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Opinião: A execução inútil e o mito perverso

 

O mundo global sofreu, com o enforcamento de Saddam Hussein, o choque inédito de uma execução ao vivo, acarretando verdadeiras revulsões da consciência do nosso tempo. Vivemos a barbárie do cadafalso, bem como a intolerabilidade de um despotismo, incapaz de se mascarar sob razões de Estado ou da realpolitik de uma soberania, machucada por invasões estrangeiras e golpes e contragolpes de cliques políticas.

 

A condenação internacional contrastou com o espetáculo local de um "dente por dente", pedida por um Estado quase tribal, do talião sem mercê. Não se contiveram os carrascos e a entourage xiita, nesse espetáculo de insultos frente ao condenado, com a corda já no pescoço. Diante da velha guilhotina, o terror sempre respeitou a última palavra do executado, no recado a se transformar num post scriptum de mármore.


Os nazistas criminosos de guerra do século 20 não tiveram direito à explicação, nem a última mensagem, no instante derradeiro. Foram, todos, condenados mudos, os do cadafalso de Nüremberg, e nem se liberaram cartas dos suicidas, como Goernig. O casal Ceausescu, da Romênia, foi ao fuzilamento sem frase ou maldição, e o corpo de Mussolini, pendurado de cabeça para baixo, exibiu na última guerra mundial o único tumulto da morte nas mãos do povo.


Quem viu os dois minutos e meio da exposição mediática de Saddam deparou um perfil de enfrentamento quase coloquial, nas perguntas técnicas feitas aos carrascos, na compostura do perfil, no sobretudo, mãos e pernas algemadas, e sobranceria chegada ao irônico, no se ver exposto, nos últimos segundos, ao sarcasmo brutal dos executores. A penúltima frase soou como em jactância de gabinete, no desprezo anódino do adversário, Moqtada. Os instantes seguintes foram a entoação à Alá, cortados, no segundo verso, pelo barulho seco do pescoço partido.


Três horas após ter sido acordado na cela, e do se dar conta da iminência do desfecho, o ditador não fugiu do script que se impôs. A carta-despedida, à hora do conhecimento da sentença inapelável se viu reiterada sem hesitação diante da provocação xiita, in extremis. Toda fala ganha um teor religioso, pouco presente nos tempos do triunfalismo de Saddam, mas se acompanham de uma louvação pessoal, também inédita, do líder no vestíbulo da morte.


O documento se quer fundador de uma visão nacional do Iraque selado pelo seu martírio, cuidando do não encampar os fratricídios étnicos, a demarcar o perfil do país de corpo inteiro. Defrontando a invasão da Otan; a "perfídia persa", que devolve a um confronto milenar, e a luta contra Israel e a afirmação da Palestina.


O respeito a um último script se presumiria frente a um condenado, sem volta. Foi este último direito que o talião da hora transformou, de castigo por crime contra a humanidade, numa refrega tribal sobre toda exigência de um Estado de Direito.


O martírio irrompeu dos segundos finais, por mais que o seu cenário se tivesse montado no sangue frio com que Saddam - como se viu - introduziu a sua morte na saga da mais implacável chegada ao poder com o sacrifício ostensivo e assumido de seus adversários. Só se poderia cumprir uma vez a sentença, na avalanche que se sucederia, em penas máximas, no invariável de seu horror. A prisão perpétua baniria o criminoso para o opróbrio errante e sem fim, privando-o de todo reconhecimento pos-mortem e da construção de seu mito. A execução criou o curto-circuito, do pró ou contra sumário, e a inevitável legenda do martírio. Fica para Saddam o castigo da glória perversa. Consagra-se como herói dos sunitas, tanto se preparou para ser a persona nacional do Iraque, contra toda sorte de seus invasores. O impropério xiita dos últimos segundos tornou impossível o túmulo raso e secreto do ditador. O culto ostensivo e imediato estalou como vingança, que pode ir ao jihad, a projetar-se no que Saddam não foi, mas o fizeram seus algozes.


Jornal do Brasil (RJ) 10/1/2007