Mas a ação do Estado começa com a preservação da vida e dos direitos fundamentais e, para isso, esta tem que ser a visão prioritária de quem age em seu nome. Não adianta ensinar bons modos, técnicas de defesa e ataque etc. se esse ponto essencial não fizer parte do treinamento diário.
Sei que a violência existe desde sempre, mas é possível coibi-la. Quando assumi o governo do Maranhão, já lá vão 60 anos, encontrei presos amarrados por correntes aos antigos troncos, como no tempo da escravidão. Mostrei essas correntes e garanti que nunca mais elas seriam usadas — e elas foram abolidas.
Hoje mal tenho coragem de ver o noticiário. A ideia de que tantos mortos sejam considerados um resultado secundário de uma ação policial, por mais sucesso que tenham tido em seus objetivos iniciais, me deixa atônito. Admitamos, só para argumentar, que todos fossem bandidos. Mas cada um era uma pessoa, um ser humano com família, pais, mulher, filhos, amigos. Como pessoa, como brasileiro, tinha direito às mesmas garantias do artigo 5º da Constituição que tem cada um de nós. E, possivelmente, alguns deles não eram bandidos.
O bandido tem direito a ser julgado e receber a pena proporcional a seu crime. E quem julgou esses bandidos, no calor da ação, resolveu cumprir ali mesmo a pena de morte: mas a pena de morte é vedada na Constituição brasileira. Assim são rasgadas todas as garantias que lhes assegura o Estado de Direito.
O caminho para resolver isso tem sido apontado por ações como a que, há pouco tempo, atacou os braços financeiros de uma organização criminosa sem qualquer morte. Felizmente, também, parece se firmar a convicção de que, tendo o crime organizado se espalhado pelo País, é preciso a coordenação da União para poder ser efetivo o resultado. Ações pontuais são incapazes de afetar a força dessas organizações. Ao mesmo tempo é preciso criar punições fortes para todo grupo armado — tráfico ou milícia, não se distinguem — que afete a presença efetiva do Estado em qualquer área do Brasil, seja cidade ou floresta.
Dizem que nossas estatísticas de crimes de morte violenta estão caindo. No ano passado tivemos mais de 44 mil mortes, uma queda de 5,4%; mas o número de desaparecidos — grande parte deles são presumivelmente vítimas de morte violenta — subiu 4,9%, passaram de 81 mil. As mortes pela ação do Estado foram mais de 6 mil e constituem 14% das mortes violentas intencionais. Com justiça se considera horrorosa a morte de policiais, dignos de todos os elogios por bravura: eles foram 43 no ano passado.
Há, nessas estatísticas, um terceiro problema: não se sabe quantas mortes violentas por esclarecer foram ou não contabilizadas, como é a norma nos últimos anos; antes dessa regra essas representavam um número da ordem de 20% daquelas. Vemos uma situação horripilante quando somamos os 44+81+8 mil casos: temos 133 mil vítimas. Os números do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram outros pontos chocantes, como a gigantesca proporção de jovens e de pretos, que deveria soar todos os alarmes.
Só para nos situarmos, na atual Guerra da Ucrânia morreram cerca de 30 mil civis, enquanto na Palestina devem ter morrido cerca de 70 mil.
Mas saiamos desses números que, de tão grandes, nos fazem perder a visão humana. Há, em toda essa barbaridade, em toda essa atrocidade, uma outra tragédia: a dos familiares das vítimas. Os pais que choram, as mulheres que se desesperam, os filhos que estão desamparados são faces de dores irreparáveis, de vazios que nunca serão preenchidos. Cada um deles precisa de apoio do Estado, que não lhes garantiu o direito à vida.
Há muitos anos apresentei um projeto de lei para criar um fundo de indenizações às vítimas de violência, a ser suprido inclusive com pagamentos pelos culpados. A mim me parece que é uma lacuna que o País tem que resolver. Joaquim Nabuco tem uma frase que já repeti muitas vezes, pois ela diz tudo. Ele fala do escravizado, mas podemos transpor para os nossos dias: esta questão “versa sobre as aspirações, os sofrimentos, as esperanças, os direitos, as lágrimas, a morte de milhares e milhares de gentes como nós; [e não é] uma questão abstrata, mas concreta, e concreta no que há de mais sensível e mais sagrado na personalidade humana”.
Peço a Nosso Senhor Jesus Cristo, vítima de violência, que morreu para nos ensinar o amor, que ilumine o Brasil.

 
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