Mànya Millen
O GLOBO / Caderno Prosa e Verso (25.09.2004)
"Por favor, eu poderia falar com o senhor Lêdo Ivo?". Do outro lado da linha, sotaque ligeiramente arrastado, o recepcionista do hotel Ritz Lagoa da Anta, em Maceió, retruca, no tom delicado mas algo irônico de quem corrige uma informação: "Minha senhora, Lêdo Ivo é um salão. É o nome de um dos salões do hotel". O jovem atendente talvez desconhecesse naquela hora que Lêdo Ivo, bem mais que um salão que o homenageia, ainda é um dos maiores poetas em atividade no Brasil, legítimo filho da Maceió que deixou aos 18 anos, mas que sempre carregou em sua poesia. E que, naquele momento, era um hóspede ilustre do hotel da capital, onde estava para receber a devida celebração no ano em que completou oito décadas de vida (em fevereiro) e 60 anos de dedicação aos versos.
- Nasci numa terra que é um Brasil diferente, um estado lindo. E ele me trata muito carinhosamente, me sinto muito confortado - conta o poeta, depois de dar boas risadas com a história do auditório homônimo, ocorrida na segunda-feira.
Em Maceió, Lêdo Ivo - que revive a nostalgia da terra impregnando seus versos com as lembranças, cheiros e visões de Alagoas - fez ontem o pré-lançamento de sua “Poesia completa”, um encorpado volume de 1.099 páginas editado pela Topbooks/Braskem englobando 23 livros, de “As imaginações” (1940-1943) até “Plenilúnio” (publicado em junho último). No próximo dia 30, o livro será lançado na Academia Brasileira de Letras, no Rio, durante a abertura de uma grande exposição de fotografias com a qual a casa de Machado de Assis vai homenagear o alagoano que, em 1986, tornou-se um de seus imortais.
Tanta vida, tanta poesia e tanta homenagem arrancam de Ivo, além de felicidade, uma boa história.
- João Cabral (de Melo Neto), meu grande amigo, dizia que eu deveria ter morrido aos 21 anos, porque assim eu me transformaria no Rimbaud do Brasil. Ou no mínimo no Castro Alves do século XX. Mas eu dizia que preferia ser o Victor Hugo das Alagoas. E meu desejo se cumpriu - diz Ivo, às gargalhadas.
Aos 80 anos, o poeta comemora não apenas a existência longeva como a permanência da qualidade em sua obra, comprovada por críticos do quilate de Antonio Candido que, em carta a Lêdo Ivo pouco depois do lançamento de “Plenilúnio”, escreveu: “(...) Não lia versos seus havia muito tempo, e esta leitura me fez encontrar um Lêdo Ivo que é o mesmo e também outro. A mesma força que vem de dentro e arrebenta no verso, o mesmo virtuosismo que parece descobrir sentidos novos em cada palavra, a mesma capacidade transfiguradora que faz da expressão corrente uma linguagem nova. Mas parece que o teor musical das palavras mudou, gerando sonoridades atenuadas que as aproximam da fala, sem qualquer prosaísmo”.
- Sempre convivi com grandes poetas e concordo que vários deles, do meu convívio pessoal, quando atingiram os 80 anos começaram a fraquejar - observa Ivo. - Dizem os críticos que minha aventura pessoal tem sido diferente. Mudei muito continuando o mesmo. O que sempre desejei ser como poeta talvez tenha se realizado. Sou o poeta do exato, mas minha exatidão não é a da caixa de fósforo e sim a do oceano.
Essa exatidão caudalosa, longe de ser um contra-senso, seria a tradução, segundo Ivo, da junção de seus versos “longos, respiratórios, desdobrados” com a preocupação perene com a forma rigorosa. Localizado na chamada Geração de 45, e considerado, conta ele, a ovelha negra do bloco, Ivo lembra que não se sente um legítimo representante dela e se considera um escritor transgeracional:
- Os poetas da minha geração costumavam fazer versos homeopáticos, lacônicos. Mas o importante não é o movimento literário, porque uma literatura só é rica na medida em que pode oferecer figuras diferentes em uma mesma geração. A literatura não é uma voz única.
Juventude deveria buscar voz pessoal
Embora revele acompanhar pouco a produção literária contemporânea no Brasil, Ivo faz uma observação: diz ter notado que a poesia jovem é “muito reducionista”.
- Na minha opinião são poetas sem ambição. E, num certo sentido, muitos ainda se voltam para vanguardas já requentadas. Pensam que a poesia começou com Oswald de Andrade. De modo que eles deveriam ser mais ambiciosos e procurar ter uma voz pessoal.
Poesia das Alagoas que se espelha no mundo
A leitura de “Poesia completa” não deixa dúvida de que Lêdo Ivo é um autor de sua terra. “O Nordeste, para mim, é a pátria da imaginação brasileira”, diz ele, que cantou Maceió e Alagoas em verso e prosa. Mas os 23 livros evidenciam também a universalidade da obra de Ivo, que desde pequeno bebeu em fontes poéticas como Valèry e Rilke, e lia de tudo, desde “bula de remédio até Goethe”.
- Sem conhecer a poesia anterior à sua você tem poucas condições de ser poeta. São os poetas que vieram antes que o ensinam a ser poeta - afirma ele. - E a função do escritor é dizer com uma voz nova aquilo que já foi dito.
Os poemas também evidenciam outra paixão de Ivo, as viagens pelo mundo, a maioria feita em companhia da mulher Lêda, que morreu este ano.
- Para mim é muito difícil falar dela. Enviuvei exatamente no ano em que completaríamos 60 anos de convívio, pois a conheci em 1944 e nos casamos em 1946 - lembra ele. - Ela era muito presente em minha obra e essa “Poesia completa” é dedicada a ela.
Na mostra da ABL, o grande amor, os amigos, as viagens
Dona Lêda também ganhou um módulo em sua homenagem na exposição “O universo poético de Lêdo Ivo”, que será inaugurada no dia 30 na Academia Brasileira de Letras. Organizada pelo museólogo Anselmo Maciel, ela tem aproximadamente dez módulos que vão mostrar a infância do poeta, seu início na vida literária, suas viagens, os amigos, a imortalidade na ABL.
E depois das homenagens, o silêncio. Por ter lançado um livro este ano, Lêdo Ivo diz que vai passar os próximos dois quieto, sem produzir nada.
- Eu tenho um período de recesso, me sinto uma espécie de piscina vazia. Preciso de um tempo para enchê-la novamente - brinca ele.