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Eleições livres e democracia profunda

 

Vem a furo esta semana o segredo de Polichinelo, de que Chávez muda a Constituição para reeleger-se permanentemente à Presidência da República. No quadro internacional de hoje os países resistentes à hegemonia americana ganharam a legitimidade inicial das eleições livres. Mas, à sua consolidação por uma democracia profunda, preferiram um retomo à condição plebiscitária de mobilização popular no confronto ao Salão Oval.


No caso do Irã, Khatami ganhou uma primeira trégua com o Ocidente numa investidura democrática indiscutível, na seqüência do regime dos ayatolás e, de saída, a reforçou Ahmadinejad. Mas tão só para instrumentar a escalada frente aos Estados Unidos, apoiada no poder de barganha do seu potencial nuclear. Para além da voz das urnas, o confronto de Caracas também se apóia no peso de suas reservas de petróleo, necessárias a auto-subsistência americana, sobretudo diante do fantasma cada vez mais nítido de conflitos sem volta no Oriente Médio.


O manejo fundo da realpolitik não prescindiu de princípio do placet popular que continuam a desenvolver tanto Caracas quanto Teerã, em detrimento do modelo político que lhes deu esta primeira legitimidade externa. Na trilha do apoio crescente a Chávez, a Venezuela reabre agora o debate da função dos partidos políticos, questiona a regra do pluralismo e do próprio contraponto entre a representação e a sociedade, ou o direito de expressão e comunicação, com o cancelamento sumário das redes de televisão oposicionistas. Mais ainda, as novas legislações em pauta submetem os movimentos sociais aos sindicatos, desequilibram as competências entre o Executivo e o Congresso pela outorga indefinida do poder de  legislar ao Presidente, na aplicação caribenha e generalizada do instituto das "medidas provisórias".


O exemplo venezuelano contagia hoje a Bolívia e o Equador, condicionados ao mesmo alinhamento histórico de Chávez. A eleição de Correa, em Quito, marcou um confronto simbólico extremo de opção nacional enquanto o candidato rival, Alfredo Noboa, é o maior milionário do país, na expressão latifundiária do mais crasso extrativismo bananeiro. A vitória teve porte plebiscitário mas.de candidato sem partido, nem vozes correspondentes no Congresso. Correa, à Ia Chávez, vai agora às mudanças da Carta Magna, a alterar a independência entre o Judiciário e o Legislativo, destituir deputados oposicionistas e mudar quoruns para aprovação de projeto de lei. A votação desses dias para uma assembléia constituinte é o novo caso exemplar em que a democracia sai da expressão pluralista de uma vontade geral para garantir a moção mobilizadora permanente contra a contradição principal, e do que vê como a dominação externa e o tacão do Salão Oval.


Mais grave ainda, nesta regressão institucional pós-eleições livres, a vitória de Morales na Bolívia irrompeu de um sentimento de identidade coletiva, recuado a uma reivindicação étnica, a do país aymará, tanto o altiplano índio exprimiu a rachadura corn o regime do status quo, enraizado no Oriente boliviano e sua concentração de riqueza em torno da prosperidade neoliberal de Santa Cruz. O ganho de Morales pode vir ao preço de uma quebra da nação boliviana. E o jogo das urnas, a confronto de sistemas e modelos econômicos em que se reformulem as dependências continentais, a partir do pólo de Caracas, frente aos Estados Unidos.


A capacidade que tem revelado Lula de evitar, no Continente, um confronto com Chávez, é do sucesso do país que já superou o estrito protagonismo latino-americano. Mas nosso impacto de fundo é o de potência emergente, que associou às eleições livres e continuadas o avanço da democracia profunda na crescente interdependência de poderes e seus controles, na garantia dos direitos humanos e da absoluta liberdade expressão.


Jornal do Commercio (RJ) 17/8/2007