José Castello
No Mínimo (09.04.2006)
Enfim, 110 anos depois de sua fundação por Machado de Assis - que a presidiu entre 1897 e 1908-, ares de modernidade, cada vez mais intensos, passam a soprar nos salões da Academia Brasileira de Letras. Estes novos ventos, que deram seus primeiros sinais na virada do século, têm, hoje, um símbolo secreto: o poeta e crítico literário Antonio Carlos Secchin, de 53 anos, o mais jovem “imortal” da ABL. Empossado em 2004, o caçula Secchin foi, por exemplo, um dos mais entusiasmados articuladores do movimento que, há um mês, e pela primeira vez, levou um cineasta de prestígio, Nelson Pereira dos Santos, à Academia. Nelson, que recebeu 27 dos 34 votos, ocupa agora a cadeira de número 7, que tem como patrono o poeta Castro Alves.
Os primeiros sinais mais claros dos novos tempos surgiram em 2002, dois anos antes da chegada de Secchin à imortalidade. Naquele ano, para espanto geral, o escritor Paulo Coelho, um best seller internacional visto com suspeitas pela crítica literária e tomado mais como um fenômeno da cultura pop que da cultura literária, elegeu-se para a cadeira 21. “Minha vitória é uma pergunta aos críticos”, Coelho aproveitou para desabafar, na ocasião. Era, mais que isso, uma pergunta a respeito do futuro da Academia Brasileira de Letras e do novo estilo de imortalidade que o século 21 anuncia. E a resposta era simples: é preciso mudar.
“Começa a se desfazer a imagem de uma academia exclusivamente voltada para si mesma e para a imagem de seus veneráveis ancestrais”, analisa Secchin. A simples presença do jovem Secchin entre os imortais aponta para isso. Doutor em Letras pela UFRJ, professor respeitado por seus pares, ele já deu aulas de literatura brasileira em Bordeaux, Mérida, Rennes e Roma. É um realizador, que já orientou dezenove dissertações de mestrado, onze teses de doutorado e duas pesquisas de pós-doutorado. Mais que isso: é um homem conhecido por sua extraordinária capacidade de trabalho, por sua obstinação e, sobretudo, por sua discrição. Um homem culto e pragmático, exemplo raro da preciosa combinação entre a capacidade de pensar e a capacidade de fazer.
Só um homem assim pode, de fato, enfrentar os fortes preconceitos que ainda pesam sobre a imagem da Academia. Muitos ainda pensam, Secchin se lamenta, que a ABL sobrevive do apoio oficial. Não é verdade. Mas o fato é que as crescentes receitas da casa, provenientes do aluguel dos andares de seu prédio monumental no centro do Rio, começaram a permitir vôos cada vez mais independentes. A chave da modernidade está guardada aí mesmo, no cofre, e não em outro lugar. “Austregésilo de Athayde, que de forma austera presidiu a ABL durante décadas, administrou investimentos que germinaram nas presidências que o sucederam”, Secchin argumenta. Enfim, é a hora da colheita.
Esplêndida saúde financeira
O pernambucano Belarmino Maria Austregésilo Augusto de Athayde, que faleceu em 13 de setembro de 1993, aos 94 anos de idade, teve o mais longo reinado entre os presidentes da ABL, presidindo a instituição entre 1959 e 93. Graças à inteligente política financeira que implementou, os escritores Josué Montello, Antonio Houaiss, Nélida Piñon, Arnaldo Niskier, Tarcísio Padilha, Alberto da Costa e Silva, Ivan Junqueira e Marcos Vilaça, os presidentes que, pela ordem, o sucederam, puderam, gradativamente, expandir o campo de ação da casa. “Poucos sabem que a ABL mantém hoje, na Universidade de Oxford, Inglaterra, sem nenhum apoio oficial, uma Cátedra Machado de Assis”, Secchin exemplifica.
A verdade é que a ABL entrou no século 21 com uma esplêndida saúde financeira, cujo pilar é o Palácio Austregésilo de Athayde, o monumental edifício de 28 andares, inaugurado, há mais de duas décadas, no número 231 da Avenida Presidente Wilson, centro financeiro do Rio. Ele fica bem ao lado do histórico Petit Trianon, prédio doado pelo governo francês à ABL em 1923, réplica do Petit Trianon de Versailles, e primeira sede própria da casa. A estratégia empresarial de Athayde foi perfeita. De acordo com ela, a construtora auferiu o valor dos aluguéis de 27 dos 28 andares ao longo vinte anos, findos os quais eles passaram em bloco - e eternamente - a ser pagos à Academia. Isso aconteceu exatamente na virada do século, durante a gestão Tarcísio Padilha, entre 2000 e 2002.
Uma das conseqüências da entrada desse dinheiro foi a inauguração, no ano passado, da magnífica Biblioteca Rodolpho Garcia, no segundo andar da sede nova, ocupando uma área de 1.300 m2 e com um acervo de mais de 10 mil obras. Toda a estratégia financeira foi arquitetada pessoalmente por Athayde que, se não deve entrar para a história literária como um grande escritor, ficará, por certo, como um notável gerente financeiro. A prova disso é que a taxa de ocupação do prédio, este ano, bateu os 100%, estourando os cofres dos imortais. A editora Rocco, por exemplo, ocupa, sozinha, um dos andares, o oitavo.
Esse espírito realizador, sabem os acadêmicos mais pragmáticos, precisa ser conservado a todo custo, e por isso Secchin é, desde já, o mais forte candidato à sucessão do atual presidente, Marcos Vilaça - que foi eleito para o biênio 2006-2007. Apesar disso, ele conserva, sempre, a postura clássica dos acadêmicos, seja no estilo diplomático, seja na reverência enfática a seus pares e antecessores. Acredita, por exemplo, que sua juventude - apontada sempre, por seus admiradores, como uma grande qualidade - é apenas relativa. “Quem é mais idoso?”, ele argumenta. “Alguém com 40 anos, num período em que a expectativa de vida é de 50, ou alguém com 50, com expectativa de 80?” De qualquer modo, em termos absolutos, recorda, o acadêmico Magalhães de Azeredo é praticamente imbatível. Com 26 anos de idade, integrou o quadro de fundadores da ABL e só veio a falecer 65 anos depois, em 1963, aos 91 anos de idade. “Ele viveu no Império, no alvorecer da República, viu a primeira e a segunda guerras mundiais, soube da fundação de Brasília e chegou aos governos de Jânio e de Jango”, relembra Secchin. Por pouco, e seria testemunha do golpe militar de 1964.
Candidatos de toda espécie
A habilidade política é outro atributo de Secchin que, apesar de engajado em um processo de renovação, não deixa de flertar com os conservadores, enfatizando sempre os aspectos eternos da instituição. “No pouco tempo em que estou na Academia, entendi que há espaço para alterações de regimento, mas não dos estatutos, estabelecidos em 1897 por Machado de Assis, Joaquim Nabuco, Rodrigo Octavio, Silva Ramos e Inglês de Souza”, ele distingue. Um pé no futuro, outro no passado. “Num mundo regido pelo frenesi do descarte e da obsolescência, não é mau que haja uma instituição que seja, ao mesmo tempo, sólida e menos sôfrega a aderir compulsivamente àquilo que se declara estar em moda.” E enfatiza: “E isso, fique claro, nada tem a ver com o imobilismo e o elogio do anacrônico.”
Mesmo que nunca venha a presidir a ABL, o poeta e ensaísta Antonio Carlos Secchin encarna, desde já, esses tempos de renovação. Como resultado deles, o número de postulantes à imortalidade multiplicou. A longa lista de candidatos vai do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ao humorista Jô Soares. “Há candidatos de toda espécie”, descreve Secchin. “Os crônicos, os conjunturais (relacionados a um perfil específico de vaga), os arautos de si mesmos, os que representam facções da Academia. Mas, no fundo, tudo se resume a dois tipos: os que ganham e os que perdem”. Sabe-se, embora Secchin (discreto) se esquive e não confirme, que Fernando Henrique e Jô Soares condicionam suas candidaturas a alguma forma de garantia de que não venham a ser derrotados. Buscam, ambos, uma espécie de aclamação - o que não combina com os princípios democráticos da ABL.
Prudente, Secchin se limita a dizer que não vê motivos para que eventuais interessados na imortalidade temam a derrota. “A derrota pode ser episódica, fruto de uma estratégia equivocada”, diz. Mas, ao contrário do que se passa na política republicana, o mesmo não pode ser dito a respeito da vitória. “A vitória é irreversível: não existe ex-imortal. O título é perpétuo e irrenunciável.” O medo de perder, provavelmente, pesou para o maestro Tom Jobim que, em 1993, resolveu se candidatar à vaga aberta com a morte de Athayde, mas, pouco depois, desistiu em favor de Antonio Callado. Em resumo: quem quer se tornar imortal não pode ter medo de morrer.
Um nome de consenso hoje, de quem os acadêmicos esperam ansiosamente a candidatura, é o arquiteto Oscar Niemeyer. “Quem ousaria negar-lhe um voto por ele não ser escritor, e sim um notável arquiteto? - pergunta Secchin. Outros nomes cobiçados pela ala dos acadêmicos renovadores são o do crítico literário Antonio Cândido, do escritor José Rubem Fonseca e do músico e escritor Chico Buarque. “Mas, infelizmente, nenhum dos três parece disposto, até aqui, a se candidatar”, Secchin lamenta. Essa aposta nos “criadores” não só justificou a eleição de Nelson Pereira dos Santos, um grande criador de filmes que são, em parte significativa, adaptações de obras literárias. Ela embasou, por exemplo, a chegada à imortalidade tanto do cirurgião Ivo Pintanguy (um criador de rostos), como do ex-vice-presidente da república Marco Maciel, que, a rigor, é fundador apenas do Partido da Frente Liberal.
A eleição de um cineasta como Nelson Pereira dos Santos, que a alguns pareceu exagerada, foi, para Secchin, mais que justa, na medida em que contempla um homem de consagrado perfil autoral. Um artista plástico, um músico, um diretor de teatro também poderiam - poderão - ter um lugar na ABL. “Eu só veria dificuldade, por exemplo, para a eleição de um cantor que não fosse, também, um criador”, Secchin diferencia, “pois lhe faltaria a instância propriamente autoral que legitima as candidaturas”. O próximo imortal, afirma-se nos bastidores da Academia, será o maior bibliófilo do país, o empresário José Mindlin, cuja eleição é dada, hoje, como certa.
Eleito à revelia
Secchin é um dos mais entusiasmados defensores da idéia de que, mesmo sem ser um literato, qualquer criador tem o direito de cobiçar uma vaga na Academia. Seu argumento principal é o de que, segundo os estatutos pétreos da ABL, a casa “tem por fim a cultura da língua e da literatura nacional”. Ele comenta: “Com uma diretriz tão ampla (e vaga), quase nada pode ser excluído”. Isso não pode ser entendido como um desinteresse pela literatura. Secchin recorda que a ABL concede, hoje, bolsas para escritores, organiza cursos e seminários sobre literatura, apóia a vinda de escritores estrangeiros ao país e edita uma revista importante. “Uma pena que a imprensa ignore quase tudo isso”, lamenta.
Para Secchin, o discurso anti-Academia, apesar de tudo, não perde força. “Os apóstolos da catástrofe lamentam quando um nome que eles consideram de valor entra para a Academia, em vez de alegrar-se pelo fortalecimento da instituição”, diz. “A cada novo e bom nome, vão perdendo a base de sua argumentação.” Apesar disso, muitos temores e superstições cercam, ainda, a experiência da imortalidade. O caso mais clássico é do romancista João Guimarães Rosa que, eleito em maio de 1963, por unanimidade, adiou por várias vezes sua posse, com medo de morrer. Ela só aconteceu quatro anos depois, no dia 16 de novembro de 1967. De fato, ele morreu subitamente três dias depois de ser empossado. Mas Secchin corrige a interpretação mais comum a respeito dessa morte. “Rosa não tinha medo de tomar posse. Cardíaco, tinha medo da emoção subseqüente à posse, de tal modo valorizava a Academia”, distingue. A prova maior seria a de que, apesar de seu grande prestígio literário, Rosa se candidatou à ABL mais de uma vez, sendo derrotado por Afonso Arinos. “Num gesto que enobrece a ambos, foi exatamente Arinos quem o recebeu na sessão de posse, em 1967”, Secchin recorda.
Secchin admite, contudo, que a sociedade brasileira ainda tem muitos preconceitos em relação à imortalidade. Muitos clichês cercam a vida dos acadêmicos, por exemplo, a idéia de que, mecanicamente, eles caem nas graças da mídia e se tornam figuras populares. Deixariam de ser escritores, para se tornarem, da noite para o dia, celebridades. “Fui eleito em junho de 2004, e esta é a primeira vez que me convidam a dar um depoimento sobre o assunto”, exemplifica. Antonio Carlos Secchin não abandonou a vida de escritor. Este mês, ele é o homenageado da coleção “Cinqüenta poemas escolhidos pelo autor”, da editora Galo Branco - uma pequena editora que retoma uma coleção homônima que fez grande sucesso nos anos 50.
A história da Academia Brasileira de Letras não recomenda a aposta em candidaturas precoces. Muitos dos candidatos à imortalidade que se julgavam eleitos nunca entraram na casa. Jorge de Lima tentou se eleger imortal por seis vezes, Mário Quintana por três, Monteiro Lobato e Oswald de Andrade, por duas - e nenhum deles conseguiu. Forças secretas pairaram sobre os salões de Machado de Assis. Cheio de temores, Santos Dumont candidatou-se, em 1931, a uma vaga; logo depois, renunciou à candidatura mas, ainda assim, foi eleito à sua revelia. Ele se suicidou pouco depois de se tornar imortal, nunca chegou a tomar posse.
Prudente, Secchin age como um político clássico quando lhe perguntam a respeito de sua candidatura à presidência em 2008. “É totalmente prematuro conjeturar nomes para a presidência”, ele se apressa a dizer. “Eles tendem a surgir através de consenso e na hora apropriada”. Mas a importância de sua figura, o pragmatismo e o espírito de aventura que ela sopra nos velhos salões da ABL são notórios. Modesto, ainda assim, ele prefere descrever, e limitar, suas atuais funções na casa à “interlocução com a universidade”. Que seja. Mas as apostas podem começar.
23/05/2006 - Atualizada em 22/05/2006