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Fernanda Montenegro homenageia acadêmicos na abertura do ano cultural da ABL

 

Confira os textos na íntegra:

Ailton Krenak

Perto de antigamente Eu vejo um grupo de sete ou oito meninos remando numa canoa. Todos tocam o remo na superfície da água, de maneira compassada, com muita calma e harmonia. Estão exercitando a infância deles no sentido do que o seu povo, os Yudjá, chamam de se aproximar da antiguidade. Um deles, o menino mais velho, fala: “Já estamos chegando perto de como era antigamente”. Eu achei tão bonito que aqueles meninos ansiassem por alguma coisa que os seus antepassados haviam ensinado, e tão belo quanto que a valorizassem no instante presente. Esses meninos que vejo em minha memória não estão correndo atrás de uma ideia prospectiva de tempo, nem de algo que está em algum outro canto, mas do que vai  acontecer exatamente aqui.

Ana Maria Machado

Bentevis e gaviões Não muito alto, ele vem voando de algum lugar `as minhas costas e entra em meu campo de visão. Lento, solene. Do chão, dá para ver com clareza a faixa de penas amarelas por baixo das asas estendidas enquanto plana, desliza no ar, sobe em uma corrente ascendente. Sei que não costuma chegar sozinho. Nem preciso procurar : logo em seguida vem a companheira. Dominando a cena, fazem grandes círculos no ar. Um dos dois se afasta um pouco. O outro pousa no ponto extremo de um galho seco que aponta para o céu como um para-raios, no alto da amendoeira, ao lado de outro graveto desolado também buscando a altura. O silêncio que se segue apaga o gorjeio difuso que enchia o ar fresco da manhã. Sublinha o peso da ameaça. A vida miúda se encolhe em presença dos gaviões. De repente, um passarinho surge e pousa no ramo desfolhado . Sem medo. Bem próximo ao predador, ligeiramente acima. Muito menor que ele. Não preciso, de longe, identificar detalhes de forma ou plumagem para reconhecer o bentevi. O atrevimento é sua assinatura. Mostro a meu filho. Mais uma vez, como já lhe mostrara em criança. Como meu pai um dia me fez ver. Imediatamente ele chama minha neta, a põe no colo e lhe fala ao ouvido. Aponta para a árvore, num gesto natural que não consigo deixar de registrar como um ritual de celebração . Está lhe dando um presente, uma parte da natureza para ela incorporar. Já fizeram isso comigo, já fiz com ele. Agora é a vez da menina. Ela presta atenção. A sessão vai começar. Não demora muito. Assim que o gavião levanta vôo, o bentevi o segue, ligeiro, voando mais alto e mais ágil. Num instante o ataca, bicando-o no alto da cabeça. O gavião tenta se livrar das pancadinhas repetidas no cocuruto mas a cada vez o passarinho é mais rápido, espirra fora e volta novamente. O outro gavião chega perto mas, mesmo sendo dois, não conseguem se livrar das agulhadas que lhes caem em cima como flechas e logo se afastam a toda velocidade. Rodopiam num carrossel de penas pelo céu e nesse corrupio vão indo embora até que não os vejo mais. Pouco a pouco, os gorjeios e cantos da manhã recomeçam. Numa árvore próxima, um deles é mais estridente, como de quem chama. Logo começa a ser respondido pelo bentevi que volta. Missão cumprida. Afastou o perigo de seu ninho. Pode se chegar à companheira.

 

Antonio Carlos Secchin

"Uma Reflexão Sobre a Poesia". O poeta é um operário da linguagem, um experimentador de formas, cuja eficácia é posta à prova a cada verso ou estrofe que acaba de erguer. O alvo de sua palavra abarca todas as faces da experiência humana, em suas calmarias e convulsões, em sua sede inesgotável do ínfimo e do absoluto De algum modo, todo grande poema ritualiza a imemorial função de reordenar e renomear o mundo, não porque faltem nomes às coisas, mas talvez, ao contrário, porque existam nomes demais, e ainda assim não nos bastam. O artista busca um lado além do outro lado, uma quarta margem, pois até a terceira já está bastante sinalizada. Discordo de que o desconhecimento do passado da poesia possa servir de álibi para o que quer que seja em matéria de criação. Mas isso não implica afastar-me de meu tempo. Quando o texto surge como necessidade incontida de expressão, ele nasce, como escrevi num texto”, “sem mão ou mãe que o sustente”. Essa força indomável desconhece as boas maneiras e a conveniência. A poesia é uma hóspede invisível: só percebemos que visitou, num frêmito, o corpo do texto quando já foi embora; o vestígio de sua passagem é o poema. O poema é o rastro possível da poesia que andou por lá. A poesia não tem um só rosto. A face pressupõe identidade e reconhecimento. Todavia, como disse Ferreira Gullar, o poeta é (também) estranheza e solidão. Estranheza frente à linguagem previsível. Solidão, porque a poesia é um baixo-falante, que capta e filtra os ruídos e os barulhos do mundo através da escala microscópica da sensibilidade de cada um. O poeta é uma ilha cercada de poesia alheia por todos os lados: isolado em si, no seu compromisso de criar uma palavra tanto quanto possível própria, mas abastecida pelas águas que fluem dos mais diversos mares discursivos. Tudo alimenta o poeta: outros poetas, a crítica, um certo azul nas manhãs de junho, o sobressalto amoroso, a procissão das formigas. Tudo são variações de espanto e de busca de linguagem, busca da palavra poética que resgata da morte a fulguração da beleza. Em meio a seus pares, o poeta tem o dever de ser ímpar. Mas existe o risco de o artista tornar-se prisioneiro da própria voz, numa prática que transforma em cárcere o que antes fora libertação. Um grande poeta não costuma deixar herdeiros, e sim imitadores. Abre mil portas, mas deixa todas trancadas quando vai embora... De minha parte, entendo o criador como um solitário profissional. Dois poetas juntos já formam um complô; três, academia. Excluída há muito tempo do grande circuito de consumo, a poesia pode, à margem, afirmar o compromisso de que nossa liberdade passa não apenas pelas palavras em que nos reconhecemos, mas, sobretudo, pelas palavras com as quais aprendemos a nos transformar. * Por fim, apresento o poema “Autorretrato”, que talvez resuma o que procurei expor sobre as relações entre o criador e os discursos que o cercam: Um poeta nunca sabe onde sua voz termina, se é dele de fato a voz que no seu nome se assina. Nem sabe se a vida alheia é seu pasto de rapina, ou se o outro é que lhe invade, numa voragem assassina. Nenhum poeta conhece esse motor que maquina a explosão da coisa escrita contra a crosta da rotina. Entender inteiro o poeta é bem malsinada sina: quando o supomos em cena, já vai sumindo na esquina, entrando na contramão do que o bom senso lhe ensina. Por sob a zona da sombra, navega em meio à neblina. Sabe que nasce do escuro a poesia que o ilumina.

Antônio Torres

Reflexos no espelho das águas (Da Cidade). Ainda me maravilha a imagem viva e distante da terrível paisagem jamais contemplada por olhos mortais. Não, não se trata dos sortilégios de um poeta parisiense do século dezenove, encharcado de absinto, ópio e haxixe até a alma, e a se autopromover a arquiteto orgulhoso do seu gênio. Neste cenário, aqui e agora, não há fontes e cascatas sobre o ouro fosco e polido de um palácio infinito, babel de arcadas e escadarias, cortinas de cristal, cataratas superpondo-se deslumbrantemente de muralhas metálicas, gigantescas náiades como mulheres, ondas mágicas, espelhos encantados com o que refletem, abismos de diamantes, túneis e predarias. Aqui e agora há somente águas a engastarem a sua glória à luz do sol, ao raiar de um dia treslumbrante. Água, muita água, a alastrar-se até o infinito, numa embriagadora monotonia. E nada mais. Tudo para os olhos, nada para os ouvidos, como num sonho do francês Charles Baudelaire contado pelo argentino Jorge Luís Borges. Por baixo dessa imensidão de água repousa, no mais profundo silêncio, uma rainha da beleza tropical que, ao sucumbir espetacularmente às trepidações do mais agitado dos seus dias, levou com ela um dos mais fascinantes capítulos da história do continente americano. Era uma vez uma cidade de encher as vistas. De deixar a respiração em suspenso. De sensualidade a se insinuar até nas curvas das montanhas que a delineavam. De pedir pernas para andar, pimpona, fagueira, malandra, bandida. Tão cheia de vida e aflições, em seu cotidiano ameaçado pelo caos, a rimar alegria e agonia, graça e desgraça, amor e dor. De meter medo. Principalmente isto: O medo.

Domício Proença Filho

Memórias de Capitu Só agora, decorrido tanto tempo humano, posso, finalmente, contestar as acusações contra mim feitas pelo meu ex-marido, o Dr. Bento Santiago. E fazê-lo, porque, nestas paragens que ora habito, aprendi, com meu irmão Brás Cubas, as artes da narrativa além-tumular. Ficamos amigos, ele, eu e o senhor Quincas Borba, o filósofo, um homem extraordinário, não tão louco como alguns pensam e escreveram. Afinal, somos criaturas da mesma pessoa, diante de quem, confesso, fico dividida, talvez por força da ambiguidade do seu texto: ao mesmo tempo que o admiro, há um lado meu que o rejeita. Ele é o grande responsável por tudo o que me aconteceu. Devo-lhe minhas tristezas, minhas alegrias; devo-lhe a fama que, modéstia à parte, acabei granjeando. Mas a ele coube também a construção da imagem negativa que me foi atribuída. A ele e, a bem da verdade, a uns tantos críticos de nomeada que se debruçaram sobre a minha história; alguns dentre eles me tiveram por frívola, outros, felizmente, nunca aceitaram a palavra do filho de D. Glória. Sou-lhes grata, ao fim e ao cabo, do fundo do meu coração. Neste lugar de além-túmulo todos temos de assumir uma missão. A mim me foi dado trabalhar na direção da afirmação do discurso da mulher. Confesso-lhes que fiquei surpresa, quando fui notificada da incumbência. Por que eu? Disseram-me que era por força dos altos desígnios e da minha personalidade forte. Aceitei. Curiosamente, tive como companheira e leitora de fé, a Aurélia, Aurélia Camargo, que eu não conhecia e por quem logo me afeiçoei, uma mulher de rara distinção e encanto! Ela também teve problemas, antes e depois do casamento. Com um certo Seixas. Sua história, como a minha, também foi contada, ainda que apenas em parte, segundo seu próprio testemunho. Por um senhor chamado José de Alencar. Só que carregada de concessões, ela até que tentou afirmar-se, mas os tempos eram outros. "— Tive que ceder, minha amiga; Deus sabe o quanto me custou". Estimulada por ela, eu, Capitu, decidi escrever sobre o outro lado da minha história. Sob o manto diáfano da fantasia, afinal a melhor forma de chegar à verdade profunda da humana condição. Escuso-me, desde logo, por não revelar o método que empreguei na composição do texto. Brás Cubas me pediu reserva e discrição: — e não se preocupe, minha querida amiga, a obra em si mesma é tudo. Obrigo-me, pois, a guardar segredo sobre o extraordinário processo que regula discursos de tal natureza. Do tempo que levei para concluir o relato, também não posso dar a medida, porque, enfim, vivo nestes espaços. Só me permito adiantar-lhes, que, ao final da minha narrativa, o mínimo que lhes poderá advir é a sensação de perplexidade. Se o texto, por qualquer motivo, não chegar a agradá-los, terei feito, como nas tragédias gregas, a minha catarse. E você, se um dia amou como eu amei, desejou como eu desejei, vai certamente me entender. Ao colocar, entretanto, o ponto final no meu texto, fiquei, como todo iniciante, um pouco insegura; sou uma mulher do século XIX. Quem me encorajou foi a palavra do Conselheiro Aires, que também se tornou meu amigo, o pai espiritual de que eu carecia. Ele e D. Carmo são criaturas únicas! Lembro-me ainda de sua orientação, ao ler os primeiros capítulos: - Procure contar a sua história com simplicidade e não lhe ponha muitas lágrimas, minha filha. Evite também aquelas nossas conhecidas rabugens de pessimismo e não assuma os rigores da aridez nem os excessos da galhofa: não é o caso. Busquei seguir o seu conselho. Até porque não guardo rancor do meu ex-marido. Nunca abriguei em mim tal sentimento. Nem mesmo quando fingia que me havia visitado nas suas viagens à Europa. Ele precisava disso. Apenas lamento o seu equívoco e a sua incapacidade de se comunicar. E, onde quer que ele esteja, que nunca o encontrei por aqui, se souber desta minha narrativa, por certo, ao lê-la, poderá cuidar até, quem sabe, que a obra é dele. Não me importo. O texto é a morte do autor. Eu e você sabemos quem escreveu o livro. É o que conta.

Edgard Telles Ribeiro

JOGO Domingo era dia de jogo e o menino já acordava embrulhado em sua bandeira. Na praia, com o pai, não tocava no assunto. Nem precisava: desde a mais tenra hora da manhã, quando o galo cantava no quintal da vizinha e, de sua janela, via a meninada carregando os pneus pretos rumo às águas paradas da baía, ele sabia: o dia seria pontilhado de alegrias. Iam de trem para o estádio. Os gritos, o papel picado e a nuvem de pólvora seca já povoavam suas retinas. Vestia a camisa do time, orgulhoso da importância do pai, que dispensava uniformes e bandeiras porque trazia no sangue as cores do clube. Demorara a entender como isso era possível – a questão do sangue –, mas era. O pai garantira. Perguntara à mãe com que idade suas veias também acolheriam o sangue do clube. Quando passasse a beber cachaça, ela respondera sem parar de esfregar a roupa. Quando lavava roupa seu rosto magro ficava vermelho. Era bela, sua mãe. E seu pai, forte. Batia nele, sem a menor razão. Mas hoje era dia de jogo, não bateria nele. No fundo, pouco importava o que se passava no campo: quando um grito estrondoso tomava o estágio, era agarrado, sufocado, beijado e atirado aos céus. E quando, por um descuido dos deuses, isso deixava de acontecer – e cabia aos outros gritar como demônios –, era ainda melhor: o pai encolhia. Ficava pequenino na multidão. Ele vira com os próprios olhos, mais de uma vez. O sangue do clube... Se desaparecia do rosto, talvez secasse nas veias. Nessas ocasiões, na volta, o trem já quase vazio, o pai abraçava-se a ele. Um abraço silencioso e quente, mais confortador do que a vitória. Era o melhor jogo do mundo. Não havia como perder. Tentou explicar isso para a irmã. Ela olhou fundo para ele e torceu lentamente o braço esquerdo da boneca. Até arrancá-lo. Aquilo sim era um mistério.

Godofredo de Oliveira Neto

O professor canadense e o amor A aula sobre a narrativa proustiana transcorria normalmente via Googlemeet. A sala virtual cheia. Faltavam a algazarra dos alunos nos corredores da Faculdade de Letras, a coxinha e o pastel gordurosos engolidos às pressas no intervalo entre uma aula e outra, o papo politizado com os colegas e as discussões culturais e educacionais no cafezinho. E, claro, o perfume da grama e das árvores floridas do Campus da UFRJ, no Fundão. O convidado daquela aula, conceituado professor emérito de uma universidade canadense, era o centro das atenções. Eu falava, baseado em grandes semiólogos, da impossibilidade, na literatura, de fazer coincidir uma ordem pluridimensional, como o real, e uma ordem unidimensional, como a linguagem. Logo a surpres a. O professor, cuja apresentação eu já fizera, pede a palavra no vídeo chorando. Soluçando, convulso. De origem portuguesa, pôs-se a explicar, num português com sotaque francês, ter sido abandonado recentemente por uma japonesa, sua grande paixão. Até essa altura eu pensava se tratar de uma astúcia didática para entrar no tema da aula. Professora de Línguas românicas em Tóquio, conheceram-se pelas redes sociais mas nunca se encontraram fisicamente. Graças a esse amor, ele voltara a escrever artigos científicos, a estudar, a elaborar edições críticas de grandes obras mundiais, enfim, a reviver (palavras dele). E agora, exatamente na véspera do nosso Curso, a professora japonesa escreveu lhe informando ter encontrado uma nova amiga. Uma jovem americana o substituía na amizade. Ao pronunciar jovem americana, o professor começou a gritar, a urrar, de pé, num pranto alvoroçado, espasmódico. Um aluno gritou "ele vai ter um treco". Outro disse que ele se mostrara preconceituoso e possessivo, isso sim, não aceitou a amizade das duas. Deu para perceber que o convidado canadense só se arrumara para a aula on-line com uma camisa, o pijama listado, embaixo, ele deixara. Um segundo depois o seu vídeo sumiu de repente. Fiquei preocupado. Tentei manter a calma e a aula, falei do inconsciente do texto, que era importante trabalhar a literatura a montante e a jusante, coisas do tipo. Abordei as queimadas no Pantanal e outras generalidades para ver se retomava o leme. Também a visita do Secretário americano a Rondônia, as eleições no Brasil em novembro, por aí. Mas o tema da aula passou a ser o amor. As diferenças entre o amor de Iracema, de Capitu, da Pagu e da japonesa. E do professor. Se no Romantismo o amor redimia, no Realismo doía, no Modernismo instruía, no amor virtual destruía. A gente sempre aprende com os alunos. O canadense nunca tinha visto, tocado, cheirado, ouvido, sentido a sua amada amiga. Como se deixou invadir assim, então, pelo sentimento amoroso? Talvez isso seja a literatura, não? Foi essa a observaç&a tilde;o de uma aluna, de costume sempre tão calada. De fato, comentei, tentando me recompor, a busca de uma adequação perfeita entre a expressão e o pensamento é a aflição constante dos escritores e escritoras, pois sabem que jamais conseguirão esse feito. Daí a arte escapar pelos cantos dos interditos, inventar, voar. Sentir nostalgia de unidade diante de um mundo trincado, salpicado, fragmentado, estilhaçado. Daí a arte perder a paciência. Até Machado perde a paciência no Memórias Póstumas de Brás Cubas. Enfrenta o padrão, alça voo, dissimula, pede ajuda, ironiza. A forma de perder a paciência acaba virando técnica narrativa e modelito depois, seja na pintura, na escultura, na música. Tudo isso para vencer interditos, credos, preconceitos e normatizações que apequenam a condição humana. A Arte est&a acute; aí para isso, existe por isso e para isso. Como fiquei muito tenso com toda a história do professor canadense, encerrei a aula virtual um pouco mais cedo e fui à cozinha tomar um calmante.

Heloisa Teixeira

A ROUPA DA RACHEL - um estudo sem importância Em julho de 1977, a escritora Rachel de Queiroz envia à Academia Brasileira de Letras uma carta na qual se candidata à vaga aberta para a cadeira número 5 , ocupada por Cândido Mota Filho. Em 5 de agosto, é eleita, no primeiro escrutínio, com 23 votos. Seu concorrente, Pontes Miranda, obteve 15 pontos. O momento era excepcional: finalmente, a primeira mulher havia sido eleita para habitar a Casa de Machado de Assis. Eleita Rachel, e consolidado o ingresso feminino na ABL surge à tona uma questão nada trivial: Que roupa usaria Rachel para compatibilizar-se com a simbologia heróica expressa pela espada e os louros do fardão dos imortais?  O Presidente Austregésilo de Athaíde confirma a relevância do problema, em  declaração aos jornais: “A presença de uma mulher em nossas sessões não muda nada. A única coisa que vai mudar é o fardão”. Foi assim que a Casa de Machado de Assis tornou-se o palco de um dos mais estranhos debates do final dos anos 70, com todos os lapsos e atos falhos a que a psicologia impressa nos permitiu. O chá das 5 reverte-se numa arena da moda. Na procura da roupa da Rachel, discussões acaloradas acompanhavam o passar de rendigotes trespassados, tailleur com alamares e dragonas, desfiles de Guilherme Guimarães, da butique Mônaco e de Silvia Souza Dantas, deliciando os acadêmicos. A imprensa registrava, ligadíssima, o desenrolar dos trabalhos. Nas dezenas de matérias que povoaram os jornais (com a forte presença das sessões de cartas de leitores) sobre a roupa que usaria Rachel, fica claro que os acadêmicos se outorgavam o poder total na decisão. Enquanto isso, Rachel era metralhada por palpites: em pauta estavam boleros de toureiro, dragonas, alamares, e até mesmo opas de acompanhar procissão foram idealizadas por alguns acadêmicos da Irmandade do Outeiro. Uma festa para Freud e Lacan.    Constrangida, Rachel de Queiroz declara em “O Globo”, em 9 de outubro de 77: “Estão fazendo muita onda com essa história da minha roupa. Meus vestidos são todos chemisier, todos absolutamente do mesmo feitio: eu não me visto, eu me cubro”.     Ainda segundo a imprensa, a escritora acabou  decidindo sozinha e fazendo ouvido de mercador às sugestões de boleros – pouco práticos – ou opas – um tanto litúrgicas -  colocando como única exigência para a concepção do fardão feminino, a de ser caracterizado pela sobriedade.  Preferindo não dizer o nome dos acadêmicos que deram palpites e ideias sobre seu figurino, explica a opção pela sobriedade como uma opção feminina “natural”, na medida em que “todas as fêmeas da espécie animal são menos ornamentadas que os machos. De maneira que segui a regra” A versão final e aprovada foi a de Silvia Souza Dantas, segundo a estilista “uma veste simples como Rachel, na côr verde acadêmico, longo, reto, decote em V e mangas boca de sino. Do fardão, restaram somente as folhas de carvalho bordadas em fio dourado. O “Correio Braziliense” de 4 de setembro de 77, informa ainda que o longo de Rachel consumiu 13 metros de crepe e 3 metros de lingerie e que seu colar, presenteado pelo Governo do Ceará, será de ouro maciço, portanto fugindo à regra dos colares masculinos, todos em prata dourada”.  Essa possível vantagem foi corrigida, entretanto, pelo custo de seu vestido de gala. Como observa Ibrahin Sued em “O Globo” de 23 de outubro de 77, “as mulheres já estão dando lucro à Academia, pois um fardão custa 60 mil cruzeiros e o vestido saiu por apenas 11″. De leve”. Um ponto, entretanto, gerou consenso. “A espada que simboliza fidelidade à instituição será dispensada.”  A POSSE Finalmente, em 4 de novembro de 1977, Rachel de Queiroz, com um vestido contido, elegante e discreto, à revelia dos gostos acadêmicos, toma posse na Academia Brasileira de Letras. Conforme noticiou o “Jornal do Brasil”, desde as 7 horas da manhã, Rachel é invadida por telefonemas, visitas e curiosos, tendo que se esconder na casa de sua irmã, Maria Luiza. O presidente da ABL, por sua vez,  garante à imprensa que “a solenidade de posse da primeira mulher a pertencer ao quadro efetivo  da instituição seguirá hoje, às 21 horas, o seu “ritual uniforme e imutável” e que não serão permitidos discursos laudatórios de poetisas”. Pela primeira vez em 80 anos, uma cerimônia de posse ganhava um ar de manifes­tação popular. “A escola de samba Portela quer homenagear a primeira mulher a entrar na ABL, mas foi barrada pelo presidente Austregésilo de Athaíde, que alegou ser a cerimônia formal e, portanto, incompatível com a presença carnavales­ca da escola, prontificou-se a prestar a homenagem do lado de fora da Academia, em plena Avenida Presidente Wilson”, noticiou a coluna do Zózimo do dia 15 de setembro de 1977. O futebol, naqueles idos do “Brasil: ame-o ou deixe-o”, um esporte de importância singular, também esteve na pauta das comemorações. O “Jornal dos Sports” de 21 de setembro lembrou a seus leitores que “antes de ser imortal e ascender à Academia, Rachel, grande torcedora do Vasco da Gama, havia sido sagrada Cardeal do time por Nelson Rodrigues e admitida entre os pontífices vascaínos”. O Vasco da Gama, inclusive, tentou oferecer à Rachel, a indumentária para posse. Deputados, senadores, prefei­tos e vereadores homenagearam a escritora. Do samba ao futebol, passando pelos políticos, a festa de Rachel ganhou um tom de conquista nacional. No dia seguinte à posse, o jornal “Ultima Hora” estampava a manchete: “Posse de Rachel vira comício e o público derrota protocolo­”. Nem as próprias feministas mostraram-se excluídas ou aborrecidas quando, na época, a nova acadêmica falou mal do movimento feminista. O fato é o que “estilo Rachel”, no momento em que os Estatutos declaram que mulheres seriam elegíveis para a ABL, foi estrategicamente perfeito para o enfrentamento desse difícil rito de passagem.

Ignácio de Loyola Brandão

“Só sei que nasci", Ao sair do ventre da mãe, Antonia, com um minuto de vida me encontrou, nos meus 88 anos e a conversa começou Estava escuro, onde eu estava. Era bom, tinha tudo, mas era apertado Porque era escuro? O que é o escuro? Agora, é tudo claro. O que é claro? Porque era escuro, porque é claro? Onde estou? Na vida? Vida? O que é vida? O que é dia? Onde estava, onde estou? Não sei falar, nem sei o que o mundo é. O que é saber? Falar? Como falo se não sei falar? Não sei uma palavra? Palavra? O que é palavra? Para que? Sei mamar, chorar, abrir os olhos. Porque mamo? Olhos? Para que servem? Sem saber o que é que estou vendo. O que é que estou vendo? O que é ver? É muito difícil tudo, tenho calma. Minha mãe disse essa palavra. Calma. Sei o que é Vivia em calma. Como sabia que vivia? Mamãe disse: não tenha pressa. Pressa? Cada coisa que ouço. O que é ouvir? O que é mãe, pai, avós, tios? Saí do escuro para a confusão? Mas o que é confusão? Por que saí? Para quê? Calma, pressa, ouço essas palavras. O que são? E para que serve cada coisa que vejo? Como sei que vejo? Engraçado nascer. Nem sei quem sou, o que sou, Porque estou aqui, o que vim fazer. Saí dali, estou aqui. Sei a coisa mais importante do mundo, o seio de minha mãe. Uma que me acalma. O que é acalmar? Vejo coisas, não tenho ideia do que sejam, também não sei o que é ideia. Ainda na barriga de minha mãe ouvia meu pai, minha mãe, meu avô, conversando e eles falavam em viver. O que é viver? Para que se vive? Saberei viver? Ouvi as pessoas falando. É coisa boa, é difícil de saber. Para que a vida serve? O que é vida? Durmo, acordo, choro, gosto de chorar, me dão logo o peito. A vida será assim? Terei sempre um peito? Vou chorar e ter o peito? Isso é a vida? Meu pai é alto, minha mãe é muito bonita. Alto. Bonita. Sei quem é minha mãe, ela tem um cheiro bom, tem leite, me carrega, chora às vezes. Choro quando não tenho leite. Meu avô disse isso. Não sei como entendi o que disseram, porque não sei falar, perguntar, sei nada. O que preciso saber para viver? Minha mãe me embrulhou hoje em uma manta linda , quentinha, ficou gostoso. Hoje. O que é hoje? Soube que foi minha madrinha que mandou. Madrinha? Não sei o que dizer quando ganhamos alguma coisa, mas a minha mãe pediu ao meu avô que agradecesse por eles e por mim tanta gentileza, carinho, afeto. Não entendo. Carinho, Afeto, Podem me explicar? Todo mundo me pega, carrega, me sacode. Estou gostando, Falo palavras como vida, agradecer afeto gentileza, carinho, avô, quentinho, gostoso, mas não falo ainda. Então, penso? Mas o que é pensar? Nada sei, tenho dois minutos de vida estou feliz, mesmo sem saber o que é vida, o que é feliz, só sei que é bom, porque meus pais, avós, estão felizes! Está complicado. É assim mesmo? O que vou ter de saber? Não vai ser fácil? O que é fácil? Não saber o que é fácil torna as coisas difíceis? O que é difícil? Vou passar a vida perguntando? Diga meu avô o que é passar a vida? O que é a vida? Não sei onde estou, Quem sou, Será sempre assim? Antonia. Quem é ou o que é Antonia? Eu? Por que estou aqui? Para que? Mas quem sou? O que serei? Valerá a pena? Tomara!

 JOÃO ALMINO

“Aventuras da solidão” TUDO começa depois que recebo a carta de Norberto, em dois dias de crise e revelação. Não posso evitar o que vai acontecer. Há erros que só aparecem com a experiência, quando já não conseguimos corrigi-los. É uma dessas tardes quentes de Brasília. Desço o vidro do carro. Guardo o revólver na bolsa e dou partida. Aceno para Carlos. Não sei se ama Carmem, a mulher. Ama as flores, especialmente as rosas e as orquídeas. Sempre me chama atenção seu ar ainda jovial e sobretudo sua calma, manifesta na voz e nos gestos pausados. Adora futebol e de vez em quando sai com a camiseta do Flamengo para jogar pelada. “A vida é como no futebol”, tinha me dito. “É difícil meter um gol, mas quanto mais a gente tenta, maior a chance.” Quando me vê, esboça um sorriso de satisfação e pede que o aguarde. Berenice, minha empregada, cometeu a indiscrição de anunciar pelas calçadas o meu aniversário, e eis que vejo, contra o torso corpulento e musculoso de Carlos, as pétalas frágeis de uma rosa vermelha colhida para mim. Quem não gosta de receber uma rosa? Ela realça as cores desta tarde, quando uma luz amarela banha a paisagem. Diana desceria se requebrando em minissaia para receber esta rosa. Diria a Carlos que acha uma gracinha vê-lo cuidar do jardim, e esta história poderia ter outro começo. Diana é meu lado avesso, que sempre morou dentro de mim. Eu devia ter sido registrada como Ana, nome escolhido de comum acordo por meus pais. Mas Diana foi o primeiro nome que mamãe quis me dar, nome espontâneo que não por acaso é também o que consta de minha certidão de nascimento. Como papai foi contra, acabaram me chamando Ana. Então às vezes me imagino Diana, fazendo o que temo, dizendo o que calo. Ela tem sempre a resposta na ponta da língua. Eu mordo a língua. É assim: quando sou quem sou, sou Ana. Quando sou quem quero ser, Diana. Ela sou eu em puro desejo. Porque sou Ana, me contenho. O máximo de minha ousadia é usar este vestido rosa de alça, meias pretas de seda, sapatos e bolsa avermelhados. Se não tive namorados desde que me separei de Eduardo, não é porque não tenha me recuperado do escândalo de nossa separação. É que aprendi certas coisas sobre os homens. Divido-os em três categorias: a dos que é melhor evitar, a dos inofensivos e a dos que vale a pena provocar, só provocar. Prefiro recusar todos, embora ainda fantasie um grande amor, achando que vou encontrar quem me faça verdadeira companhia. Sinto-me especialmente poderosa, um poder que manipulo com meu corpo, ao recusar as investidas de homens importantes. Na verdade, tenho de admitir, não surgem pretendentes ou, quando se insinuam, são casados, à procura de uma aventurazinha. Incluo Carlos — e seu sorriso aberto, charmoso, seu gesto de me trazer uma rosa — potencialmente nesta categoria, embora note pela primeira vez algo diferente no seu olhar, não sei se por causa de um sonho.

 Paulo Coelho

O bom combate Em 1986, fiz pela primeira e única vez a peregrinação conhecida como Caminho de Santiago, experiência que descrevo em meu primeiro livro, “O Diario de um Mago”. Tí­nhamos acabado de subir uma pequena elevação e meu guia, a quem chamo de Petrus (embora não seja esse o seu nome), me disse: – O homem nunca pode parar de sonhar; o sonho é o alimento da alma, como a comida é o alimento do corpo. Muitas vezes, em nossa existência, vemos nossos sonhos desfeitos e nossos desejos frustrados, mas é preciso continuar sonhando, senão nossa alma morre. Muito sangue já rolou no campo diante dos seus olhos, e aí­ foram travadas algumas das batalhas mais cruéis da Reconquista. Quem estava com a razão, ou com a verdade, não tem importância: o importante é saber que ambos os lados estavam combatendo o Bom Combate. “O Bom Combate é aquele que é travado em nome de nossos sonhos. Quando eles explodem em nós com todo o seu vigor – na juventude – nós temos muita coragem, mas ainda não aprendemos a lutar. “Depois de muito esforço, terminamos aprendendo a lutar, e então já não temos a mesma coragem para combater. Por causa disto, nos voltamos contra nós e combatemos a nós mesmos, e passamos a ser nosso pior inimigo. Dizemos que nossos sonhos eram infantis, difí­ceis de realizar, ou fruto de nosso desconhecimento das realidades da vida. Matamos nossos sonhos porque temos medo de combater o Bom Combate. ” O primeiro sintoma de que estamos matando nossos sonhos é a falta de tempo. As pessoas mais ocupadas que conheci na minha vida sempre tinham tempo para tudo. As que nada faziam estavam sempre cansadas, não davam conta do pouco trabalho que precisavam realizar, e se queixavam de que o dia era curto demais: na verdade, elas tinham medo de combater o Bom Combate. “O segundo sintoma da morte de nossos sonhos são nossas certezas. Porque não queremos aceitar a vida como uma grande aventura a ser vivida, passamos a nos julgar sábios, justos e corretos no pouco que pedimos da existência. Olhamos para além das muralhas do nosso dia-dia, ouvimos o ruí­do de lâminas que se quebram, o cheiro de suor e de pólvora, as grandes quedas e os olhares sedentos de conquista dos guerreiros. Mas nunca percebemos a alegria, a imensa Alegria que quem está lutando, porque para estes não importa nem a vitória nem a derrota, importa apenas combater o Bom Combate. “Finalmente, o terceiro sintoma da morte de nossos sonhos é a Paz. A vida passa a ser uma tarde de Domingo, sem nos pedir grandes coisas, e sem exigir mais do que queremos dar. Achamos então que estamos maduros, deixamos de lado as fantasias da infância, e conseguimos nossa realização pessoal e profissional. Mas na verdade, no í­ntimo de nosso coração, sabemos que o que aconteceu foi que renunciamos a lutar por nossos sonhos, a combater o Bom Combate. ” Quando renunciamos aos nossos sonhos e encontramos a paz, temos um pequeno perí­odo de tranquilidade. Mas os sonhos mortos começam a apodrecer dentro de nós, e infestar todo o ambiente em que vivemos. “Começamos a nos tornar cruéis com aqueles que nos cercam, e finalmente passamos a dirigir esta crueldade contra nós mesmos. Surgem as doenças e as psicoses. O que querí­amos evitar no combate – a decepção e a derrota – passa a ser o único legado de nossa covardia. E um belo dia, os sonhos mortos e apodrecidos tornam o ar difí­cil de respirar e passamos a desejar a morte, que nos livra de nossas certezas, de nossas ocupações, e daquela terrí­vel paz das tardes de domingo.”

 Rosiska Darcy de Oliveira

Ter mãe Nasci nos braços de uma mulher. Ela morreu nos meus, cumprindo-se um ciclo perfeito, apesar da dor indizível de fechar para sempre aqueles olhos onde, primeiro, se conheceu a doçura. Apesar de saber que a qualidade desse olhar, que pousa na filha amada, é única e irrepetível, experiência fundadora de aprendizado do amor. Bem mais que isso, da capacidade mesma de amar. Ter mãe é a primeira chance que a vida nos oferece e, por isso mesmo, a única real e trágica orfandade é a das crianças abandonadas, aquelas que abrem os olhos nas portas da incerteza, nas portas de alguém que as acolherá ou não, aquelas a quem se recusa a entrada na vida pela via real do seio materno. Nascer é uma dor surda, um espanto tamanho – e quanto tempo dura um espanto, perguntou um poeta – uma sufocação do mundo que nos entra pelos pulmões, rarefeito, um medo tão grande, uma solidão infinita face a essa luz súbita que inaugura o primeiro dia. Nascer é tão difícil que, não fora o calor de um corpo que não será nunca esquecido, morreríamos ali mesmo, desistiríamos ao primeiro grito, esse grito que é sempre tão desesperado, um pedido de socorro que vara a opacidade das coisas. Nascer é um susto terrível. Maior, só viver. O risco de pôr-se de pé, de atravessar essas imensas distâncias que levam de um lado a outro da sala, pisando os nós da madeira como um roteiro incerto, buscando o frágil equilíbrio de músculos e ossos imaturos, esse percurso impossível, mais arriscado que um salto mortal sem rede, termina em braços abertos. Esse é o final feliz, que abre as portas de tantos possíveis. Se aceitamos correr tantos riscos na tentativa de aprender caminhos é porque, em algum lugar na memória mais longínqua, esperamos ainda que o mundo nos acolha de braços abertos. Nem sempre é assim, bem sei. Quase nunca é assim. E, por isso, talvez a decepção tamanha com nossos projetos falhados, com os inevitáveis fracassos em que descobrimos que o preço do risco nem sempre é o abraço, mas o implacável tombo. Ainda assim recomeçamos tantas vezes, como se a memória do abraço encobrisse todas as quedas. Vida afora, e viver é perigoso como sabemos todos que atravessamos as veredas deste grande sertão, vida afora, a confiança, a incondicionalidade, provêm dessa relação primeira que, não importa como evolua, terá sido fundamental, determinante. Os torturados, muitos chamavam Deus, mas outros tantos, descrentes desse amor abstrato, gemiam “mamãe”. Esse, o depoimento pungente dos que viram a noite cair e por isso não negam o medo do escuro. Daí o mistério. Se tanto amor emana das mães, por que, em troca, a agressividade, o desprezo pelas mulheres? Onde se dá a fratura moral, que separa homens e mulheres adultos? Embora não separe no íntimo um homem de uma mulher? Que estranha passagem do carinho privado ao desprezo coletivo! Ter mãe terá sido um tal privilégio que só por isso mereceriam as mulheres a gratidão universal. Mereceriam bem mais do que um almoço no dia das mães, um presentinho comprado, às pressas, pela nora ou por outra mulher, já que “as mulheres é que sabem comprar presentes e sabem do que elas gostam”. Ainda assim, que seja alegre e festivo o dia das mães. Celebre-se muito a vida e a proximidade dessa mulher que, na verdade, preserva, ainda hoje, seus filhos e filhas de um grande risco. Porque ninguém se engane: pouco importa que idade se tenha, no dia em que a perdemos começamos a envelhecer. Com sua vida, apenas por estar viva, livra-nos de um grande mal. Porque não é na pele que se envelhece, é na alma. É na descoberta de que já não se tem para quem comprar um talco que, pela primeira vez, se acredita de fato que se vai morrer.

Ruy Castro

Rio, 1919 - O Carnaval da Espanhola “Quem não morreu na Espanhola/ quem dela pôde escapar/ não dê mais tratos à bola/ toca a rir, toca a brincar./ Vai o prazer aos confins/ remexe-se a terra inteira/ ao som vivaz dos clarins/ ao ronco do Zé Pereira./ Há alegrias à ufa/ e em se tocando a brincar/ nem este calor de estufa/ nos chega a preocupar./ Tenho por cetro um chocalho/ por trono um bombo de rufo/ o Deus Momo, louco e bufo/ vai começar a reinar”. Esses versos, assinados por Pierrot (com toda certeza, o poeta Bastos Tigre), no Correio da Manhã de 20 de janeiro já refletiam o clima das ruas. O Carnaval de 1919 seria o da revanche --- a grande desforra contra a Gripe Espanhola, a peste que quase dizimara a cidade. E, por um desses caprichos, seria um Carnaval tardio. O sábado cairia no dia 1º de março, dando à vida dois meses, janeiro e fevereiro, para acertar as contas com a morte. Mal rompido o ano, o comércio inundou a cidade com seus artigos para o Carnaval: lança-perfume, serpentina, confete, camisas com golas náuticas; quepes, bonés, chapéus de palha, luvas, meias, leques, panos africanos, miçangas; quimonos, sombrinhas, ventarolas. O lança-perfume vinha em caixinhas com três bisnagas de vidro --- as de metal só ali começavam a aparecer. Poucos o usavam para encharcar o lenço e aspirar; a praxe era esguichá-lo nas axilas das moças e nos olhos dos rapazes. Já o confete vinha em sacos e em várias cores. O mais caro era o dourado. Os espíritos de porco achavam o confete absurdo --- por mais barato o saco, era como jogar dinheiro no chão. E era mesmo porque, ao fim de cada baile, os salões tinham quase um palmo de confete no piso. No dia 9 de fevereiro, um domingo, a quase um mês do Carnaval, o Correio da Manhã noticiou: “Hoje o Rio se agitará em mais uma véspera carnavalesca, preparatória do grande prélio da folia que se travará daqui a três semanas. Serão bailes e batalhas de confete por todos os bairros da cidade, e em todos reinará a mais estonteante alegria. É que Momo está para chegar com seu séqüito de prazeres. Évoé!”. Uma das maiores batalhas aconteceu na avenida Rio Branco, embandeirada de ponta a ponta e iluminada por cinqüenta mil lâmpadas, e que o Correio descreveu assim: “Era fulgurante o espetáculo da Avenida. Multidões se arrastavam, levadas pelo mais vivo entusiasmo, e os blocos em cordões passavam cantando, gritando, vivando. As batalhas de confete e de flores eram promovidas pelos comerciantes e organizadas pelos rapazes e moças de cada bairro. A Light colaborou, cedendo bondes que trafegavam gratuitamente apinhados de jovens cantando e anunciando a batalha. Banhos de mar à fantasia (com roupas de papel crepom sobre os maiôs) se davam na ponta do Caju, animados pela Banda do Batalhão Naval, e na praia do Flamengo, ao som da Banda da Marinha. Naquele ano, começaram a surgir os blocos exclusivamente femininos, como o das Borboletas Negras, da praça Onze, e o das Baianinhas Invejadas, da praça Tiradentes. Os corsos tomaram as ruas. Eram os eufóricos desfiles de automóveis abertos, de seis ou oito lugares, levando jovens e adultos mascarados, sentados na capota arriada ou no encosto dos bancos, cantando e se agitando, a dez quilômetros por hora. Havia corsos em diversos bairros, mas o mais concorrido foi o que ia da praça Mauá à Praia do Flamengo, atravessando as avenidas Rio Branco e Beira-Mar. As pistas eram largas e o corso se formava em quatro filas, com intensa comunicação entre elas. Sua principal atração eram os flertes entre os rapazes e moças em carros diferentes, cada qual em sua fila --- daí os engarrafamentos quando um carro tentava mudar de fila. Um recado que todos entendiam era o do rapaz que beijava a ponta da serpentina antes de arremessá-la para uma garota em um carro no outro lado da pista. Ou quando esta respondia, com os carros já emparelhados, atirando-lhe confete perfumado. Havia corsos de tarde e de noite. Alguns corsos noturnos estendiam-se até às duas da manhã, e seus componentes não eram tão inocentes quanto os da festa vespertina. Em 1919, os jornais registraram casos de folionas atrevidamente “seminuas” --- ou seja, com o umbigo de fora. Às vezes, os carros dos grã-finos voltavam para recolher uma garota em outra fila. Esses jovens já tinham os sobrenomes que atravessariam as décadas seguintes: Barrozo do Amaral, Rocha Miranda, Marcondes Ferraz, Cupertino Durão, Lage, Simonsen, Scarpa, Guinle. O Carnaval ferveu nos clubes, e não apenas nos mais premiados, como o High Life, na Glória, com seu baile que durou quatro dias e noites. Houve o do Zuavos, na Lapa, e o do Assírio, na Avenida. Ninguém era discriminado pela cor ou classe social. Teatros como o Trianon, o São José, o Carlos Gomes, o República e o São Pedro interromperam suas programações, removeram os assentos e converteram suas platéias em salões de bal masqué --- bailes a rigor ou a fantasia. Cada qual contava com três orquestras, revezando-se no palco até o sol raiar. Em todos esses eventos, os camarotes tremiam. O escritor, jornalista e Acadêmico João do Rio preferia o do Teatro Recreio, onde podia “acanalhar-se, enlamear-se bem”, e foi nele que brincou os dois últimos Carnavais de sua vida. Na Quarta-Feira de Cinzas, o Rio despertou convicto de que vivera o maior Carnaval de sua história. Exceto pelos punguistas de sempre, pelos comas alcoólicos e pelos corações partidos, tudo correra bem --- só depois se saberia a enorme quantidade de “filhos do Carnaval”, gerados naquele período. A manhã de Cinzas era a hora da busca pelos enjeitados, outra tradição do Carnaval. Crianças desacompanhadas, abandonadas pelos pais, eram encontradas chorando nas ruas e levadas às delegacias para posterior resgate. Idosos também eram recolhidos nas calçadas, confusos e desorientados, e igualmente encaminhados. Seus parentes tinham se esquecido deles, ao entusiasmo dos três dias. Já com o sol quente, assim que o último folião, resignado, foi para casa dormir, chegaram os trapeiros --- os vendedores de papel velho, para recolher as montanhas de serpentina deixadas para trás. O jornal A Noite estimou que o Carnaval de 1919 produzira quarenta toneladas de papel e que isso renderia aos trapeiros, a cem réis o quilo, quatro contos de réis. Valor que, hoje, não temos como avaliar. Mas devia ser bom dinheiro, a justificar que esses profissionais, no luto do Carnaval, varejassem cada canto das ruas, em busca dos despojos da grande cidade.

Machado de Assis

Um Apólogo   Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha: - Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo? - Deixe-me, senhora. - Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça. - Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros. - Mas você é orgulhosa. - Decerto que sou. - Mas por quê? - É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu? - Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu? - Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados... - Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando... - Também os batedores vão adiante do imperador. - Você é imperador? - Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto... Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana - para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha: - Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima. A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile. Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E quando compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe: - Ora agora, diga-me quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá. Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha: - Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico. Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça: - Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!

13/03/2025