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Lula, os radicais e os 'sem palácio'

 

Entre estilhaços e questões de ordem, emendas aglutinativas e destaques, o placar de aprovação em primeiro turno da reforma da Previdência dá-nos a prova dos noves do sucesso do governo. Por entre tantos anticlímaxes, pessimismos de praxe, pragas e vaticínios das Cassandras e sabenças derrotistas, o resultado não deixa dúvidas quanto a verter o regime o sucesso eleitoral em máquina de votos para as primeiras reformas. E garantir o a que veio Lula.


Passou-se o Rubicon entre tantos atrasos estratégicos ou buscas estéreis do melhor momento de dar a briga. Foi uma vitória de Pirro, a não se repetir o êxito da madrugada de 7 de agosto? Um canto de cisne de forças que ganharam a batalha para não mais poder fazê-lo? O velho Brasil, apeado do sistema, vê no resultado do tira-teima o começo das verdadeiras oposições que venham, de fato, ao seu canto do ringue para vaticinar o pior desfecho às novas votações, sobretudo devastando a esperança da reforma tributária.


Noves fora, e a bem da consolidação, de vez, das maiorias parlamentares, assistiu-se ao ajuste geral do balanço dessas forças, pondo de vez em ação uma vontade política por sobre as meras presunções da força nascida da festa eleitoral e do intacto da imagem do presidente, vencidos os tempos regulamentares de todas as luas-de-mel. Os cabos de guerra foram postos à prova, de vez, para o trabalho das verdadeiras tensões do governo. Equilibrou-se o arrufo entre os poderes, inclusive pela nova e decisiva interveniência de Maurício Corrêa, reconvertendo a magistratura da tentação da greve.


Ponteia uma primeira articulação no negociarem-se, conjuntamente, as reformas da Previdência e fiscal, vislumbrando-se o desbloque da alocação das receitas públicas em nova empreitada em que os governadores, entretanto, não serão os sócios do governo federal. Mas a saída do impasse na Previdência - e aí se afirma a força do sistema - não se troca pelo escanteio da mudança tributária, mas pela definição concreta de sua estratégia. Revela-o a visão do senador Mercadante. A última escalada do restolho corporativo, entre policiais jubilados, auditores e fiscais da Receita - personagens antológicos do Brasil dos privilégios - só evidencia a certeza da causa do governo e seu impacto na opinião pública, no acabar de vez com a ronha dos “mais iguais”, no aquinhoar-se das prebendas de todo sempre.


Eis o Planalto, de conta feita de votos para fazer a diferença de uma esquerda que se reconheça e avance. O que importa é que não durma de touca o presidente quanto aos pruridos do radicalismo, em casa, do PT. Do comportamento dos aliados e às garantias de mercado que lhe proponham os votos da oposição, sôfregos de um adesismo latente às bancadas dos “sem palácio”. Por força, a radicalidade é acne ou irrupção inevitável de um partido que, pela primeira vez, amadureça como governo. Nada mais sadio, e essencial a uma legenda de esquerda, no que represente o rigor do compromisso com a utopia do sonho certo, na idade certa. E só há a louvar a coragem do trio - Heloísa, Babá e Luciana - no seu desassombro e pureza dos melhores trinques, como mande a cartilha do primeiro partido diferente na nossa história política.


Significativamente, também, o núcleo não prosperou ao longo de meses. Crestou-se como o foco de um idealismo de contrapeso ao processo de tomada de consciência, que leva o poder nos seus impasses e tensões concretíssimas às mãos sujas, a que se referia Sartre, como também heróicas, no construir uma vigência política. Na penumbra da trinca, mostrou também o 7 de agosto, ficaram os oito da dúvida, na sabedoria-esperteza da abstenção. Esgueiram-se do sacrifício, mas não põem muque no cabo-de-guerra, nesta hora de deslanche de um novo Brasil, quando se puxa de um só lado e o desfalque não tem perdão. Noves fora, ainda, e o que fica é a impressionante fidelidade dos partidos aliados, dentro do arco construído pelo 27 de outubro, sem quebras, e que trouxeram, sem quebra, praticamente de votos à reforma, os quoruns do PSB, do PL, do PPS e até do PTB.


O instigante do futuro vai todo ao que farão os partidaços, constitutivos do antigo regime, o PFL e o PMDB, legendas presas à endogamia nas rinhas municipais, mas tentados a projetar a sua sombra sobre o palácio perdido, em jogos ainda canhestros, de estréia no outro lado das bancadas do Congresso. Não lhes faltaria a centelha do PSDB, ainda confuso, hamletianamente, entre o que seja ou não seja a social democracia, na prática presente da mudança do país.


A votação do dia 7 traz esse dado decisivo. As grandes legendas do clientelismo brasileiro saem rachadas, com precisão de meio a meio, entre quem votou e não votou com o governo. Idênticos, se compensam e se contrabalançam. Ou melhor, ficam mais que nunca à frente do numerário de votos de que se queira servir o governo no placar do situacionismo.


O que assistimos é este desossamento completo dos partidaços, recortados nos pratos da balança farmacêutica, de fiel sem perdão, no que tragam de reforço ao Executivo, sacável à hora a ordem de pagamento do cargo público, da benesse ou do rebuçado. Despreocupados de qualquer coesão ideológica, vínculo programático ou, até agora, jogo dos próprios caciques, o PMDB e o PFL valem o quanto pese, um a um, dos seus votos a José Dirceu. Não o que, como um todo, lhes imponha qualquer palavra de ordem ou confronto com o regime.


O desfecho da primeira rodada da Previdência só afiou o capítulo seguinte, abrindo as cortinas da contenda tributária. Foi-se a bruma do parto, afinal tardio, do primeiro round das reformas. Importou, sobremodo, a tática das concessões veniais, previstas que são para as folgas de última hora, no resultado incisivo da vitória. Entre mortos e feridos foi-se o blefe. E, sobretudo, mostrou-se o tamanho do único risco temível a esta altura pelo PT, que é o da própria fidelidade interna. No demais, e para a contenda tributária, não se esqueça de que se vai-se à vera com os governadores, mesmo porque, num mesmo partido, uma é a fidelidade regional, outra a da contabilidade nacional em que importe o seu voto. O clientelismo é sabiamente vesgo, seletivamente surdo e sabe se soltar da mudez para ditar o seu preço. E o chefe da Casa Civil conhece o quanto não escondem a nostalgia os “sem palácio” que chame ao terceiro andar do Planalto.


 


O Globo (RJ) 22/8/2003