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O Papa, enfim, em terra sua

 

O Papa vem ao Brasil no primeiro grande gesto de integração do continente à sua visão do pastor, nesses tempos da secularização e da "cultura do medo". Ratzinger tem toda visão crítica do que seja este universo, de após a queda das torres; do terrorismo desencadeado e anônimo e de uma possível e nova guerra de religiões. Bento XVI enfrenta um mundo de contrastes com o da Igreja do espetáculo, do consenso de João Paulo II. Sua morte transformou-se num verdadeiro sacramental, talvez, de um primeiro e talvez derradeiro encontro em que a humanidade mostrou a sua face de esperança e reconciliação.


A avalanche popular em Roma foi a todo o globo, a repetir o pedido pelo "Santo súbito" ecooado nas suas exéquias. A Praça de São Pedro continua hoje a regurgitar no anúncio do Ângelus, ou da bênção dominical do pontífice alemão, acorrendo seus conterrâneos em proporções comparáveis à peregrinação dos poloneses de Wojtyla. Mostrou-nos também Bento XVI sua sensibilidade extrema ao choque de culturas exasperado pelo perigo do conflito de crenças. Após o impasse das declarações sobre o Islã e a espada, na Baviera, virou-se para Meca em Istambul, acompanhando as orações dos muezzins. Ratzinger desmontou, de vez, o risco de que um fundamentalismo cristão se entrincheirasse no Ocidente, e sobretudo europeu, no prenúncio que alguns viram na escolha do nome do papa como fundador dos beneditinos, entre as ordens religiosas matrizes da Europa medieval.


Vindo ao Brasil, o Papa abre mais ainda os seus braços, tanto busca este arco maior da latinidade em que o catolicismo para além da Europa afirma hoje as suas raízes e o seu futuro. A laicização européia põe em questão o abandono pelo Estado da doutrina tradicional da Igreja em matéria de proteção da vida ou da família. Acontece agora, aceleradamente, a legalização, na Espanha, não só do divórcio, mas do casamento de homossexuais, a Itália de Prodi quer votar o reconhecimento matrimonial dos casais de fato e o último plebiscito de Portugal votou pela aceitação do aborto, ainda que um coeficiente da metade mais um do eleitorado não tenha sido atingido. É verdade que a Corte Suprema da França, por outro lado, vem de rejeitar a adoção por casais homossexuais.


Em toda a latinidade, por conseqüência, o pontificado enfrenta a tensão entre religião e modernidade, da busca da boa nova no seio do fenômeno inédito e perseverante da secularização. No Brasil, o Papa Ratzinger levará o seu anúncio profético para além apenas do que espere um país de simples ação missionária, ou das nostalgias da cristandade. A primeira canonização de brasileiro nato, Frei Galvão, vai ao século XVIII, mas só pode agudizar a percepção do que seja, no seu carisma, esta Igreja do pós-Concílio, da luta contra o autoritarismo militar, do apoio à consciência cidadã, e à luta contra a injustiça social tanto o nosso desmunido exorbita do quase lirismo do pobre evangélico.


A França, aos tempos da Renascença, foi vista como "a filha mais velha da Igreja" no seu papel matriz para a expansão da fé nos emergentes Estados Nacionais. Na virada deste século é a nossa Igreja a da vocação de falar aos novos gentios - os dos povos marginalizados -, no dito progresso ocidental. Não é outro o testemunho brasileiro, no paradoxo de país mais católico do mundo e também da mais iníqua concentração da riqueza em nosso tempo.


Jornal do Commercio (RJ) 16/3/2007