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Algo está acontecendo aqui, Mr Jones, e você não sabe o quê.
Esses versos do Prêmio Nobel de Literatura Bob Dylan, em tese, valem para qualquer época: tudo está em transformação.O grande problema é saber o que acontece agora, quando a mudança ainda é difusa, nem todos os seus traços foram definidos e sua velocidade, comparada a de outros tempos, é alucinante.
Há dois acontecimentos essenciais em curso: as mudanças climáticas e a revolução digital. Pode ser que se entrelacem de modo trágico, de forma que a humanidade torne sua própria vida impossível no planeta, enquanto, progressivamente, vai sendo substituída pelas máquinas.
Os primeiros sinais de alarme surgiram na década de 1960 com o famoso relatório do Clube de Roma. Um grupo de estadistas se reuniu para analisar a situação do mundo, concluindo que a vida iria se tornar inviável se continuássemos produzindo e consumindo da maneira como fazíamos.
O grande problema levantado no relatório era a finitude dos recursos naturais que eram usados em grande escala. Surgiu daí a necessidade de formular uma saída que pode ser resumida na palavra sustentabilidade. O desafio era produzir e consumir de maneira que as próximas gerações também o pudessem fazer , não deixar para elas um planeta devastado.
O temor contido no Relatório de Roma repercutiu mais tarde em Estocolmo, onde se realizou, em 1972, a primeira grande reunião mundial pelo meio ambiente.
Naquele momento, a finitude dos recursos naturais e a poluição eram temas de destaque. Algumas questões internacionais também viriam à tona: a Argentina perguntava se a construção da Usina de Itaipu poderia ser feita sem consultá-la, uma vez que o país partilhava o rio com o Brasil e o Paraguai.
Vinte anos depois, no Brasil, aconteceu a grande conferência do pós-guerra, e o tema era o meio ambiente. A Eco-92, como ficou conhecida, trazia novas dimensões do problema ambiental, uma delas que acabou sendo resolvida positivamente devido à antecipação humana: a destruição da camada de ozônio.
Naturalmente, em 1992 o tema da diversidade cultural emergiu também com grande destaque. A tese apresentada na conferência alternativa, realizada no Aterro do Flamengo, era de que tão importante quanto o cuidado com espécies vegetais e animais para nossa sobrevivência no planeta era também a preservação da variedade cultural Entre os presentes na conferência alternativa estava o Dalai Lama, preocupado com a cultura tibetana no país ocupado pelos chineses.
O grande tema da época, no entanto, ainda não tinha aflorado com nitidez em 1992. As mudanças climáticas já estavam em curso, já havia teorias explicando-as como uma consequência da revolução industrial, mas elas não conseguiam subir ao topo da agenda. Grande parte da resistência era dos países árabes, produtores de petróleo, que viam na discussão uma grande ameaça para seu próspero negócio.
A criação de um painel de cientistas pela ONU acabou revelando com mais clareza que o planeta estava sim se aquecendo e que inúmeras consequências negativas surgiriam desse processo, desde os eventos extremos que castigaram o mundo nos últimos anos até a elevação do nível dos mares, que pode representar o desaparecimento de pequenos países insulares, assim como grande devastação no litoral de outros, como, por exemplo, o Brasil.
A progressiva consciência do perigo alterou a política de muitos países, assim como colocou a importante questão: quem pagará a conta para reduzir os estragos já feitos e aumentar a resiliência das estruturas que não foram destruídas? É um debate travado entre Norte e Sul, que alcançou um acordo. Os mais ricos financiariam os mais pobres. Se o acordo foi possível, o cumprimento dele, entretanto, ainda parece remoto.
Tudo indica que a economia dos principais países do mundo toma novo rumo, o da transição energética para uma economia de baixo carbono. Isso já estava explícito no programa que levou Biden à presidência dos Estados Unidos. Outros aspectos também ganham força: a economia circular, que recicla e reaproveita recursos naturais, e a bioeconomia, que pode abrir inúmeros horizontes para países que ainda detêm grandes florestas, como é o caso do Brasil, do Congo e da Indonésia.
O quadro de mudanças fica mais completo se avaliamos o impacto da revolução digital e suas incessantes repercussões em nossas vidas.
Algumas décadas depois de sua introdução, algumas indústrias acabaram, outras foram fundamentalmente modificadas. Na medida em que bancos e serviços de gerência são automatizados, setores inteiros de ocupação são destruídos. O próprio trabalho controlado por aplicativos tornou-se precário e teme-se que se transforme em redundante.
Conforme observou o filósofo inglês John Gray, não são apenas esses fatores que eliminam certos empregos: “o avanço da capacidade de reconhecimento de padrões está tomando o lugar do discernimento humano.”
Algumas previsões sombrias decorrem desse processo. Na verdade, nós o sentimos mais na superfície da luta política cotidiana, marcada por uma polarização determinada pela lógica algorítmica.
Visto a uma distância um pouco maior, os efeitos podem ser mais profundos. Algumas tecnologias reduziram os empregos de forma permanente: algumas profissões desaparecem, outras surgem.
Mas as tecnologias robóticas não têm paralelo em seu alcance e dimensão. Gray aponta: “Se uma explosão anterior do avanço tecnológico deixou para trás uma subclasse, o lumpenproletariado, a atual parece destinada a criar uma lumpenburguesia. Sem qualquer perspectiva de uma carreira para toda a vida, carentes de pensões ou poupanças, as classes médias podem esperar uma vida de insegurança e precariedade no futuro previsível.
Para os mais pessimistas, não há a hipótese nem mesmo de uma pequena elite ser capaz de acompanhar o desenvolvimento da inteligência artificial. A longo prazo, seria reconstruir os seres humanos restantes de modo a se assemelharem às máquinas. Mas o provável é que uma diminuta espécie tecnologicamente aprimorada vá aderir ao avanço evolutivo. O resultado é a obsolescência humana, para a qual não se anteviu ainda nenhuma saída, exceto uma espécie de renda mínima universal.
O curioso nesse processo de transformação pelo qual a humanidade passa é o fato de que, simultaneamente, ela luta para sobreviver aos temíveis efeitos das mudanças climáticas e constrói alternativas mecânicas para sua presença no planeta.
Seria este um instante num longo processo de evolução através do qual os humanos transitam para as máquinas, mais preparadas para sobreviver num clima adverso?
Muitos não sentem que esse é um destino inevitável. Os esforços mundiais, embora ainda um pouco lentos, se concentram em evitar o processo de aquecimento acima de certos limites. Isso significa mudanças profundas no processo de produção e consumo. O incontrolável avanço da inteligência artificial também já é um tema em debate.
Mas as saídas não são fáceis. A precariedade do trabalho já atinge altos níveis. Recentemente, Lula e Biden fizeram um acordo para combatê-lo. Ainda não informaram o balanço de seu esforço.
Alguns autores afirmam que sobra apenas o mundo do espetáculo para garantir alguma coesão, para distrair as pessoas de suas impossibilidades futuras. E nele há, sobretudo, as guerras, vistas como um espetáculo eletrônico de ansiedade, paralelamente a uma sensação tranquilizadora de segurança.
Não é, portanto, uma época de soluções fáceis.
Há distintos itinerários para mapear essa crise. Um deles é a evolução da crença na salvação pelo conhecimento. O próprio Iluminismo, com a ênfase na razão, pode ter contribuído para o processo de destruição associado a um domínio total dos mecanismos da natureza.
O grande pensador moderno Nietzsche formulou a possibilidade de um superhomem, que pode ganhar significado a partir da vontade Ele acabou promovendo mais uma versão do projeto moderno de afirmação humana. Mas o reconhecimento dos nossos limites significa que podemos marchar resignadamente para a autodestruição? Esse é um debate indispensável no curso da história humana.
Outro caminho para se mapear a crise é limitado ao estudo do próprio avanço do capitalismo, sobretudo no seu processo de ganhar o mundo, através da globalização. As suas premissas fundamentais de livre curso do dinheiro, das mercadorias e da força de trabalho não conseguem se concretizar na plenitude.
Muitos são deixados para trás. A própria força de trabalho não consegue se deslocar em busca de melhores empregos. Quando o faz, produz nos países onde se concentram grandes movimentos de reação. A extrema direita europeia e norteamericana se fortaleceu a partir da resistência aos imigrantes, do medo de perder postos de trabalho e do convívio com culturas diferentes.
Os grandes deslocamentos provocaram, por sua vez, uma forte tendência de luta identitária dos povos deslocados, luta que se associa também aos grupos minoritários, como raciais, e os tradicionalmente explorados, como as mulheresAs esperanças se concentram na luta para que a sobrevivência no planeta possa superar os imensos obstáculos da destruição ambiental, e que também a diversidade cultural e natural possam sobreviver sem sobressaltos.
Isto implicará numa grande mudança no modo de produzir, consumir e coexistir, uma vez que não existe fórmula única do bem-viver, e o caminho, ao contrário de uma visão missionária, será reconhecer os inúmeros pontos de vista e encontrar espaços de convergência para avançar.
Isso significa também uma nova visão política, adequada à proximidade do abismo em que nos encontramos – e que nós mesmos criamos.
* Por Fernando Gabeira
10/05/2024