SENHOR Presidente,
Senhores Acadêmicos,
Referem as crônicas do reinado de Luís XI que Nicolau Paulino, cancelário de Borgonha, após uma avaliação conscienciosa dos seus haveres em prata, e ouro, e terras, deliberou instituir um hospital para os pobres. Informado desta resolução, o soberano, que o sabia impenitente na cobrança dos impostos, na perseguição aos devedores mais humildes, aos foreiros mais necessitados, comentou cristãmente:
– É justo que, quem fez muitos pobres, edifique uma casa, para os amparar e recolher.
A vossa Academia foi, – consenti que vo-lo diga, – o meu cancelário de Borgonha. Oriundo de uma família de comerciantes, aos quais a fortuna tem sido propícia, eu me desgarrei do meu rebanho no crepúsculo matutino da vida, à passagem de um dos vossos pastores. Foi há vinte anos, quando o vosso confrade Sr. Coelho Neto andou, como Francisco Xavier nas Índias, a espalhar, entre bárbaros, a árvore da Beleza imperecível, com a semente de ouro do seu verbo. À passagem do taumaturgo, agrupavam-se os discípulos, revelavam-se os apóstolos, surgiam os iniciados. As marcas das suas sandálias eram novos canteiros no areial. As dunas do Ceará, o sertão maranhense, a floresta amazônica deficientemente desbravada, ouvindo o seu Evangelho, palpitaram, prevendo o prodígio. Do ventre do Saara saía um mundo novo. Era o milagre da Palavra fecundando o Deserto.
Ao barulho das multidões que o seguiam, vitoriando-o, aclamando-o, eu me ergui, de longe, nas pontas dos pés, para ver-lhe a passagem. Não o vi. Beijei, porém, a areia do seu caminho e não me saiu mais do pensamento infantil o rumoroso espetáculo da sua glória.
Aos dezesseis anos, tomando, por intuição, o meu bordão de solitário, saí a percorrer, como os monges infantes, os lugares que ele santificara com a sua peregrinação. Florestas, praias, cidades, sertões, eu tudo visitei, acompanhando na terra úmida, sempre veneradas, as suas pegadas indeléveis. Andei. Vaguei. Peregrinei. E vim, perdido nos Alpes, bater à porta do vosso mosteiro de São Bernardo. Era meu direito procurá-la. Era vosso dever, e da vossa piedade, abri-la. Fizestes de mim, pelo prestígio de um dos vossos companheiros, um sonhador, um egresso da fortuna, um rebelde às vantagens da vida utilitária. E manda o Código do Trabalho, em artigo generoso, que o operário seja amparado, na sua desgraça, pelo capitalista que o inutilizou.
A Cadeira que me designastes está, ainda, entre dois esquifes, que reclamam, no vosso templo, a minha oração: Emílio de Menezes, a quem me destes por sucessor; e Salvador de Mendonça, a quem me prestarei, oportunamente, e mais longamente, o culto da minha saudade.
Seria inexplicável, entretanto, que eu, de passagem, não deixasse uma flor, sequer, a quem penetrou a vida entre espinhos, e dela saiu entre rosas.
Salvador de Mendonça avulta, ainda agora, na minha imaginação, com a suave poesia de certas legendas medievais. Uma tarde, há sete anos, retirava-me eu de uma redação de jornal, quando cruzei, na escada, com um ancião de rosto erguido e olhos vidrados, que subia, com a mão esquerda sobre o ombro de um moço, e tateando, com a direita, a madeira do balaústre. Aquela fisionomia de estatuária grega era-me familiar. Eu tinha visto, já, em alguma parte, aquele rosto pálido, ornado daquela barba cuidada, quase alva, cortada em ponta. Em que busto de Homero ou de Édipo me haveriam mostrado aqueles olhos apagados? Em que mármore de Lisipo eu teria descoberto aquele brando sorriso de Sócrates, em que se misturavam, completando-se, doçura e severidade? Voltei sobre os meus passos e contemplei o ancião. Era Salvador de Mendonça, que, glorioso e cego, ia levar à folha, naquele dia, as suas reminiscências.
Nada me patenteia tanto a fragilidade humana como a presença dolorosa de um cego. A contemplação de Homero ou de Milton enche-me de pavor. Diante deles, apontando-os, eu vejo a Natureza, que me diz: “Homem fútil, verme triste da terra, vê, agora, o que és tu! O planeta, dizes, é teu. É teu o que te rodeia. Inventas aparelhos atrevidos para sondar o mistério dos mundos. Sobes às nuvens. Cortas os montes. Desces ao fundo do mar. Entretanto, vê: basta que eu te sopre aos olhos um grão de areia para que te sintas solitário no universo!”
Se o Homem nasceu, realmente, para a contemplação e a posse da Natureza, por que ela não o fez como as pedras preciosas, que refletem o sol por todas as faces? Por que Ela, tão pródiga, só concedeu à alma, para espiá-la e namorá-la, as delicadas janelas dos olhos?
A Natureza dirá, talvez: “Homem, se, vendo-me tão pouco, tanto me desejas e afliges, que seria de mim se teus olhos tivessem, na terra, o tamanho do teu coração!”
Salvador soube, porém, consolar-se da sua cegueira: vivia de recordações e de rosas.
Dentro da sua treva ele criara um mundo novo: plantou um jardim, adotou, ao lado das filhas, uma família de roseiras, e fez, de umas e outras, na glória da sua velhice, o consolo da sua cegueira.
O crepúsculo desta nobre vida, esmorecendo num rosal, tem a doçura religiosa de um grande quadro pagão. Cego e velho, este Anacreonte honesto abandonou a orgia tumultuosa do mundo, e as rosas o recolheram. E ele as apertava, ainda, nas mãos geladas, quando ressoaram os punhados de terra, graves, profundos, soturnos, sobre as tábuas do seu caixão...
Há uma face da sociedade brasileira que vem reclamando, de há muito, o cuidado dos historiadores. É a que se compõe de figuras brilhantes e curiosas, que se não fazem preceder de nenhum anúncio, que prometa o milagre. São árvores fortes e altas, que espantam o céu, agasalham os pássaros, mas de que a selva, em geral, desconhece a semente. São os homens que nascem de si mesmos, sem família notável, sem avós ilustres, sem antepassados gloriosos, e que formam, na vida intensa, a democracia dos salões, da política, das letras e das finanças. No Exército social, eles são os generais de caserna que conquistaram os postos sob a fuzilaria, e que compraram com o próprio sangue, nos campos de batalha, aquilo que é obtido por outros, facilmente, pela simples casualidade do nascimento. Como a generalidade dos heróis, eles começam nas fileiras, na promiscuidade dos quartéis, no tumulto da multidão. Há, entretanto, nestes privilegiados, uma força que os impele para a claridade, desagregando-os do meio em que tiveram origem. São elementos que se individualizam, gotas de azeite que sobem à tona, bolhas de ar que se elevam do leito dos rios, atravessam a água e se aliam, em cima, à espuma que passa... No conjunto da sociedade, eles trazem no orgulho, no desassombro, na rebeldia e, não raro, na brutalidade das maneiras, o estigma da procedência. A aristocracia odeia-os, mas tem de recebê-los, de aplaudi-los, de suportá-los. São os intrusos, que se impõem, e que constituem, geralmente, a fachada de ouro, sempre renovada, do edifício social.
Emílio de Menezes foi um desses combatentes que se impuseram, em um meio propício, com a clava da sua coragem. Descendente de um casal pobre, que desabrochou em oito mulheres e um homem, que era ele, sentiu o futuro poeta, muito cedo, a necessidade de abandonar Curitiba, sua cidade natal. Um dia, uma das irmãs casou com um farmacêutico da capital, e o cunhado, no propósito de auxiliar a família a que se aliara, admitiu como empregado de balcão, na sua farmácia, o único rebento masculino daquele ramo curitibano.
Emílio de Menezes, que andava, então, pelos quatorze anos, era um rapazola comprido, esguio, e de poucas letras. Os seus conhecimentos eram todos primários, bastantes, entretanto, para que ele não errasse na manipulação das receitas, nem confundisse, no comércio miúdo, as raízes medicinais. O “Chernoviz”, com as suas estampas instrutivas, merecia-lhe cuidados afetuosos, despertando-lhe um religioso interesse pelas plantas, pelos animais que se sacrificavam em benefício do homem, pelo conjunto, enfim, dos fenômenos e cousas da Natureza. Foi nesse ambiente, com certeza, no convívio do ácido prússico, da macélia, da nux-vômica, da genciana e da centáurea menor, que o seu espírito desabrochante se impregnou do amargo violento e dos princípios corrosivos que o haviam de particularizar, mais tarde, sobre a terra. O convívio dos venenos havia de, fatalmente, envenenar-lhe a ironia.
Aos dezoito anos, influenciado pelo movimento literário a que dava início o entusiasmo de Rocha Pombo, Emílio de Menezes constituía, pela originalidade da sua figura e dos seus hábitos, uma das curiosidades de Curitiba. As suas roupas, feitas sob as recomendações diretas do seu capricho, traduziam-lhe a esquisitice do gênio, a bizarria das maneiras, a singularidade da imaginação. A calça, larga e comprida, escorria-lhe pelas pernas finas de cegonha humana, repousando em botas enormes, de cores extravagantes. O paletó, frouxo, de comprimento incomum, descia-lhe pela ossatura delgada, com abundância de fazendas e de medidas. A gravata, em borboleta, era um escândalo, que o chapéu de feltro, de abas largas, aplaudia e completava. Possuía poucos amigos, repudiava as orgias, e raramente era visto entre rapazes joviais, mesmo quando se reuniam, de semana em semana, para a missa do seu ideal. Estes, entretanto, o respeitavam e queriam, pela novidade da sua palestra, entrecortada, sempre, de vivacidade maligna, ferina, escandalizante.
Um dia, fatigado da província, onde se indispusera com a maior parte da capital, chegou Emílio de Menezes a Paranaguá, fugindo aos seus conterrâneos. Amigos, pertencentes ao cenáculo de Curitiba, arranjaram-lhe dinheiro para uma passagem, e, com este, algumas cartas de recomendação amistosa. E é com estas, portadoras de esperança, que o vamos encontrar no Rio, quinze dias depois, relacionado, já, nas rodas de imprensa, por intermédio de alguns paranaenses generosos.
Uma das recomendações que trazia, era para o professor Coruja, e dera-lha Nestor Vítor. O destinatário da carta, liberal, afável, gentilíssimo com os rapazes de letras que o procuravam, estendeu a mão ao moço provinciano, abriu-lhe as portas do lar, franqueou-lhe a mesa, o coração, a intimidade. E, um ano depois, casava-se Emílio de Menezes com uma das filhas do seu hospedeiro, em companhia da qual saltava, em 1890, de regresso, em Curitiba, como funcionário federal, encarregado, ali, do recenseamento da população.
Tornando ao Rio de Janeiro, onde a Fortuna o esperava, começou para o boêmio do Paraná um período de prosperidade. Era na orgia financeira do Encilhamento. A falsa riqueza desafiava o apetite dos homens, derramando-lhes aos pés, pródiga, o ouro mentiroso da sua cornucópia de papelão. Emílio, valendo-se de amizades opulentas, obteve capitais e entrou a realizar, na Bolsa, especulações aventurosas. Foi feliz. O ouro enchia-lhe as algibeiras, e passava, das suas, para a dos boêmios necessitados. Morava, então, na Rua da Luz, em uma casa que se tornou, pela sua prodigalidade, a hospedaria dos amigos. À sua mesa, de proporções invulgares, sentavam-se capitalistas e poetas. Da imprevidência da cigarra laboriosa, viviam, então, cigarras e formigas. Tomou o paladar à opulência, à vida suntuária dos banqueiros, aos hábitos aristocráticos da nova fidalguia republicana. Comprava móveis antigos objetos caros, preciosidades de gosto e de custo. Possuía um carro de luxo, onde se acomodava elegante com as suas roupas irrepreensíveis, o seu feltro de Mosqueteiro e os seus plastrons extravagantes, em que brilhava, sempre, uma pedra de preço. Começou a engordar. A prosperidade econômica fizera-se acompanhar da prosperidade das banhas. E quando a primeira fugiu, a segunda, mais leal, mais persistente, mais firme, não abandonou o boêmio. Ficou pobre, mas estava gordo.
Dessa feição do poeta, vós, todos, estais lembrados. A impressão que ele nos dava, nos seus tempos de saúde física, era a de um gigante feliz. A cabeça leonina, ampla, formosa, evocava os dias longínquos da terra em que a bondade era sócia inseparável da fortaleza. A face redonda e corada; a fronte larga; os olhos claros, grandes e doces; o bigode vasto e alourado, reduzindo as proporções da boca forte, de dentes sólidos, davam ao rosto de Emílio de Menezes o aspecto de um gigante de legenda árabe, arrancado pela civilização mais polida às entranhas salitrosas do mar. O corpo enorme, de um Cristóvão descido da montanha para as tentações boêmias da cidade, formava, com a sua máscara poderosa, um espetáculo de singeleza, de graça e de força, que nos fazia recordar, à primeira vista, a infância ingênua da humanidade.
Houve quem o comparasse, um dia, a Benvenuto Cellini. A comparação é acertada. Emílio de Menezes era, em verdade, como o divino bárbaro de Florença, um misto de atleta e de santo de simplicidade e de insolência, de ductilidade e selvageria. Colocado nos umbrais da Renascença, Cellini resumiu, em si mesmo, todo o esplendor e toda a treva de duas idades contraditórias. Rústico e genial, residiam, nele, a um mesmo tempo, a mansidão e a arrogância, a glória e a brutalidade, as delicadezas da intuição artística e os defeitos do instinto irrefreável. As suas Memórias são, hoje, a própria história do Renascimento. A mão que feria, que assassinava, que era o pesadelo dos príncipes, o espanto dos mercadores, o pavor dos lacaios, era a mesma que, instantes depois, se firmava, leve, sobre o ouro, fixando maravilhas espantosas e comoventes, pelo mimo, pelo apuro, pela gracilidade, na curva ressoante das taças e na peanha fulgente dos relicários!
Na arte e na pessoa de Emílio, havia, também, esse amálgama de meiguice e brutidão. Agressivo e generoso, irreverente e compadecido, ele era, ao mesmo tempo, leão e cordeiro. Os seus amigos tornavam-se, para ele, inatacáveis: eram diamantes sem jaça, almas sem pecado, pérolas sem defeito. Os seus inimigos não tinham virtudes: eram arvoredo sem fruto, espinheiros sem flor, terreno sem cultura, sem préstimo, sem utilidade. Havia nele, alternadamente, a humildade e a irreverência. Lisonjeava ou feria. A sua espada era de pluma ou de aço. Tudo dependia, nos combates, do alvo e da ocasião.
O seu gênio estava, entretanto, no brilho do ataque aos adversários. A sua língua, que teria sido servida pela sabedoria de Esopo no segundo almoço de Xanto, não respeitava, então, nem homens, nem santos, nem deuses. A maledicência transformava-se, nesses momentos, para ele, numa arte elegante e sagrada, de que se tornava o mais meticuloso dos sacerdotes. Utilizava a malícia, a sátira, a palavra ferina, com a graça, a volúpia, a perversidade galantes com que em Florença se utilizava o veneno. A sua imaginação, de uma fertilidade americana e de uma riqueza oriental, era, nesse particular, um jardim amavioso e encantado, onde colhia, a todo instante, para os desafetos, cavalheiros ou senhoras, flores de perfídia que entonteciam e envenenavam. As rosas da sua galanteria tinham caule de estilete. Homicida pela palavra, a sua estátua, quando ele a tiver, deve trazer nas mãos, como a de Harmódio em Atenas, um punhal e um ramalhete. À semelhança daqueles rajás indianos que matavam os prisioneiros dando-lhes o pó dos seus diamantes, ele misturava, nas suas vinganças, aos manjares da palestra, a faiscante pedraria do seu espírito. As cadeias de vocábulos com que inutilizava os adversários eram daquelas com que Alexandre algemou Dario derrotado: ensangüentavam os pulsos, mas eram de ouro.
A geração contemporânea de Emílio de Menezes, que é ainda a nossa, considerava-o o maior dos seus humoristas. Eu não sei de quem o fosse menos neste país, e contesto-lhe o título com os mesmos fundamentos que levaram Paul Stapfer a recusá-lo a Voltaire, condenando-o, entretanto, à gravidade majestosa de Shakespeare.
No seu estudo, que eu reputo completíssimo, de Machado Assis, Alcides Maya resume a opinião universal sobre o humour. “O humour – diz ele – é revolta, melancolia, piedade: fora apenas revolta, e não se exprimiria em forma artística, embora irregular; mas também é sombra de alma, humanidade que se não resignou de todo, que ainda sonha, ainda solidária... Brinca de morte com as suas criações; destrói e abate com a coragem negativa de um suicídio executado a rir; sobre a ruinaria que espalha, eleva, como em terra folgada, a pura animalidade; porém ao fundo, bem ao fundo das páginas afeleadas, lá está o ideal, fonte de justiça, de amor e de simpatia.” E em outra parte: “O humorista é um forte bom, vencido, mas sobranceiro à derrota, e na atitude que assume, não de orgulho puro, e sim de altivez dolorosa, há, anulando o despeito pessoal, uma certeza superior das contingências terrenas.”
É essa a legítima interpretação do humour, tomado nas suas correntes originárias. Filho pródigo da Compaixão e do Tédio, o humorista é, entre os homens de arte, o único, no planeta, que não tem leito nem pátria. Se quer chorar, os outros sorriem. Se ele sorri, os outros choram. As suas gargalhadas são lavadas de lágrimas e o seu soluço, quando o emite, vem à boca, doloroso, através de um sorriso Não odeia, nem ama. Os extremos do sentimento são-lhe desconhecidos, porque só ele se não ilude, crente, na terra, com as nuvens mentirosas do horizonte. Uma grande piedade triste enche-lhe o abismo do coração. Quando o rodeiam os pigmeus, ele olha para si mesmo, e sorri. E quando o assaltasse, por acaso, a vaidade da sua estatura, exaltada pelo conhecimento da própria fragilidade, ele olharia, para humilhar-se, o espetáculo das montanhas circunjacentes.
Colocado sem bússola, como todas as criaturas, no deserto da vida, o seu sono é vazio de sonhos, porque ele é o único, na caravana, que dorme sem esperança. Diverte-se com os homens como os deuses se divertiriam com ele. Individualizando-o, ele é o contraste, exato, daquele Luís Garcia, de Machado de Assis, que amava a espécie e aborrecia o indivíduo: o humorista consola o indivíduo e, porque a ela pertence, zomba da espécie. Se a vida fosse um templo, como o de Dagon, ele lhe abalaria as colunas, sepultando-se nos seus escombros com a grande massa dos filisteus.
Como artista, o “humorista” faz lembrar um homem de outro planeta que tivesse, de repente, aportado ao nosso, e que, no desconhecimento absoluto das nossas convenções e costumes, se pusesse, sem consulta, e aconselhado apenas pelo seu capricho, a fazer uso dos nossos objetos comuns.
Indiferente aos valores morais e artísticos, às fórmulas tradicionais e consagradas, a sua originalidade provém, exatamente, do conflito dos seus processos com a generalidade dos processos habituais. A moeda de ouro e o punhado de lama têm, entre os seus dedos, como arte e como moral, o mesmo padrão. Os homens e as cousas, para ele, não têm nome. Ele é o Supremo Sacerdote que lhes ministra o batismo, e que lhes dá um lugar provisório na criação, independente das origens. E como a sua justiça é, aparentemente, arbitrária, nasce, do choque do seu capricho com as convenções estabelecidas, o mérito da singularidade.
Definindo o humorismo como arte, diz Paul Stapfer, com humorística propriedade, que o humorista amarra um ramalhete de penas de pavão na cauda de um porco. O humorismo, como forma, nasce, realmente, do vago escândalo dos contrastes. O escritor que recuasse na imolação de uma página genial no altar de uma pilhéria comum, não seria um humorista. Este não desbarata, porque ele recusa valor à sua fortuna. Abraão, aí, jamais recua no sacrifício de Isaac, porque os pais, nessas montanhas, não reconhecem os filhos...
O que havia em Emílio de Menezes era o satírico; satírico à maneira de Horácio, de Marcial, de Lucílio, de Pérsio e, sobretudo, de Juvenal.
Quintiliano atribui à sátira uma origem puramente romana. Satira tota nostra est. E Horácio, que a perfilhou, concede a legítima paternidade a Lucílio.
A sátira, modalidade combativa, só podia nascer – di-lo um historiador – de um povo belicoso. Ela é uma arma como a espada, como a lança, como a flecha, como os mais perigosos instrumentos de guerra. A civilização grega, que deu Aristófanes, não suportaria a brutalidade de Marcial. As asas de ouro do espírito ateniense tombariam, rotas, ao peso de uma sentença de Horácio. O gênio latino, que levantou o Coliseu, enchendo-o de feras, estava mais apto à criação de um gênero literário que se podia transformar, de súbito, em espetáculo sanguinolento.
Entre o humorista e o satírico aprofunda-se um fosso insoterrável. O humorista zomba do mundo, e de si mesmo. São-lhe defesos a lisonja, o louvor, o elogio individual. O satírico zomba do homem, selecionando os indivíduos, e pode ser lisonjeiro, áulico, palaciano. Juvenal faz o panegírico de Catulo e respeita a austeridade de Adriano. Rabelais, o “patriarca do humorismo”, não encontrou um antídoto humano para o “ridículo de Pantagruel”. Examinando o trigal, o satírico escolhe as espigas, separando-as. O humorista amaldiçoa, ou abençoa, a seara, no seu conjunto; o pão do primeiro é feito com joio. O segundo tritura, para o seu pão, o joio e o trigo.
Exercida genialmente, como o foi por Juvenal, a sátira pode ser, na família ameaçada, a sentinela da virtude. Denunciando o vício atrevido, amedrontando o crime insolente, assinalando, rápido, com um traço de fogo, as feridas de caráter onde elas mostrem os bordos, o satírico é um dos elementos indispensáveis à disciplina dos instintos, dos costumes, das instituições. A sátira é, mesmo, o freio de ouro das sociedades desembestadas.
Sob esse aspecto, Emílio de Menezes foi, no seu tempo, incomparável. A sua irreverência, cáustica, mordaz, dilacerante, encheu vinte anos de vida carioca. Ninguém o ultrapassou no epigrama, na sátira, no dito oportuno e pitoresco. A língua portuguesa não teve jamais, entre nós, de um só homem tão copiosa contribuição de perversidade punidora, dentro das possibilidades da raça. A fama da sua mordacidade foi tão dilatada, que ele se queixava, nos últimos anos, – como sucede, aliás, a todos os satíricos – da responsabilidade, que lhe atiravam, de todas as irreverências que surgiam.
As flores da sua perversidade eram, entretanto, inconfundíveis. E essa produção corre mundo, faiscante, ferina, fraccionada, como um punhado de navalhas sem cabo, em que se deve pegar com cuidado. As suas lâminas têm, quase, um destino previsto. As flechas deste soldado de Anfípolis levavam endereço, geralmente, ao olho direito de Filipe. E vós sabeis como ele as atirava à rua, entre os dedos anônimos da multidão. Em uma roda de amigos, na Rua do Ouvidor, na Avenida, nas mesas da confeitaria Pascoal ou da Colombo, a conversa recaía, extemporânea, sobre um tipo ou sobre um fato. De repente, Emílio, que preferia ouvir a contar, abria em forquilha o polegar e o indicador da mão esquerda, sustentava com eles o bigode farto, e desatava a rir, num riso sacudido, sem estrépito, que era, sempre, à perspicácia dos conhecidos, o anúncio seguro de que a máquina terminara a manufatura de mais uma lâmina.
Certa vez, por exemplo, conversava-se de um escritor eminente, notável, entre nós, pela variedade e abundância das suas manifestações literárias.
– É um gênio – dizia alguém. – Ele faz versos, crônicas, romances, contos, crítica literária; é jornalista, orador, político; enfim, trata de tudo.
– Sim – atalhou Emílio; – mas é prédio da Avenida.
E como o apologista lhe pedisse o segredo da comparação, explicou:
– Muita frente, e pouco fundo!
Alguns dos nossos homens eminentes foram, por muito tempo, o objetivo permanente da sua ironia. Eram uma espécie de alvo em que ele se exercitava, acertando a mão ou, melhor, a língua, sempre que lhe faltavam tipos novos, postos sob a sua pontaria pela fatalidade dos acontecimentos. Entre esses mártires, havia um historiador ilustre, sábio respeitadíssimo, em torno do qual se criara, injustamente, uma lenda de desleixo, de abandono próprio, e, mesmo, de falta de higiene. Utilizando essa versão popular, contava, então, o poeta:
– Uma vez, ele mandou à tinturaria, para ser lavado, um terno com que andava há doze anos. Uma semana depois, aparece-lhe à porta um empregado do tintureiro, e entrega-lhe um embrulho pequenino, que lhe cabia na mão.
E como lhe perguntavam o que seria, Emílio concluía invariável:
– Eram os botões, menino! A roupa, de puída e velha, havia-se dissolvido na água.
Uma tarde, estava um de nós, eminente ironista, ao lado do poeta, quando passou, perto, arrogante, um cavalheiro conhecido na cidade pela sua aversão ao pagamento das dívidas. Ferido pela insolência do tipo, Emílio voltou-se, rápido, para o companheiro, perguntando-lhe, à queima-roupa.
– Em que se parece aquele sujeito com um botão?
O outro não atinou com a chave do enigma, e ele completou, perverso:
– É que ele também não paga a casa em que mora...
Um colecionador anônimo dos seus ditos excelentes registrou, dele, uma série copiosa de “maldades” do gênero.
Havia no Rio um jornalista de má fortuna, diretor de um periódico oportunista, que claudicava de uma perna, aleijada por uma inchação crônica, e que vivia, então, da exploração, mais ou menos inteligente, da vaidade alheia. Uma tarde passava este homem de imprensa e de negócios pela Rua do Ouvidor, arrastando, tardo, a perna enferma, quando um íntimo de Emílio de Menezes lhe chamou a atenção:
– Admira – diz – como aquele homem, com o tamanho defeito, seja tão “cavador”...
– Pois a mim não me admira – contrapôs o poeta.
E voltando-se para o companheiro:
– Ele não tem uma perna “inchada”?
Há vinte anos, era famoso no Rio, pelos seus processos de adquirir dinheiro, um boêmio cuja habilidade se tornou proverbial. A sua fórmula para promover a elasticidade das bolsas era cômoda e comovente. Chegava-se a um amigo, e lastimava-se:
– Veja só! Eu já tive uma fortuna regular, com os meus prédios, as minhas apólices, a minha caderneta de Banco... E hoje, sou isto!
E após uma pausa:
– Você, que me viu tão feliz, não me poderá “passar” uma de cinco mil réis?
Comentando esse meio de vida, Emílio explicava:
– Coitado do Rocha! O que ele diz é verdade. Ele teve posição, casa, fortuna. Hoje, vive do “passado”...
Já enfermo, apoiando-se ao bengalão que sempre o acompanhava, ia o poeta, uma tarde, pela Avenida, quando dele se acercou um dos parasitas do seu conhecimento.
– Boa tarde, Emílio! Como vai a saúde?
– Vai indo. Mas, que é que desejas? Dize, que eu tenho pressa.
O parasita, gentil, maneiroso, aproximou-se do poeta, passou-lhe as mãos pelo teclado de botões do fraque preto, sacudindo as partículas de uma poeira imaginária. De repente, descobrindo-lhe na gola um fiapo branco olvidado pela escova, tomou-o com os dedos, lançando-o, ao solo, enquanto dava o assalto:
– Estou, Emílio, em um dos meus piores dias; arranja-me uns dez mil réis...
– Dez mil réis! – trovejou a vítima, recuando.
E apontando para gola do fraque:
– Põe já o fiapo aqui!
O seu orgulho esteve, sempre, aliado à sua mordacidade. Ninguém lhe feria o brio de homem, mesmo a título de gracejo, sem sofrer, prontamente, a represália. Pretendendo fazer espírito, um deputado convidou-o para um aperitivo:
– Quero dar-te a honra da minha companhia... Vamos tomar alguma cousa...
E o poeta, com um sorriso de piedade:
– A honra? ... Obrigado, meu velho; você já está tão desfalcado...
As suas definições possuíam um cunho inconfundível, pelo pitoresco, pela novidade, pela graça imprevista.
Um dos seus amigos, o padre Severiano de Rezende, de regresso de Paris, onde deixara a batina, surgiu, um dia, diante do poeta, à Rua Gonçalves Dias, trajando jaquetão claro, chapéu de palha, flor à lapela, mas tendo à mão, em conflito com aquela meia elegância, um guarda-chuva de cabo torcido.
– Estás belo, padre, assim à paisana!
– Achas?
– De certo.
E olhando melhor:
– Agora, é só a bengala que traja à clerical.
– Que bengala? – estranhou o ex-sacerdote. – Isto é um guarda-sol...
E Emílio:
– Pois é isso mesmo; que é um guarda-sol senão uma bengala de batina?
De um funcionário do governo que se queixava de não receber os vencimentos há seis meses, e que vivia na penúria, dizia ele, penalizado:
– Coitado! Já tem teias de aranha no céu da boca!...
Em roda de literatos, um deles, discutindo poesia, procurou amesquinhar Machado de Assis, observando, leviano:
– Era um péssimo poeta. O último verso dos tercetos A uma creatura tem onze sílabas; é um verso de pé quebrado!
Emílio, que nutria uma religiosa admiração pelo Mestre, franziu a testa profética, e protestou, soturno:
– Os bons versos não têm pés; têm asas!
As anedotas puramente anônimas de Emílio de Menezes, isto é, aquelas que não visavam indivíduos, nem eram atualizadas com a intercalação de nomes próprios, constituirão, no futuro, um dos mais finos cabedais do repertório da língua.
Não há literatura mais rica, mais opulenta, do que essa de anedotas, que circula pelo mundo nas páginas cosmopolitas dos almanaques. Lendo esses repositórios, sobem a centenas, a milhares, os ditos, os trocadilhos, as facécias que fariam honra aos espíritos mais escrupulosos e agudos. Quem teria lançado, entretanto, à campina sem dono, essas flores maravilhosas? Que mão misteriosa teria passado na treva, semeando, no silêncio da noite, esse trigo de ouro, de que se alimenta, sem susto, a alegria inocente do povo? Quem atirou ao oceano esses punhados de pérolas, que vêm enfeitar, entre o espanto dos pescadores que passam, o colo arfante das praias?
Emílio de Menezes foi um desses perdulários. A sua jovialidade era uma água miraculosa que ele dava a beber a toda a gente, e que ainda lhe extravasava das mãos. Essa água, pura e fresca, irá, mais tarde, como a dos rios, perder-se no mar. Identifiquemo-la, entretanto, enquanto se não dá de tudo a fusão da torrente no oceano.
Certa vez, ia o poeta em um bonde, quando se sentaram no banco imediato, em frente, duas senhoras de grandes banhas, que dificilmente puderam penetrar no veículo. Com o peso das duas matronas, o banco, que era frágil, range, estala, geme, estranhando a carga. Emílio, que observa o caso, leva a mão à boca no seu gesto característico, e põe-se a rir em silêncio, no seu riso sacudido e interior. E como o companheiro o olhasse, explicou:
– Sim, senhor! É a primeira vez que eu vejo um banco quebrar por excesso de fundos!...
E desatou a rir, de novo, sustentando o bigode nas mãos.
No discurso que Emílio de Menezes pretendia proferir à entrada desta Casa, ele queixava-se, amargo, da deslealdade dos ironistas amigos, que se apropriavam das penas zombeteiras com que fazia cócegas no nariz do próximo, e que lhe atribuíam, ainda, em paga, o manejo da urtiga, irritadora da pele.
No trabalho meticuloso em que Fabre reabilita a cigarra, malsinada por La Fontaine, intérprete secular do despeito dos gregos, demonstra esse entomologista a falsidade da tradição que atribui a este inseto, filho do sol, o defeito da imprevidência. E no restabelecimento da verdade, na reintegração dos seres na natureza e no conceito dos homens, conta que a cigarra, nos dias de verão, se aproxima de um ramo tenro, faz-lhe uma pequena cesura, e põe-se a sugar, tranqüila e honesta, a seiva deliciosa da planta. Acossados pela canícula, sem uma gota de orvalho no cálix das flores ou na taça verde das folhas, as formigas correm, de longe, ao aviso da boêmia. E assiste-se, então, a esta cena surpreendente: enquanto a cigarra canta, bebendo, saciando-se à custa da própria tenacidade, as formigas dessedentam-se no líquido que ela derrama, e, na disputa, mordem-na, maltratam-na, agridem-na, procurando afugentá-la, para se apossarem do mel que lhe sobra!
Emílio foi no seu tempo, sob esse aspecto, a cigarra deste formigueiro. Malsinado pelas formigas, que viveram da seiva que ele arrancava, cantando, ainda encontrou, na morte, como a sua irmã de Verão, a injustiça de La Fontaine!
O poeta, em Emílio de Menezes, era o imprevisto desdobramento do homem. Ele recordava, nesse particular, certos rios secundários da Amazônia, em que a superfície das águas não dá idéia do seu volume. Em frente ao meu barracão de seringueiro, no Mapuá, no ponto em que essa corrente se bifurca, apertando nas tenazes a bárbara virgindade da selva, corria a unir-se ao outro o braço mais estreito do rio. Debruçadas nas margens, as juçaras eram como braços femininos e amorosos, oferecendo aos viajantes e às águas o verde ramalhete das suas almas. Abertos em flores roxas, desciam, dia e noite, no rumo do mar, as balsas de mururé, como coroas mortuárias tecidas pela saudade da terra para o enterro do oceano. Ensombrando a correnteza, árvores de toda ordem atiravam à água, enfeitando-lhe o manto, punhados de flores, que deslizavam quietas, entre adeuses de insetos, na ignorância do seu destino... Olhando aquele rio estreito e festivo, eu me supus hóspede de um regato amável, que me mostrava, na sua quietude, nas suas balsas floridas, na frescura permanente das águas, as intimidades do seu coração. Um dia, fui sondá-lo: disfarçada por aquelas flores da superfície, rolava para o Amazonas, rápida, silente, vertiginosa, uma poderosa massa d’água que tinha, diante da minha casa, quarenta metros de profundidade!
Emílio de Menezes era um desses abismos dissimulados. Sob a camada risonha e clara da sua vida jovial, trovejava, grave, profundo, soturno, o rio da sua inspiração poética!
A figura de Emílio tem, no seu tempo, sob esse aspecto, uma feição singular. Tendo chegado tarde para participar do movimento literário iniciado por Bilac, Alberto de Oliveira e Raimundo Correia, e cedo demais para aguardar em silêncio a fórmula e a companhia da geração que viesse, Emílio deliberou constituir, sozinho, o seu apostolado poético. Os muros de Jerusalém eram ressoantes de harpas amorosas quando se ouviu, fora, na solidão do Deserto, o trovão de Isaías. Isolado, sem discípulos, sem mestres, sem precursores nem seguidores, o novo profeta era o oráculo de uma poesia nova, cuja música, de sons cavos, lúgubres, intimidavam e embeveciam.
A arte de Emílio de Menezes não se parece, em verdade, com qualquer outra da sua época. Se os gigantes cantassem, cantariam com aquela sonoridade. Polifemo, chorando sangue e lágrimas pelo olho vazado, devia ter, à beira do mar, o choro das suas blasfêmias. O seu verso, largo, severo, musical, dá-nos na sua impassibilidade majestosa uma impressão de oceano rolante. Os próprios estos do seu amor são austeros, sombrios, de uma grande harmonia descompassada, como se subissem do fundo das ondas. Se Adamastor, assentando no promontório tormentoso, soprasse a sua saudade, entre os uivos das ondas, no côncavo de um búzio tempestuoso, a sua voz não seria, talvez, mais grave e mais triste. Ecoavam na sua boca, blasfemando ou gemendo, as vozes dos titães soterrados. Os seus alexandrinos tinham, na gravidade da música, rebôos de caverna:
Este leito, que é o meu, que é o teu, que é o nosso leito,
Onde este grande amor floriu, sincero e justo,
E unimos, ambos nós, o peito contra o peito,
Ambos cheios de anelo, ambos cheios de susto;
Este leito que aí está revolto assim, desfeito,
Onde humilde beijei teus pés, as mãos, o busto,
Na ausência do teu corpo a que ele estava afeito,
Mudou-se, para mim, num leito de Procusto!...
Louco e só! Desvairado!... A noite vai sem termo,
E, estendendo, lá fora, as sombras augurais,
Envolve a Natureza, e penetra o meu ermo.
E mal julgas, talvez, quando, acaso, te vais,
Quanto me punge e corta o coração enfermo
Este horrível temor de que não voltes mais!...
Neste soneto, instrumentado com a mesma harmonia larga, trovejam os mesmos ecos:
Tomba às vezes meu ser. De tropeço a tropeço,
Unidos, alma e corpo, ambos rolando vão.
É o abismo, e eu não sei si cresço ou si descreço,
À proporção do mal, do bem à proporção.
Sobe às vezes meu ser. De arremesso a arremesso,
Unidos, estro e pulso, ambos fogem ao chão,
E eu ora encaro a luz, ora à luz estremeço,
E não sei onde o mal e o bem me levarão.
Fim, qual deles será? Qual deles é começo?
Prêmio, qual deles é? Qual deles é expiação?
Por qual deles ventura ou castigo mereço?
Entre o perpétuo sim e ante o perpétuo não,
Do bem que sempre fiz, nunca busquei o preço,
Do mal que nunca fiz, sofro a condenação.
Infelizmente, essa feição artística, esse apego exagerado à música dos vocábulos, que constituía a sua virtude, o segredo do seu renome nas letras, foi, também, o veneno da sua glória. De imaginação pouco fértil nesse terreno, e de coração mal encordoado para os dedos do sofrimento, e, sobretudo, sem um patrimônio de cultura que lhe permitisse o suprimento com o recurso das adaptações inteligentes, tinha ele de apelar, necessariamente, para o artifício, para a espuma colorida, para os efeitos do vocabulário, que substituem insuficientemente a idéia. Quando o pensamento é pálido, recorre o artista à beleza da orquestração, em que consegue, geralmente, resultados maravilhosos. Este soneto, pertencente à última fase do poeta, constitui, na apoteose sonora das palavras, um desses apelos felizes:
Aureolado da opala, o topázio, a ametista,
Que o sol ocíduo põe na agonia da tarde,
O monte, que, de légua, ou de léguas, se avista,
Do amplo juso à cimeira, em pedrarias, arde.
À suntuosa mudez não há olhar que resista,
Nem ao quieto esplendor quem se não acobarde,
Um silêncio de luz lhe vai da base à crista:
É o féretro da pompa, é o túmulo do alarde.
Em tal fulgurarão, translúcido, irradia,
E essa translucidez que é apenas ilusória,
Deixa ver que há um Além, além da fantasia.
Desce lenta, entretanto, a noite merencórea...
Queda-se a Natureza, amortalhada e fria,
Na saudosa visão de um momento de glória...
Em palestra, um dia, com Edmond de Goncourt, contou Heredia, sem imediata aplicação do símbolo, um episódio que devia ter, então, alguma relação com a sua poesia decorativa. Certo milionário extravagante, espírito bizarro, dado a prazeres custosos e exóticos, ideara, certa vez, a adaptação de uma figura viva às figuras mortas do seu tapete, e comprou uma tartaruga. Ao chegar em casa notou que a carapaça do anfíbio era rude, áspera, grosseira, e mandou que a polissem. Em seguida, para que se tornasse em harmonia com a decoração suntuosa das tapeçarias, levou-a a um dourador, que a dourou, e, finalmente, a um joalheiro, que lhe incrustou no casco, com afetuosa perícia, um punhado de topázios de preço. Assim adornada, a tartaruga passeou, ainda, dois dias, como um mostruário errante, pelas alcatifas do salão; ao terceiro, porém, sucumbiu, vítima dos artifícios.
Os sonetos de Emílio de Menezes não eram evidentemente meras tartarugas poéticas, valorizadas para o palácio das letras pela faiscante pedraria da concha. Quando assim sucedia, havia uma diferença: é que a tartaruga morreu com a incrustação dos topázios, enquanto que, nos sonetos de Emílio, os topázios, que matam alguns, dão, a outros, a glória da imortalidade.
O conhecimento que possuía dos homens o meu antecessor nesta Cadeira, fê-lo amigo dos irracionais. A casa onde viveu os últimos anos, e onde morreu, na Aldeia Campista, era ressoante de guinchos, de uivos, de miados, de cacarejos, de vozes que se confundiam e subiam ao céu, como se tivesse encalhado na terra, entre árvores, a Arca de Noé. Galgos afilados, angorás voluptuosos, galinhas pintalgadas; galos de cauda em forma de trompa e crista em bico de serra, – eram, no lar, os seus amigos, o seu mundo, o seu universo. Nas exposições caninas e avícolas, era ele, sempre, um dos julgadores do concurso, com autoridade incontrastável no assunto. E tão competente era, ou parecia, na geografia física de tais províncias da Natureza, que toda a gente se lembra, ainda, daquela galinha de cabeça de peru, com que ele concorreu, há três anos, ao certame anual da Sociedade Nacional de Avicultura, nos terrenos em que florescia, há quatro lustros, a suave santidade das freiras da Ajuda.
Diante dos seus bichanos e dos seus “loulous”, Emílio tinha horror à humanidade. Para ele, como para Henry Rabusson, o homem tem necessidade da companhia do cão sempre que pretenda elevar-se na ordem dos sentimentos. Ao contrário de Michelet, que os considerava candidatos à humanidade, ele achava que o homem é que era, ainda, um simples candidato aos sentimentos bons, puros, altos, generosos, que a sua perspicácia descobria nos cães. Como Schopenhauer, Emílio acreditava, ainda, que o homem só teve a noção da sinceridade, classificando-a, como virtude, no dia em que domesticou o cachorro. E nesta simpatia pela animalidade, criava gatos soberbos, galinhas magníficas, perus explosivos e, sobretudo, cachorrões trovejantes, honestos, leais, dedicados, que mandava negociar na cidade, a duzentos mil réis cada um...
São estes os vultos gloriosos cuja herança acadêmica me foi destinada nesta Casa: um, devoto das rosas, que identificava pelo perfume; outro, amigo dos cães, que distinguia pelo ladrido. Pondo Emílio de Menezes os cães acima dos homens, o seu espírito se revoltaria, talvez, no mundo em que repousa, se eu evocasse, a propósito da sua memória, as outras figuras da espécie. Parece-me preferível, pois, nesta despedida, recordar, em uma imagem final, uma sabida anedota do seu agrado.
No cerco de Paris, em 1870, a fome atormentava a população. Os cavalos foram comidos, um a um. Os gatos desapareceram dos telhados, os cães desertaram as ruas, e os ratos, mesmo, foram caçados nos esgotos. Por esse tempo, Charles Monselet, que então escrevia no Figaro, correu às trincheiras, incorporando-se, com o seu “loulou”, o Azor, em um batalhão de voluntários. Durante vinte dias suportou Monselet heroicamente o regímen do batalhão, comendo ratos e gatos, cujos ossos o cão, depois, triturava nos dentes.
Um dia, faltaram os felinos e os roedores, e o jornalista resolveu um sacrifício pérfido: comer o cachorro. À noite, em uma casa vizinha às trincheiras, foi o cão abatido, esfolado, posto a ferver com especiarias estimulantes, e transformado, por milagre de caçarola, no mais saboroso dos guisados militares. Terminado o jantar, Monselet reuniu em um prato os ossos da vítima e gemeu, enxugando os olhos:
– Pobre Azor! Que jantar perdeste hoje!...
É esta, mais ou menos, agora, a exclamação que me cabe:
– Ah, Emílio! Que pilhérias me darias tu, neste momento, se estivesses presente a esta solenidade!