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O diplomata e o presidente

 

É o próprio presidente Fernando Henrique, de longe o mais preparado dos nossos governantes, trunfo internacional reconhecido da nossa ciência social, que derruba toda pretensão de que se deva exigir diploma superior para chegar ao Planalto. A frase veio peremptória, deitando água fria na ofensiva da propaganda tucana, fiel ao exemplo que FH quer dar ao país, de uma transição absolutamente democrática e que remate o seu papel no avanço das instituições brasileiras.


Ninguém se ilude sobre a gravidade dessa passagem de poder e do quanto o futuro presidente, desde logo, atrairá os olhares do mundo - como vem de ressaltar o "Washington Post". Somos o único país desta banda do Hemisfério dotado de peso inegável entre os Estados ainda soberanos, diante de uma ordem mundial em vias de se transformar em hegemônica pela doutrina Bush-Cheney.


Os olhos pregados lá fora para o próximo 6 de outubro se deram conta de como uma vitória petista avança sobre as outras candidaturas um símbolo inédito e aglutinador, ao trazer à Presidência a expressão e o retrato da enorme maioria do país do outro lado. Dos "sem-vez", que permaneceram na crença da conquista do poder pelo voto, pacientando, disciplinados, numa escola de governo que representou, em mais de uma década, a passagem do PT por administrações estaduais e municipais.


Neste Ocidente que se quer decididamente pluralista e rejeita, a pretexto da globalização, o império político, o grande risco é o dreno da democracia pelos excluídos. Ou seja, de se ver a marginalidade social gigantesca dos países periféricos romper, de vez, com a expectativa de mudança e afundar na violência sem volta, tal como a que assola hoje a Colômbia e o Peru.


Não temos nem as Farc, nem o Sendero Luminoso, não obstante o nosso quadro, ainda mais dramático, de confronto entre quem tem e quem não tem. Possuímos, sim, o PT, que impediu o racha, mantém os destituídos dentro do sistema e se impôs ao respeito da linha de frente das democracias ocidentais. As instituições livres se fazem, por certo, de votos, mas, antes, dos símbolos compartilhados, que criam o sentimento de verdadeira integração nacional. E o que fornece Lula, neste momento em que as hegemonias atingem a moela das nações remanescentes, é a percepção inédita de que um torneiro mecânico possa chegar à Presidência da República. Na maior eleição das democracias de voto obrigatório - mais de cem milhões de brasileiros indo às urnas - o PT plantou para os destituídos um gigantesco sentido de auto-estima que desata num indiscutível capital social para o desenvolvimento.


Nenhuma outra agremiação política aporta esse trunfo a mais no dia do voto. E quem ganhará, nesse caso, e na alegria inédita trazida à população tão cordata quanto alerta, não é um aventureiro personalista, nem um capataz do populismo, nem mesmo quem chegue ao Planalto pela força de um carisma.


Nas boas surpresas desta virada de século, Lula reflete a ascensão rigorosamente sofrida de quem percorreu todos os estágios de uma liderança coletiva. Da voz do migrante das secas feito líder de porta de fábrica em São Paulo, chefe de sindicato, deputado federal, presidente de partido, escrutinado, pelos seus, a cada lance da escalada.


Tem a cara do brasileiro da média da nossa precaríssima renda per capita, que nele se reconhece e nele faz legião tanto quando, dominantemente, a própria classe universitária vai votar em Lula, congregando o Brasil de fora e a verdadeira elite nacional. Quem cobra o diploma do candidato são os donos do poder de todo o sempre, dos grotões ao parasitismo dos barões das clientelas, que, por uma vez, vêem abalado o ninho quente e a inércia da volta do mesmo a cada eleição brasileira.


O álibi do veto a Lula pela falta de diploma só manifesta o preconceito do país que se escora no canudo-barreira para excluir os pretendentes ao poder nascido da modernização e do avanço do partido diferente. A educação que faltaria a Lula é a que se compensa, no específico que se reclama de um presidente da República, pela pedagogia de uma tomada de consciência nacional, pelo mais de Brasil que conheceu o candidato a cada embate político, nas caravanas a penetrar em nossos mundéus, como nenhum outro pretendente ao Planalto. Ciência e preparo, esses com que Lula foi, repetidamente, à televisão eleitoral com os dossiês fartos e encadernados do que fazer para cada setor de governo, deixados à mesa dos adversários, caladas as propostas pelo torneio do cara a cara, ou do tira-teima da rinha, entre o tacape das agressões, o disparadeiro dos saberetes ou o morde-canelas dos provocadores.


Quem, quando a imagem não mente por sobre os diplomas, melhor compôs a figura de estadista no embate com os contendores? Um presidente, afinal, se faz da carga de percepções nacionais, do peso de programas e da paciência de ouvir. Lula nos deu o que escapa à competência de qualquer marqueteiro. É o sentido da confiabilidade, que não se passa por uma cerimônia de anel de grau, mas pelo juramento, em carne viva, de candidato que, mais que qualquer outro, viveu o vazio no estômago, a fila do emprego denegado, e responde, na centena de milhões de brasileiros que vão às urnas, à alforria da dignidade cidadã de quem pode nada ter, mas que o voto tem.


Imerso o país na república dos bacharéis e dos marechais, nunca ocorreria ao eleitor pedir-lhes o diploma. Mas ele se cobra agora como credencial dos medalhões do passado, quando alui pela primeira vez o ninho quente do sistema, em virtude do próprio êxito da nossa modernização e de uma nova mobilidade social que democratizou a esperança.


O PT puxou-nos a essa identidade em que o nosso verdadeiro milagre é político, no trazer o Brasil do salário-mínimo e de seus porões ao direito de ser governo, para ser mais brasileiro. Em 12 anos, um só partido manteve a sua proposta, sabendo que não se elege apenas um homem ou uma idéia, mas se responde a um contínuo plebiscito pela viabilidade de um projeto nacional, sem curadores perpétuos e auto-investidos da competência-prepotência. É o que quer agora o Brasil de Lula, para além do terço do país que sabe disso, desde o começo da caminhada.




O Globo (RJ) 30/9/2002