Boa noite, senhor presidente da Academia Brasileira de Letras, Merval Pereira, meu querido e eterno chefe, presidente José Sarney, senhores da mesa, senhoras e senhores acadêmicos, senhoras e senhores, Marisa, que está aqui, minha filha Cristina, que veio de longe, né?
Tenho aqui alguns parentes e amigos que vieram ao Rio de Janeiro, eu me sinto duplamente desvanecido nesse momento pela homenagem e também pelo discurso do presidente José Sarney.
Eu credito grande parte do que ele disse, à generosidade e à amizade que nos une.
Como ele bem lembrou, nós vivemos juntos momentos dramáticos.
Eu não o conhecia... quando fui para a presidência, porque eu havia sido indicado pelo doutor Tancredo Neves, mas como ele contou... ele quis que eu ficasse... e foi para mim um momento decisivo de minha vida.
Eu posso dizer a vocês...eu sei que não é o momento de a gente falar disso agora, mas a verdade é que a presidência do doutor Sarney foi muito incompreendida na época.
Na época havia uma expectativa exagerada depois de 21 anos de governo militar, se esperava quem sabe que de repente houvesse um milagre, né?
E os problemas estavam lá, inclusive os problemas herdados dos militares, que a gente não costuma lembrar, mas foram eles que deixaram não só as instituições completamente destruídas, né?
Era preciso reconstruir tudo, Constituição, direitos humanos, mas eles nos regaram duas heranças malditas, a herança da dívida externa, o problema da dívida externa que veio dos militares e a herança da inflação crônica descontrolada que já na época do presidente Figueiredo atingia níveis extremamente altos.
Foi o regime civil, com todas as dificuldades, com as expectativas que tinha que enfrentar que pouco a pouco foi resolvendo todas essas questões.
E eu vivi ao lado do presidente Sarney esses momentos e é minha profunda convicção que se o Brasil hoje completou 40 anos da nova República, - que é um dos períodos mais longos de estabilidade de um sistema político na nossa história - só se compara ao Segundo Reinado e à Primeira República; os outros todos foram muito mais curtos - se deve, em grande parte, à obra do doutor Sarney.
O que ele fez para tornar possível a Assembleia Constituinte! Eu não sei se um dia ele vai contar a história, mas as ameaças e o retrocesso dos militares eram quase que semanais.
Os problemas foram extremamente graves e foi preciso realmente um prodígio de serenidade, de equilíbrio, de sabedoria para levar as coisas finalmente ao resultado que nós todos temos a alegria de poder desfrutar.
Eu gostaria agora de também dizer algumas palavras, espero que me perdoem.
Em primeiro lugar, pelos outros agraciados, meus colegas que receberam as medalhas, eu me sinto muito honrado ao lado deles todos, e um pouco também para responder a essa homenagem que a Academia me presta.A Academia Brasileira de Letras sempre me tratou bem, mas agora se excedeu na generosidade. Perdi a conta das vezes em que fui convidado a falar nos ciclos da Academia, acho que foram quatro ao menos, sobre Joaquim Nabuco, o barão do Rio Branco, o bicentenário da Independência, a diplomacia brasileira de Napoleão a Putin. A palestra de 2019, véspera do bicentenário, cujo título provocativo era “Um futuro pior que o passado?, até hoje é meu texto mais lido no site da ABL. Em 2018, recebi o Prêmio Senador José Ermírio de Moraes pelo livro A diplomacia na construção do Brasil.
Pensei que havia esgotado a cota de bondades que se poderia esperar numa vida humana até ter a alegria de ser agraciado com a homenagem suprema, o Prêmio que leva o nome do nosso supremo escritor Machado de Assis. O que poderia, com efeito, ser mais honroso do que figurar ao lado de Guimarães Rosa, Gilberto Freyre, Cecília Meireles, Gilka Machado, Paulo Rónai, Antonio Candido, meu querido amigo de mocidade Antonio Carlos Villaça, para lembrar somente alguns mortos? Ao lado de Adélia Prado, destinatária do Prêmio no ano passado, dos demais que não citei porque seria cansativo, a lista mais parece o Quem é Quem?, o catálogo da cultura do país dos últimos 80 anos!
Com humildade e consciência das limitações individuais, espero poder justificar minha inclusão apesar de medir a dificuldade, em meu caso, de agradecer como fez Adélia Prado em 2024. Não podendo estar presente pessoalmente, conseguiu que a noite da entrega do Prêmio se transfigurasse pelo sopro da poesia, na própria voz gravada de Adélia e na igualmente emocionante declamação da filha Ana e de Tony Ramos. Não tenho à minha disposição nem a poesia nem a ficção, só uma prosa trivial, sem inspirações sublimes. O que posso fazer com isso?
Por sorte, além da prosa, o Prêmio, como se sabe, destina-se a tomar nota do conjunto da obra. Aliás, ao anunciar a decisão, nosso amigo e presidente Merval, citou como títulos, além de meus livros, a vida pública que tive, os cargos de ministro que ocupei em situações de certa importância na história do país.
Suponho que se referia sobretudo a meu papel no Plano Real, ao ajudar a preparar e lançar a nova moeda. Ação coletiva por excelência, o Plano se deveu, em primeiro lugar, a Fernando Henrique, ao presidente Itamar, ao grupo de economistas excepcionais onde se destacou nosso colega Edmar Bacha. Quando cheguei, o processo já estava em andamento. Tentei fazer o que pude, resisti às ameaças à integridade do projeto. Empenhei-me em falar às pessoas simples do povo sobre as vantagens que nos traria o fim da inflação com tanta frequência e entusiasmo que Itamar me chamava de “sacerdote” ou “apóstolo” do Real. Tive a alegria de, juntamente com o Presidente, lançar a nova moeda em 1º de julho de 1994. Hoje, trinta e um anos depois, ela continua uma sólida realidade. Seria insincero se negasse que foi o melhor momento de minha vida.
Quanto aos livros, tive de esperar pela aposentadoria para publicar, aos 80 anos de idade, o mais extenso deles, A diplomacia na construção do Brasil. O primeiro comunicado de imprensa sobre o Prêmio continha certo exagero sobre o número de livros que escrevi, bem menor que o mencionado. O que não foi fácil, de fato, foi conciliar os artigos regulares na “Folha de São Paulo” durante quase 20 anos, as aulas no Instituto Rio Branco e na Universidade de Brasília, com o trabalho no Itamaraty e na Presidência, como ministro do Meio Ambiente e da Fazenda, funcionário da ONU em viagens incessantes pelo Iémen, o Camboja, o interior da Etiópia e da Tanzânia. A única vez que falhei foi ao tentar enviar por fax a coluna da Folha a partir da capital cambogeana de Phnom Penh, num país ainda mal saído do genocídio.
Minha obra é quase toda dedicada à matéria diária dessas ocupações: a diplomacia, as relações internacionais. Se me perguntarem o que deduzi de anos de ensino e estudo sobre a evolução diplomática brasileira direi ser a convicção de que nenhum outro país deve à diplomacia tanto como o Brasil. Primeiro por ter assegurado pela negociação a aceitação pacífica da expansão do território para mais de dois terços do que nos teria cabido originalmente. Em seguida por haver construído um patrimônio inestimável de “soft power”, isto é, de poder nascido não da guerra e das sanções econômicas, mas do exemplo, do diálogo, do espírito de moderação e compromisso.
Poucas nações podem se orgulhar como o Brasil de uma tradição ininterrupta de 155 anos de paz com dez vizinhos desde o fim da Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai em 1º de março de 1870. Esse resultado não foi uma dádiva da História, mas teve de ser conquistado com esforço e perseverança. Nossa primeira guerra, a da Cisplatina a respeito do Uruguai, começou três anos apenas após a Independência. Ninguém mais lembra o que custou em termos de sofrimento humano, vidas sacrificadas e oportunidades econômicas perdidas manter a unidade e a estabilidade interna nas primeiras décadas da independência e a segurança nas fronteiras platinas depois. A Guerra do Paraguai, que consumiu o equivalente a onze anos do orçamento do Império, motivou o barão de Cotegipe a lamentar: “Maldita guerra, atrasa-nos cinquenta anos!”
Tampouco foi fácil conseguir que o panorama mudasse com a República. Quando o barão do Rio Branco voltou para ser ministro do Exterior em fins de 1902, a revolta de Plácido de Castro estava em pleno curso no Acre. Naquele tempo de auge do imperialismo, nada teria sido mais natural que a anexação pura e simples do Acre, cuja população era maciçamente brasileira. Por julgar que seria uma “conquista disfarçada...em contraste com a lealdade” que sempre tínhamos seguido com as outras nações, Rio Branco rejeitou a hipótese e preferiu negociar uma solução consensual, dando compensações à Bolívia, sendo duramente criticado por isso.
Alertado pelo conflito acreano, passou os nove anos de gestão resolvendo de modo sistemático todas as questões pendentes de limites. Nunca se afastou do método do diálogo e do entendimento. “É mais prudente transigir” escreveu “que ir à guerra. O recurso à guerra é sempre desgraçado.” Ao tomar a iniciativa de corrigir em favor do pequeno Uruguai o leonino Tratado de Limites de 1851, não aceitou as contrapartidas oferecidas. Explicou que o que nos movia não era a busca de gratidão, mas a convicção de que esse testemunho de amor ao direito ficava bem ao Brasil e constituía uma ação digna do povo brasileiro.
Os exemplos de Rio Branco, Nabuco e de outros edificaram um sistema de valores éticos e políticos que acabou por se confundir com a própria ideia que os brasileiros fazem da nação. De Gaulle dizia num texto célebre que imaginava uma “certa ideia da França”, que, para ele, era inseparável da grandeza, de conotação obviamente napoleônica. Para nós, o conceito de Brasil é inseparável da diplomacia, da paz, do entendimento, da harmonia com os vizinhos e o mundo.
Dirão alguns que se trata de uma visão idealizada de si mesmo. A ideia de nação é sempre uma construção do espírito e pode às vezes disfarçar interesses egoístas. Não somos necessariamente como nos idealizamos, mas é assim que gostaríamos de ser. De todo modo, é melhor se idealizar pacífico e conciliador que atribuir-se qualidades de dominação, de superioridade racial ou cultural, de destino manifesto de opressor de outros povos.
Estamos tão habituados à nossa tradição de paz que nem nos damos conta de como ela vai se tornando um bem precioso e raro num mundo em que guerras como a da Ucrânia e a da faixa de Gaza tornam as pessoas insensíveis à morte e mutilação de crianças e mulheres, ao extermínio pelo genocídio e pela fome. Nessa atmosfera sombria em que estamos mergulhados, nem o Brasil escapou de agressão brutal à soberania de suas instituições, apesar de nada ter feito para provocar as truculentas ameaças do presidente Trump.
Senhor Presidente, Senhoras e Senhores,
Nasci nove meses antes do Estado Novo e dois anos e meio antes da Segunda Guerra Mundial. Fui testemunha direta de muitas das convulsões que marcaram um dos mais trágicos períodos da história. Tentei em minha obra transmitir uma certeza nascida da reflexão sobre essa experiência de vida. A dor e o sofrimento dos últimos oitenta anos teriam sido evitados se os valores que Rio Branco legou à diplomacia brasileira tivessem igualmente guiado a conduta dos “grandes deste mundo”.
Com clarividência sobre o que haveria de suceder, afirmava ele num de seus últimos discursos: “...se então pensarem...alguns desses países...em entregar-se à loucura das hegemonias ou ao delírio das grandezas pela prepotência, estou persuadido de que o Brasil do futuro há de continuar invariavelmente a confiar, acima de tudo, na força do Direito, e, como hoje pela sua cordura, desinteresse e amor da justiça, a conquistar a consideração e o afeto de todos os povos vizinhos em cuja vida interna se absterá de intervir.”
Na sua já longa tradição, é a primeira vez que o Prêmio Machado de Assis é concedido a alguém que fez da história da diplomacia brasileira a essência de sua obra. Resgatar do esquecimento esses inspiradores exemplos de nosso passado, creio, é a melhor maneira de agradecer a homenagem que, por meu intermédio, a Academia presta à gloriosa herança de dois séculos de diplomacia de paz e fraternidade.
28/07/2025