvos moradores, perigos e insídias de cada minuto.
Já a esquadra descobria, em novo hemisfério, nova estrela, metendo sempre para o Austro a aguda proa, deixando a serra aspérrima Leoa, e o mui grande reino do Congo, por onde o Zaire passa claro e longo, rio pelos antigos nunca visto.
E o escrivão, cada vez mais arrebatado, pela aproximação do lance culminante, prosseguia a escrever:
Assim passando aquelas regiões,
Por onde duas vezes passa Apolo,
Dous invernos fazendo e dous verões,
Em quanto corre de um ao outro polo;
Por calmas, por tormentas e opressões,
Que sempre faz no mar o irado Eólo,
Vimos as Ursas, apesar de Juno,
Banharem-se nas águas de Netuno.
O poema se desenrolava maravilhoso, enchendo a alma áspera do sertanista de infindo abalo: a evocar as perigosas coisas do mar, que os homens não entendem, os negros chuveiros, as noites tenebrosas, os bramidos dos trovões que o mundo fendem, o lume vivo que a marítima gente tem por Santo em tempo de tormenta e vento esquivo, de tempestade escura e triste pranto.
E coisa certa de alto espanto era ver as nuvens do mar, com largo cano, sorver as altas águas do Oceano.
Findo o episódio de Veloso, que melhor descia os outeiros que os subia, passavam os cinco sóis, e a nuvem que os ares escurecera sobre as cabeças dos nautas apareceu.
Súbito, atroou aos ares o cavo bramido adamastóreo, tentando intimidar a audácia lusa.
E a voz do Épico atingiu a altura dos ecos imortais.
Quanto dominado pela indizível intuição da solidariedade de sua raça, não se sentiria o escrivão da bandeira pertencer àquela gente, mais que ousada, vencedora do filho aspérrimo da Terra, do titão oceânico, cujo domínio derruíra?
Quanto não perceberia também ser um dos obreiros da glória e da dominação lusas sobre a vastidão dos mares e das terras, através das terríveis agruras da selva brasileira?
* * *
Assim, às margens do Araguaia, ou talvez mais longe, no coração do Continente, e em princípios da era seiscentista, ressoavam as estrofes d’Os Lusíadas!
Em muito maior recuo, e por várias diretrizes cardeais, implantaram as bandeiras – paulistas, baianas, amazônicas, e de outras procedências, – o domínio dessa língua que era a sua e é a nossa.
Impetuosamente impelindo o meridiano de Tordesilhas, para o mais longínquo oeste, deram-lhe um império três vezes maior do que aquele que, à fé da diplomacia, devia ser o seu!
As vozes latinas pelas quais no domingo de Pascoela, em Porto Seguro, e em ação de graças, confiou frei Henrique de Coimbra, pela primeira vez, à brisa do Brasil as palavras católicas da Boa Nova, as vozes da “última flor do Lácio”, partidas daquele foco inicial, como que provocaram graças às navegações e às bandeiras outros tantos centros de propagação a exemplo do que se passa na ordem física dos fenômenos vibratórios.
A mesma doutrina eterna se prega, e com os mesmos fonemas, a distâncias imensas do ponto da primeira irradiação: em Santa Vitória do Palmar e em Santana do Livramento, no Senhor Bom Jesus do Cuiabá e em São Luís de Cáceres, em São Francisco Xavier de Tabatinga e em São Joaquim do Rio Branco, em São José de Macapá, em Santo Antônio do Recife...
Encerrado em tamanha vastidão, homogêneo, sem uma única modalidade dialetal, reina o português, avultado, opulentadíssimo, tendente a constituir-se, dentro de meio século talvez, em idioma de uma centena de milhões de brasileiros.
Conseguirá então, totalmente, redimir-se daquela restrição que ao amargor de Herculano fazia explodir. Satisfará ao anseio do otimismo de Ferreira.
Possuirá a plasticidade perfeita e a extensão com que sonhava o nosso grande poeta da Via Láctea e das Panóplias...
Tem a Academia Brasileira a glória de, em nossa terra, ser a legisladora de seu alto clangor, e suave modulação por onde perpassam “silvos de procela e arrolos de saudade de ternura”.
Vejo-me hoje membro do seu Senado de tão notável brasileirismo.
É um complemento a outra e alta recompensa: o título de agregação a esse glorioso Instituto Histórico Brasileiro, cuja folha de serviços a nossa terra nenhuma outra pretere. E a cuja marcha ascendente, perlustradora de uma jornada a que brevemente assinalará o vencimento do centésimo marco milesimal, preside a ação admirável de patriotismo, constituída por Afonso Celso, Max Fleiuss, Manuel Cícero e Ramiz Galvão.
Alguns anos antes da Guerra Mundial, declarava notável escritor francês que, a seu ver, quatro instituições principais sintetizavam, então, os máximos expoentes coordenadores da civilização ocidental: o Estado Maior Alemão, o Almirantado britânico, o Sacro Colégio, e a Academia Francesa.
Esta atuação atribuída ao cenáculo richelieuano é a que servatis servandis me parece, e sem favor algum, poder inscrever-se ao ativo do nosso grêmio, dentro das fronteiras pátrias.
Vive a nossa Companhia em constante fogo.
É o que se nos vincula à consciência nacional.
As saudações devidas à minha eleição recebi-as às centenas, às muitas centenas. As mais altas, as mais afetuosas, as mais inesperadas. Uma grande onda de cordialidade e prestígio envolveu-me, confirmando as previsões de dois ilustres colegas e amigos queridos: aquele a quem a amizade impôs a maçadora e generosa faina da resposta a esta minha parlenda e ao mesmo tempo o ensejo de novo e assinalado triunfo literário, e aquele que em vários dos mais altos centros de cultura universal acaba de dar tão intenso valor à significação da intelectualidade brasileira.
É que da Academia Brasileira muito se exige, imenso se opera.
Atento vive o Brasil às suas decisões.
Anseia para que lhe ofereçamos a codificação brasileira, atualizada, deste idioma a cujo esplendoroso futuro americano prenunciaram os brados rotacísticos e ribombantes de Terra! terra! com que a maruja de Cabral saudou o monte surto do seio do Oceano, naquela imorredoura semana, quinze vezes secularmente festiva, da Páscoa do Senhor.
De nós se reclama a outorga da cidadania a dezenas e dezenas de milhares de vocábulos, vívidos, úteis, sutis, espalhados pela vastidão brasileira. E jamais catalogados, sequer por estes léxicos, que empafiosos, a brasonar da messe arrolada, apenas conseguem oferecer o mais mendaz atestado dos enormes recursos vocabulares do neoportuguês americano.
Representa uma das grandes energias da homogeneização brasileira.
Ao seu como inapelável veredicto se delega a legislação de capital fator da integralização do país. E, cada vez mais incontrastavelmente preponderante. É que, com ele, sobretudo, pode a assimilação luso-brasileira contar para o conglobamento de uma infinidade dos mais díspares contingentes étnicos, afluindo de todos os cantos do mundo, para a amplidão de nossas terras ainda semidesertas e sofregamente procuradas.
A esta migração, fatal e enorme, devemos impor o afeiçoamento aos moldes de luso-brasileirismo essencial, concorrendo para os esforços componenciais de quantos pugnam pela suprema ratio da continuidade de uma tradição já quase quadrissecular.
Assim, permita-o Deus, me seja dado trazer algum contingente a tamanha obra.
E assim, também pela honra de tão alto chamamento, como este que vossa generosidade me conferiu, recebei, Senhores, e, de hoje em diante, meus colegas, os meus protestos de bem servir à Academia Brasileira.