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O Haiti que nos desafia

 

A Academia da Latinidade realiza seu XII Encontro em Port-au-Prince, buscando uma dessas situações-limite dos diálogos pela identidade, no mundo hegemônico. Torna-se cada vez mais urgente pensar-se ainda na diferença dentro do universo de após o 11 de setembro. A ''civilização do medo'' começa pelo corte do globo em inimigo, amigo, eliminando a visão, de fato, da alteridade ou do pluralismo por onde se constrói uma efetiva cultura da paz. Nem há como insistir sobre a própria decadência desta idéia-chave, que parecia comandar o século, como esperaria o mundo de depois da queda do Muro, da extraordinária União Européia, e uma administração internacional para vencer o desequilíbrio de riqueza.


A Academia nasceu de um intuito de levar uma intelectualidade mediterrânea a questionar da uniformidade crescente com que os Estados Unidos se definiam como portadores da civilização, e voz final do que fosse o progresso, a democracia e o futuro, a se definir em termos quase que cibernéticos. A Latinidade juntando pensamentos como de Edgard Morin, Jean Baudrillard, Gianni Vattimo, Federico Mayor, Alain Touraine, ou na América Latina, Carlos Fuentes, Helio Jaguaribe, Sergio Paulo Rouanet, buscou esta outra vertente do mundo global, com o universo iraniano, árabe e turco, unificado pela visão islâmica. Ou pelo universo da afro-latinidade, a repensar cada vez mais as suas condições de desenvolvimento e o despenhadeiro nos níveis de atraso comparado em que hoje se reconhece as regiões subsaarianas e do centro do Continente.


Dialogou a Latinidade, pois, em Teerã, em Alexandria, e agora em Ankara e Istambul. Era fundamental, ao mesmo tempo, e no próprio âmago do Hemisfério, se buscasse o recado cada vez mais importante da diferença haitiana, hoje tão trazida à política externa brasileira. Não há só a salientar importância assumida pelo nosso país, no cuidado com o equilíbrio e a recuperação haitiana, diante das lógicas hegemônicas de uma visão de segurança ditada pelo Salão Oval. Só começa, por outro lado, a se reconhecer a criatividade desta força da paz brasileira em Port-au-Prince, que logrou se identificar com o mais fundo da população, não só pelo futebol, mas também pela tarefa em que os nossos destacamentos militares puderam desentulhar o lixo de Port-au-Prince e retomar as condições gerais de normalidade urbana da metrópole.


Os debates dos próximos dias em Port-au-Prince querem trabalhar essa especificidade, sobretudo a partir da denúncia do silêncio inicial com que a força de Toussaint reptou o neo-escravagismo napoleônico e exibiu a contradição da Convenção Francesa frente ao grito haitiano. Scholars como Ralph Truillot puderam na Universidade de Chicago mostrar essa repressão pelo silêncio, com que o Ocidente do século XIX ignorou a revolução haitiana. Ela chegou até, para estudiosas com Sybille Fisher, ao disavowal, ou seja, à sua consciente denegação frente ao insólito haitiano e o desconforto que imporia a uma visão da modernidade, entregue às matrizes franco-britanicas.


À época em que se discutem todas as retomadas da identidade periférica, o Haiti, na densidade da sua reflexão e na pertinácia da sua rebeldia, constitui um interrogante essencial para esse dialogo que se queira ainda de muitas vozes a se vencer o fundamentalismo da era Bush. No seu próprio entendimento de Latinidade, só estamos no começo do que o Haiti quer avançar neste pluralismo essencial a um globo rachado pelas desconfianças radicais.


Após o Haiti, deverá a Academia da Latinidade voltar-se ao núcleo, mesmo, da América Latina, e ali do que seja o acompanhamento da mesma busca identitária, entendê-la como ela se reclama já de culturas a reivindicação identitária na Bolívia e no Equador, hoje devastados pela nova instabilidade institucional. Por onde se prospera a verdadeira manutenção da diferença, que não se cantona em cultura subalternas, mas vai, de fato, como mostrou o Haiti, perseverar na sua memória, no seu senso crítico, por maior que seja o forçamento dos ritos democráticos, por sobre a verdadeira participação popular no seu imperativo de mudança.


No encontro de Port-au-Prince, até 16 de setembro, indaga-se, através de conceitos como o do simulacro, ou das representações virtuais ao que sejam de fato os álibis da normalização frente à defesa da democracia, do primeiro, e essencial, direito à diferença. E não foi outro, aliás, o reclamo básico da Conferência de Brasília no primeiro encontro entre o mundo árabe e latino-americano. A senda prospera, na pergunta múltipla de Port-au-Prince.


 


Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 14/09/2005

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), 14/09/2005