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O legado de Kofi Annan

 

Deixando o cargo a 1° de janeiro, Kofi Annan recebeu nítido reconhecimento internacional pelo empenho manifestado, nesse decênio, na efetiva construção de uma cultura da paz para o nosso tempo. A última Assembléia Geral já manifestara maciçamente nos seus aplausos o apoio à determinação do Secretário Geral, por um mundo decidido a superar os limites estreitos da soberania nacional. Seu discurso antecedia o de Lula e teve, na seqüência, o do presidente Bush. Compactavam-se, assim, as mensagens contrastantes, entre a busca de um novo Estado de Direito universal e o avanço da hegemonia protagonizada pela potência exclusiva e, sobretudo, pela visão missionária do horizonte político do Salão Oval.


O discurso de há poucos dias, no Truman Memorial, do ex-secretário-geral Kofi Annan transformou-se num legado das preocupações a longo prazo sobre o futuro de um multiculturalismo liberto da "civilização do medo". Os impasses de Darfur, a permanência do escândalo de Guantánamo ou as limitações objetivas da Corte de Haia são alguns dos sinais do passivo que herdará Ban Ki-Moon, ao início do seu novo mandato em Nova York. Este também coincide com uma maioria democrática em Washington, marcada por um possível restauro do país às linhas fundadoras da democracia, e do regime das liberdades nascidos do ideário jeffersoniano. Não foram, entretanto, as linhas de uma esquerda democrática as que predominaram no sucesso contra Bush. Venceu o pleito um centro político que não deixa dúvidas sobre a permanência realística das tropas americanas em Bagdá, e repensa o que seja a liderança americana no pós-11 de setembro.


Significativamente, também, esta nova liderança marca a expectativa futura de uma mulher na Casa Branca. E a alternativa fica entre Hillary Clinton, partidária ostensivamente dos Republicanos na invasão do Iraque, e Nancy Pelosi, a nova speaker da Casa, decididamente disposta à volta ao espírito do new deal, de Roosevelt e Kennedy, e de revalorização profunda da democracia diante do salvacionismo evangélico.


O discurso de Annan trabalhou o sulco da coexistência na diferença através do avanço, já acolhido por Ban Ki-Moon, do Programa da Aliança das Civilizações. O último relatório do Grupo de Alto Nível em Istambul, mostra como o mundo do terror não se pode resolver por um piedoso retorno ao pré-11 de setembro numa espécie de arrependimento universal e contrição ostensiva pela violência desatada em todo o globo. Vive-se o mundo de preconceitos insuperáveis, tanto não se chegue ao âmago desse dissenso. Ou seja, ao reconhecimento de um direito universal à diferença, no seio mesmo da globalização, e à margem das novas ditaduras dos valores ocidentais, à custa da alma dos povos e de sua identidade.


A Conferência de Istambul foi ao eixo do confronto Islã-Ocidente e evidenciou o longo e paciente programa que não passa pelas guerras preventivas, nem pelas demonstrações de força ao modo da velha guerra fria, mas por ações afirmativas do desarme dos espíritos, e a efetiva condição de diálogo a supor, de saída, o respeito à identidade dos protagonistas. E esta, por sua vez, nasce de uma premissa básica: a do respeito ao universal dos Direitos Humanos, como condição mesmo de saída a todo projeto salvacionista do mundo hegemônico.


O Brasil hoje se associa à proposta da Espanha e da Turquia, nesta nova etapa do Projeto da Aliança das Civilizações, deixado como peça-chave da herança de Kofi Annan. E a cada impasse que enfrentará Ban Ki-Moon corresponde um tópico fundamental destes mesmos direitos, que se definiram como as tábuas da lei da ONU em São Francisco. O contraponto aí está entre as torturas de Guantánamo e Abu-Ghraib e a integridade física da pessoa; o respeito aos credos e o direito de expressão na crise dos cartoons de Maomé; a faculdade de emigrar diante do novo Muro de Berlim, a se construir entre o México e os Estados Unidos.


O Brasil deverá acolher, em maio próximo, a conferência a garantir o avanço, já há mais de meio século, da Declaração de São Francisco sobre o que seja, de fato, o mundo da cidadania e não dos poderes hegemônicos e sua visão imperial redentora de mundo. O país de Lula, no cenário de sua democracia, paradigma hoje dos países em desenvolvimento, tem a legitimidade para o debate do que seja a diferença, a representação política e, sobretudo, uma consciência nacional de mudança frente à injustiça estrutural do statu quo, de todos os vãos reformismos de todo o sempre.


Jornal do Commercio (RJ) 5/1/2007