O repúdio popular entrevisto à visita do papa à Turquia põe em causa o temor expresso pela Comissão de Alto Nível das Nações Unidas, recém-reunida em Istambul, quanto à irrupção em nossos dias de uma crescente "guerra de religiões". É conflito brotado do inconsciente coletivo, em que explode no mundo islâmico uma percepção tardia dos limites a que chegou a dominação ocidental. E tal até uma verdadeira expropriação de sua identidade pela modernização e controle tecnológico e econômico da sua vida coletiva.
A revolução de Khomeini, há 30 anos no Irã, deu início a esse desagravo profundo, que se extremaria na violência do terrorismo, culminado no abate das torres gêmeas em Manhattan. E as respostas ocidentais no Afeganistão e no Iraque podem nos ter levado a uma inesperada "civilização do medo". Ou dos estereótipos da desconfiança entre o Ocidente dos neoconservadores evangélicos no Salão Oval e um islã assumido pelo sectarismo sem volta da Al Qaeda.
De acordo com as pesquisas Gallup de junho último, 60% dos americanos desconhecem o Islã, e 70% deles não têm o mínimo interesse em se informar sobre ele. Amplia-se, por força, este índice no mundo islâmico, frente aos Estados Unidos e à Europa, fechando a cortina das idéias feitas e dos preconceitos sem volta. A ida de Bento XVI a Istambul marcará um corajoso passo adiante do pontificado, no intuito do desarme deste confronto, exasperado a partir da crise das caricaturas do profeta e da leitura distorcida de Ratzinger na referência à espada do Islã, na conversão dos infiéis.
Impossível encontrar-se precedente, em nossos tempos, de gesto de desarme como o do papa, expondo-se, na sua visita, à interlocução com o país exatamente mais refratário à sua condução ao trono de Pedro. Pisa o chão islâmico que mais se abriu, no século 20, ao Ocidente, na revolução modernizadora e secular de Atatürk, no empenho de constituir o seu país no modelo nacional europeu. Mas é esse mesmo Estado oficialmente leigo que se expõe agora ao levante cultural, e a um neofundamentalismo religioso. A palavra e o risco de Bento XVI são o de encarnar também dois reducionismos: o de opor-se à entrada da Turquia na Europa e o de assimilar esta a um continente exclusivamente cristão. Fiel aos sinais dos tempos, a Igreja supera toda reivindicação nostálgica de um passado de fé em integrismos históricos e geográficos.
Não há precedentes para o peso de um gesto e a implacabilidade de suas conseqüências. Ratzinger vai à Mesquita Azul e ficará oito minutos em Santa Sofia. Fora da visita à sua terra, a primeira presença internacional do pontífice faz-se numa fronteira de provação e de testemunho, em dias tão distintos do triunfalismo litúrgico de João Paulo II. Mas é da força do gesto de Bento XVI que se instaura a palavra, senão a paixão, pelo profético e vai à antiga Constantinopla pregar o respeito peregrino da Igreja pós-Vaticano: o do clamor de Paulo VI, pela coexistência da diferença, em bem do "mais ser do homem todo e de todos os homens".
Jornal do Brasil (RJ) 29/11/2006