Depois, me dei conta de que o defunto estava bem vivo e se chamava Machado de Assis. Já idoso, o reli, em voz alta, para deleite pessoal e, como sempre ocorre com as grandes obras, para aprender algo novo, que sempre escapa na leitura anterior.
Ao longo das décadas, a obra foi ganhando fama e louvor internacionais sempre maiores. Gente famosa como Woody Allen, dentre outros, se declararam fãs do bruxo do Cosme Velho. Não obstante o reconhecimento como um dos grandes escritores da humanidade pela crítica internacional, parece ter ficado na penumbra o lado realismo mágico que se evidencia na obra “Memórias Póstumas de Brás Cubas”.
Não é muito difícil de comprovar o que foi dito no parágrafo anterior. Basta fazer o cotejo das características do realismo mágico com esta obra de Machado de Assis rotulada pela sabedoria convencional como apenas realista. Na verdade, a palavra mágico tem todo o direito de também estar presente. A expressão realismo mágico vem desde os fins dos anos de 1940 para identificar a ficção hispano-americana que se contrapunha ao realismo e ao naturalismo do século XIX, e contra a chamada “novela da terra”.
A fase mais expressiva deste estilo literário teve início nos anos de 1940 com escritores de porte nacional e internacional como Jorge Luis Borges, argentino, autor do famoso livro “O Aleph” (1949); Alejo Carpentier, cubano de origem franco-suíça, autor de “O reino deste mundo” (1949); e Arturo Uslar Pietri, venezuelano, que foi o primeiro a empregar a referida expressão e autor de “Letras y hombres de Venezuela” (1948). Para ele, o realismo mágico incorporou o mistério à realidade, contrapondo-se ao tradicional real lógico-racional.
Todos eles viveram num contexto de ditaduras militares repressivas que impunham forte censura à liberdade individual, política e artística. Na época, escritores e artistas eram frequentemente censurados, perseguidos e até mortos. A saída era se autoexilarem em países democráticos. Seus livros denunciavam as contradições da realidade, mas de forma metafórica, permeadas de situações mágicas e sobrenaturais, dando um sabor alegórico ao enredo, que ludibriava os censores como se fosse mera ficção fantasiosa. Na verdade, a crítica política estava presente de modo velado.
Para fazer o contraponto com a obra de Machado de Assis, vejamos as principais características do realismo mágico: enredos sempre marcados por elementos sobrenaturais; em termos de tempo da narrativa, passado, presente e futuro se misturam sem tender a uma lógica linear; convivência da realidade lógica com elementos mágicos; linguagem subjetiva permeada de metáforas e alegorias; e a presença de crítica político-social velada.
“Memórias póstumas de Brás Cubas” praticamente atende a quase todos os requisitos listados no parágrafo anterior. E nos revela um Machado de Assis como precursor. Mas existe nele a crítica social, qualitativamente distinta da dos autores hispano-americanos. Estes estavam se debatendo contra os horrores de ditaduras militares. Machado viveu boa parte da vida no Brasil do século XIX, onde imperava a liberdade de imprensa e de expressão. A crítica feita por ele era em relação à elite daqueles tempos em que as aparências estariam no comando. E muita gente se baseia em Machado para desqualificá-la. Mas não combinaram com a realidade histórica de então revelada pelas novas pesquisas.
Na verdade, Machado pedia aos deuses que “afastassem do Brasil o sistema republicano, porque esse dia seria o do nascimento da mais insolente aristocracia que o sol jamais iluminou”. E acertou na mosca. Esta passagem do próprio Machado ameniza em muito a visão tradicional da crítica que ele teria feito à aristocracia de então. Mas não é só isso. Diplomatas brasileiros, também historiadores, habituados por dever de ofício a consultar as fontes, como Hélio Vianna, Boris Fausto, Oliveira Lima e Heitor Lyra foram unânimes em reconhecer o bom desempenho do Império na economia.
Mas a pá de cal nesta visão pode ser confirmada no Abstract do bem fundamentado artigo “Estagnação Secular? Uma nova visão sobre o crescimento do Brasil ao longo do século XIX”, de autoria dos professores Edmar Bacha, Guilherme Tômbolo e Flávio Versiani.
Ali é dito o seguinte: “A historiografia econômica consolidada afirma que o PIB real per capita brasileiro estagnou no século XIX, e que ele cresceu muito devagar no período monárquico (1822-1889). Nós contra-argumentamos que estas conclusões estão baseadas em métodos inadequados e em evidência estatística insuficiente. Trabalhando com base na metodologia de Tômbolo (2013) e fazendo uso de nova base de dados, nós estimamos que, ao longo do período 1820-1900, a renda real per capita do Brasil manteve uma tendência de taxa de crescimento de 0,9% ao ano, um desempenho semelhante ao crescimento da Europa Ocidental e de outros países latino-americanos na época”.
Matéria na íntegra: https://odia.ig.com.br/colunas/gastao-reis/2025/05/7061199-machado-de-assis-realismo-magico-e-desigualdade.html [1]
04/06/2025Links
[1] https://odia.ig.com.br/colunas/gastao-reis/2025/05/7061199-machado-de-assis-realismo-magico-e-desigualdade.html