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Um milagre, a vida anencéfala?

 

Deveria ter sido apresentada ao Papa, frente ao milhão e meio de brasileiros no Campo de Marte, a menina Marcela, cega, surda e muda, anencefálica, e nascida pela fé inquebrantável de casal goiano. O que representa esse extremo da defesa da vida a que se vincula o anúncio maior do presente pontificado? Ou em que termos a confiança de um milagre, fervorosamente expressa pela família, levou-os ao parto de feto que, em horas da fecundação, atestava a absoluta inviabilidade de qualquer função cerebral, e a nascer a uma existência meramente vegetativa? A sobrevivência ao parto já se tornaria extraordinária. E é a essa, talvez, que se voltou o agradecimento do milagre, e a recompensa do sacrifício assumido pelos pais.


De imediato, e dentro desses limites, pergunta-se até onde, nesse ser vivo, retoma-se a indagação de toda teologia da Igreja, de São Tomás e Santo Agostinho, de um lado, ou de Tertuliano, de outro, de saber-se até onde essa potencialidade do humano se realiza em feto assim comprometido desde a sua concepção. Quanto, de fato, na visão religiosa católica se pode falar já da presença da alma ou da viabilização da consciência no que marca essa própria e específica condição do humano dentro da estrita inércia da vida animal?


Bento XVI, aliás, já pode trazer a sua palavra nesses domínios do pré-humano, ao banir de vez, no início do seu pontificado, a crença no limbo exatamente como o lugar da eternidade como destino pós-morte desses seres inviabilizados, desde a origem, para o exercício dessa mesma humana condição. A lição de respeito à vida, na visão da palavra encarnada de hoje, é inseparável da sua dignidade, ao lado de seu estrito, e inerte, suporte físico. Discrepa desse anúncio o imaginar-se que a existência de um anencefálico possa depender da multiplicação do milagre pedido pela fé dos pais. Ou melhor, não está na prática da esperança cristã imaginar-se o milagre como regra-limite da sobrevivência do homem. Ou, sobretudo, rogar-se a essa intervenção dos céus para a manutenção em vida de quem sofra de doenças ou dificuldades genéticas mas, literalmente, de princípio, que não tem condições cerebrais para se constituir como pessoa, portador da sua liberdade e de seu efetivo destino.


Um efetivo contraponto entre a preservação da vida e sua viabilidade é o primeiro passo para toda discussão da ética do aborto, diante das visões contemporâneas do dever da procriação, ou do direito ao corpo, a secundarem a questão fundamental do que a ciência já defina como uma verdade, e um diagnóstico sem retorno, para a preservação, ou não, do humano no ser vivo.


Marcela não foi, afinal, apresentada ao pontífice. Mas quantas Marcelas na esteira do povo bom virão à luz cegas, surdas e mudas, aquém do que se possa esperar para que todos tenham vida?


Jornal do Commercio (RJ) 8/6/2007