Um de meus pesadelos recorrentes envolve algo que talvez não exista de verdade, só simbolicamente: as esculturas de gelo. São as possíveis obras-primas condenadas a serem apreciadas por poucos e por pouco tempo, antes de degelarem e escorrerem rumo ao esquecimento. E, por esculturas de gelo, não se entendam apenas figuras recortadas a cinzel, mas toda espécie de arte efêmera —como a música popular. Quantos shows memoráveis nunca foram gravados? Terá havido registros de Carmen Miranda no Cassino da Urca, em 1938? De Dolores Duran no Beco das Garrafas, em 1957? De João Gilberto e João Donato, juntos, em 1963, na Itália?
Em 1984, Nara Leão deu um show no Centro de Convivência Cultural de Campinas. Ela não sabia, mas algo letal já se formava silenciosamente em seu cérebro. Dois anos depois, no Japão com Roberto Menescal, viu-se ausente no meio de uma canção. Parou de cantar. Menescal, sem saber o que acontecia, cantou por ela. Um minuto depois, Nara voltou a si, sem saber que estavam no palco em Tóquio. De volta ao Rio e constatada a doença, não se abateu —com a ajuda de Menescal, continuou a cantar e gravar, até ser vencida de vez em 1989.
O show em Campinas pode ter sido um de seus últimos ainda em plenas condições. Acompanhada só por seu violão, cantou por mais de uma hora o melhor de seu repertório, de "Olé, Olá", de Chico Buarque, e "Diz que Fui Por Aí", de Zé Kéti, até standards da bossa nova e a americana "There Will Never Be Another You". Osny Chaos, sonoplasta do Centro, gravou tudo. Quarenta anos depois, uma cópia doméstica em CD acaba de me chegar às mãos, cortesia de meu amigo campineiro, o jornalista Edmilson Siqueira.
O que devemos a Osny não tem preço. Esta é uma Nara na intimidade, sem o frio perfeccionismo dos discos oficiais. Às vezes, Nara dirige-se delicadamente à platéia, quase que pedindo desculpas pelo que vai cantar. Não é uma cantora, mas um ser humano em comunhão conosco —que um simples gravador impediu que tivesse o destino do gelo.