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A América de Obama, ainda

 

Este ano sísmico de 2008 surpreende por acontecimentos absolutamente imprevisíveis, dentro das lógicas de poder delineadas pelas hegemonias políticas, após a amplitude do domínio da superpotência, a civilização do medo e a absoluta remoção de uma cultura da paz como alimentada, ainda, na virada do século. O governo Bush seria a conclusão inapelável deste controle bélico global na assunção de todos os riscos calculados para fazê-lo prevalecer, através, inclusive, da guerra preemptiva.


O fato consumado de uma presença militar ostensiva, quando o reclamassem os seus controles, avivou-se ainda pelo fantasma do terrorismo, transformado em uma ameaça universal, para além dos jogos apenas da Al-Qaeda, e diante deste personagem específico do novo século que é o homem-bomba. Os Estados Unidos ver-se-iam presa entre as projeções de um futuro, fundado na repetição possível do horror da queda das torres, e do retorno a um fundamentalismo básico, destruidor de toda condição de diálogo, ou busca de uma transação com o mundo do outro lado.


O arranque inédito do voto por Obama é o de uma América profunda que, exatamente, não se reconhece dentro deste establishment básico, e responde às raízes mesmas em que a cultura americana se identifica primariamente com a democracia. E não é outro este impacto inicial, que mostra o quanto o aparelho e o sistema, por mais portentosos que sejam, não bloqueiam uma consciência coletiva, confiante de que pode mudar uma estrutura de poder. É o país de fundo que aí se manifestou, despertado agora, a ver em Obama o corte de uma alternativa. Nela, inclusive, a marca da cor passava a ser até um símbolo já ultrapassado em escalada mais ambiciosa, no confronto com o empedernido situacionismo americano. É como se o problema do preconceito negro já tivesse sido levado de vencida, e os primeiros meses do ano mostraram que a cor não é mais condição de um racha eleitoral. Tal como o próprio candidato fugiu à cilada e deu, ao país, um discurso definitivo, a valer como a virada de página final das lutas de Martin Luther King. O que está em causa é, de vez, a outra opção decisiva que levará fatalmente ao descarte de Hillary como companheira de chapa do democrata.


Obama já resistiu a todas as convocações para a escolha dita óbvia, rendendo-se, com o mais fácil dos acenos, à proposta torrencial que lhe veio da ex-antagonista. Mais de metade, entretanto, dos eleitores de Hillary preferem McCain ao candidato que a venceu. Mais ainda, somam-se a esse repúdio os latinos mais empedernidos, refletindo o pior reacionarismo da Flórida, responsável afinal pela vitória milimétrica de Bush contra Gore. A opção Obama envolve, pois, dois saltos. Quer mais do que o make-up no establishment a que responderia o candidato negro, de braços com a da provedora de todas as receitas para uma Casa Branca bem-comportada.


O fiel da balança parece neste momento passar pela expectativa do atentado terrorista que, de fato, e de vez, leve de volta a América à civilização do medo, e a um governo McCain rigorosamente como um terceiro mandato de Bush e - por que não? - tendo como vice o general Petreus, a melhor das.vozes do Pentágono, para convencer o país da ocupação sem volta do Oriente Médio. A percepção desse risco está levando Obama a, surpreendentemente, manter o contraponto débil com o republicano a esta altura da campanha. Ou seja, a de não dissociar as condições da ocupação transatlântica de uma crise internacional sem retorno. A América de Iowa, dos universitários de Massachusetts e, sobretudo, de Chicago, espera por um novo discurso de Obama, análogo ao que em abril último esvaziou o problema racial desta contenda crítica.


Esta América de fundo, liberada por esta opção de voto, quer mais do candidato do que um discurso tático, para ir à frente no próximo 3 de novembro. O descarte de Hillary não o livrará da manifestação precisa sobre o quando e o como sairão os Estados Unidos do Oriente Médio. É, aliás, o que fará sair de casa esses 10% ou 15% a mais de eleitores, de vez desencantados com o status quo e que ainda dão a Obama a chance de não repeti-lo, mofinamente.


Jornal do Commercio (RJ) 11/7/2008