Sr. Orígenes Lessa,
no belo discurso que acabais de proferir, traçastes com impecável adequação, no mais puro modelo acadêmico, a saga da Cadeira 10, de Evaristo da Veiga a Osvaldo Orico, passando por Rui Barbosa e Laudelino Freire. Esta Cadeira agora vos pertence. Em Evaristo, o jornalista e o político, que Rui Barbosa escolheu para Patrono da Cadeira, vistes com justiça, em toda a sua grandeza, o protótipo das ideias liberais em nossa formação nacional. E ele a grande figura do glorioso período republicano da Regência, a antecipação dos princípios de Democracia e justiça social de que Rui Barbosa se constituiu em paladino na Primeira República. Todos os ocupantes desta Cadeira, e, de um modo muito expressivo, o próprio Patrono, vieram do Jornalismo, que foi sem dúvida a escola superior, se quiserem a universidade, da maioria dos nossos escritores e estadistas.
É este o vosso caso, com uma agravante. Além de jornalista, cronista e repórter, a atividade de publicitário ocupa uma grande parte do vosso labor intelectual, o ganha-pão do escritor, num País onde são raros os que podem viver exclusivamente das Letras. Em toda a vossa bibliografia, que é das mais extensas, até a presente data, com dez novelas/romances, outro tanto de coletâneas de contos, seis volumes de reportagens, vinte de histórias infantis, muitos com numerosas edições, adaptações para o rádio, a televisão e o cinema, dois pelo menos ultrapassaram a barreira de um milhão de exemplares: O Feijão e o Sonho, publicado em 1938, tem mais trinta edições; outro, porém, mais novo de 1970, Memórias de um Cabo de Vassoura, com 24 edições, registra um número bem maior de exemplares, superior à casa do milhão. Memórias de um Cabo de Vassoura foi tema da Escola de Samba Unidos de Lucas, e, na grande noite da nossa maior festa popular, trezentos garotos montados em cabos de vassoura compuseram a nota dominante do desfile.
Designado pelo nosso querido, imortal e irremovível Presidente, Austregésilo de Athayde, para fazer o vosso elogio acadêmico assaltou-me desde logo uma pergunta: em discurso de meia hora, por onde começar?
É grande e variada a vossa produção intelectual. Ficcionista, contista e novelista, repórter, cronista maior da Revolução de 1932 e entrevistador de Charles Chaplin, Sinclair Lewis, Langston Hughes, John Steinbeck e tantas outras celebridades internacionais nos anos vividos nos Estados Unidos; este é apenas um aspecto da vossa obra. Há mais: autor de histórias para crianças, estudioso do folclore, sobretudo da Literatura de Cordel, analista do fenômeno do papiamento no universo linguístico do Caribe.
Outro trabalho ainda inédito merece uma referência. É o estudo comparativo entre Inácio da Catingueira e Luis Gama, o primeiro, poeta popular, nascido na Paraíba, escravo e analfabeto, o segundo, negro inserido na sociedade de São Paulo onde militou na imprensa e no foro:
Ambos têm sangue de escravo, ambos quase negros, por negros tidos, ambos assumindo a negritude, o primeiro, sujeito por lei, o segundo contra a lei combatendo. Luís Gama conseguiu estudar numa batalha heroica, tinha consciência bem viva da luta geral em que se empenhava. Chegou a libertar mais de quinhentos escravos, dizem os seus biógrafos. Inácio não sabia ler, tinha apenas gênio (ou genialidade), era, aliás, maior poeta que Luís Gama.
E, vejam bem, Srs. acadêmicos, “A Bodarrada”, o famoso poema de Luis Gama, é considerado por Manuel Bandeira e Péricles Eugênio da Silva Ramos, dois dos nossos maiores exegetas da Poesia, como uma obra-prima do Romantismo Brasileiro. O vosso estudo é, porém, de caráter sociológico e não estético e envolve uma das questões mais graves e menos estudadas entre nós: o preconceito racial, que se torna ainda mais cruel e absurdo, quando desce na escala social e contamina os mais desprotegidos, ou como dizeis, aquele que leva os mestiços a repudiarem, com o primeiro vago alvejamento da epiderme, o contingente de sangue negro que possuem, sangue muitas vezes mais limpo que o dos brancos, porque nem sempre de bandidos, de degredados, de marginais e, na melhor das hipóteses, de simples vendedores e compradores de escravos.
O racismo na Literatura de Cordel é um tema que há muito perseguis e será certamente uma contribuição da mais alta importância para a compreensão desse problema, senão do combate a essa mácula que não devia existir, em nossa sociedade de mestiços, para a configuração futura de uma autêntica democracia racial, nosso fanal e nosso orgulho, nossa utopia.
Repito a pergunta, que me desafiava, e ainda agora me deixa perplexo: Por onde começar? Tentarei um atalho. Tentarei abrir uma clareira em toda a floresta construída em mais de cinco decênios.
Ao acaso, lembro-me de um texto de publicidade, prosa repassada de poesia, que pode talvez iluminar o caminho a ser percorrido. E um exemplo, como tênue fio de luz, em meio a tantas outras opções que teria, diante da obra do escritor:
Eles voltaram. Nós voltamos com eles. Nós e toda a humanidade. Todos nós vivemos, em amor e espanto, esta fantástica aventura, a conquista maior do gênio humano. Agora a Lua é ali. Está apenas a 384 mil quilômetros. Terá poucos atrativos turísticos, desolada e hostil como parece. Mas o homem já esteve lá e vai voltar. A Ciência o levou. A Ciência vai reconstruir, friamente, dos fragmentos da Lua já trazidos, toda a sua história, do Sol e outras estrelas. Dentro em pouco a Lua não terá mais segredos para o homem. Vai ser livro aberto, sem mistérios. Mas, vista da Terra, a Lua será sempre a mesma namorada dos poetas de todos os tempos. Saudemos os cientistas que a conquistaram. Saudemos os heróis que voltaram de lá. E saudemos a Lua, que não vai mudar. O luar continua...
Dos milhares de textos que escrevestes, é este um dos últimos, talvez, ao fim da jornada, no vosso ofício de publicitário, em julho de 1969, por ocasião do voo espacial da Apolo XI. Brotado espontaneamente, desferido num jato, como é de vosso feitio. Texto diagramado e imposto pelas dimensões implacáveis da geometria do espaço jornalístico: vinte linhas, 19 batidas. Como jamais utilizáveis a máquina de escrever, e tudo teve e tem de sair na primeira tentativa, a mão, lápis, ou bic, as batidas estavam e estão gravadas no computador da vossa memória, que, em mais de cinquenta anos de tarimba profissional, não apresentou, graças a Deus, nenhuma avaria ou outro qualquer sinal de desgaste. Essa instantaneidade na redação de um anúncio chegou a ser posta em dúvida pelo diretor de uma agência de publicidade. Era um anúncio de escova de dentes, pronto quinze ou vinte minutos após a encomenda. O texto retornou às mãos do redator, com um bilhete: “Está muito bom, não há dúvida. Mas pode ser melhor. O senhor abusa da sua facilidade. Estude um pouco mais. Pense um pouco mais. Garanto que fará um anúncio ainda melhor.” O diretor era delicado. Dirigia-se ao mais qualificado dos redatores da agência, por todos considerado o “cobra” dentre os mais capazes, medindo as palavras, com respeito e admiração. Lessa não vacilou. Apanhou a lauda datilografada, com as letras encarreiradas nos quadradinhos, espaços, vírgulas, cíceros, tudo certinho, na lauda estereotipada pela técnica publicitária. Releu o texto do princípio ao fim, com redobrada atenção, emplacou mais uma letra, um “esse”, que havia escapado, e pediu à datilógrafa que tornasse a bater, tal qual, sem emendas, mas num papel azul. A moça não entendeu. “Bata esse anúncio naquele papel azul...”. Num átimo, o trabalho estava de novo datilografado, como ele queria. Mais um instante de estupefação da secretária. Depois da releitura do papel azul, sem emendas, o redator disse apenas: “Está ótimo. Deixe-o aí, em cima da mesa.” Era para não entender mesmo. O texto do anúncio ficou assim como que esquecido durante quase três horas. E só ao final do expediente seria levado à diretoria. Aquele mesmo anúncio, é bom repetir, sem nenhuma alteração, apenas o conserto da letra “esse”, falha mecânica que havia passado despercebida. Mas só que o texto estava datilografado em papel azul. Lessa aguardou impassível a reação do chefe. O homem leu pausadamente, uma leitura técnica, profissional, como se apurasse todos os seus conhecimentos, e sorriu vitorioso. “Eu não disse? É outra coisa... Agora, sim, o anúncio está perfeito”.
Ao longo da vossa carreira profissional como publicitário – quase meio século, escrevendo sobre sabonetes, automóveis, geladeiras, seguros e tantos outros produtos e mil invenções da nossa incrível sociedade de consumo, produzistes em linhas e palavras, quantidade e qualidade, uma obra poucas vezes superada, no entanto irresgatável porque esparsa em páginas de jornais e revistas, programas de televisão, trabalho impessoal, anônimo, trabalho de operário que não dá dinheiro nem glória.
Vossa condição de publicitário de prestígio nacional disputado pela fama de eficiência, que cedo soubestes conquistar, atingirá o ponto culminante entre os da vossa classe: padrão da disciplina e do amor ao trabalho, embora nem sempre tivésseis prazer ou entusiasmo pelo que éreis obrigado a fazer, por dever do ofício.
Esta profissão de publicitário, tal como a de comunicador social, para usar a nova terminologia com que passou recentemente a ser rebatizada (ou estigmatizada) a antiga nobre profissão de jornalista, há que ser exercida com dignidade, coragem e probidade, com uma ponta de heroísmo até, sem mentiras e mistificações, desprezando ou tornando desprezível a impostura e a falácia.
É a vossa admirável lição, na dura caminhada. O trato com a publicidade trouxe-vos certamente uma experiência fascinante na utilização da palavra, fundamental em vosso ofício, na versatilidade, plasticidade, agilidade com que aprendestes a manejá-la, até adquirir o virtuosismo na arte de escrever, na carpintaria da composição, sobretudo na concisão, na precisão, na síntese, na elaboração rápida que o trato diário na redação de jornal transmite ao profissional. Artesão consumado da palavra, não faltastes ao compromisso do escritor, fiel à verdade, à vossa verdade.
É o que reconhecem antigos e novos companheiros de ofício, os que formam o Clube de Criação do Rio de Janeiro, na mensagem por ocasião da vossa eleição para a Academia Brasileira de Letras:
Um imortal, Orígenes, você sabe muito bem, não tem nenhum problema com as palavras.
Mas a nós, simples mortais do Clube de Criação do Rio de Janeiro, as palavras escapam.
Principalmente nessa hora em que estamos ao mesmo tempo orgulhosos e emocionados com a sua vitória na Academia Brasileira de Letras.
Fica, aqui, portanto, a nossa homenagem ao homem de criação, ao escritor, ao imortal Orígenes Lessa.
Orígenes, nós, simples mortais, só queríamos dizer que estamos muito orgulhosos.
Um dos vossos pequeninos leitores foi mais pragmático, sem dúvida menos retórico. Trata-se de um menino de Itabira do Mato Dentro, terra do grande poeta Carlos Drummond de Andrade. Chama-se Hélio Afonso de Sousa Júnior e pertence ao Clube Duas Rodas, que tem por finalidade a difusão do ciclismo no seu Município. Foi dos que vibraram com a eleição da Academia e, com a autoridade de quem havia conquistado, pela segunda vez, o primeiro lugar no concurso de Literatura da FIDE, acabou por convidar o seu colega acadêmico para aceitar o posto de sócio honorário do Clube Duas Rodas, pedindo-lhe dois retratos 3 x 4, para ser feita a carteirinha e a ficha de inscrição.
Dos vossos leitores infantis, tendes muitas histórias para contar. A mais interessante talvez seja a da menina de 9 anos do Colégio Santo Antônio, Maria Zaccaria, que vos mandou entusiástica mensagem, a propósito de Memórias de um Cabo de Vassoura: “Muito obrigada. Foi o melhor livro que li na minha vida.” Ao conhecê-la, em visita ao colégio, indagastes com uma simplicidade quase ingênua: “Você leu? Gostou mesmo?” Com a carinha linda, repetiu o que havia escrito. Daí a pergunta: “Que outro livro você já leu?” E ela, com a carinha ainda mais linda: “Bem... por enquanto só esse...”.
Depois de duas experiências, ainda nos primeiros anos da vossa atividade como escritor, só muito mais tarde é que descobristes o filão da Literatura Infantil. Deu certo, pois a vossa teoria neste campo se reduzia a um teorema facilmente demonstrável: livro de criança que não interessa aos adultos não interessa também ao pequeno leitor. Fazeis um teste preliminar com a vossa mulher Maria Eduarda, colaboradora e leitora obrigatória. Em seguida, a leitora ou ouvinte é a neta Juliana, mais ouvinte que leitora, desde que passou a viver na Inglaterra. Ouve agora as histórias do avô através da tradução oral feita pelo pai, Ivan Lessa, que, na intimidade, sobretudo diante da filha, derrama-se em doçura e mansidão, o avesso do ácido panfletário de O Pasquim.
O livro infantil – dissestes, em entrevista a Edla van Steen – deve deixar a criança no à vontade da não interferência e do não temor dos mais velhos. Nem máscaras, nem pose, nem dedo apontado. Não o “não faça”. E muito menos o “faça”. Se ela tem que aprender (e precisa), faça com que ela aprenda como quem conclui ou descobre por si mesmo. As lições da vida e das histórias (ou estórias, parece que não há mais jeito...) devem ser aprendidas por quem vive (sem ouvir o “eu não tinha dito?”) e por quem lê sem que se perceba ter sido aquela intenção ostensiva ou disfarçada do autor. O autor (penso eu, sei lá!) tem que se sentir criança como os leitores que procura. Pertencer, quanto possível, ao seu mundo. E nunca, de maneira nenhuma, tratá-los “como se fossem crianças”. Elas não o são: pertencem a um mundo maravilhoso e transitório, muito superior ao dos mais velhos, que no fundo são uns chatos.
Por isso mesmo, um dos vossos pequenos leitores disse-vos uma vez à queima-roupa, num dos elogios mais sinceros que poderia enaltecer um escritor de livros infantis: “apesar da idade, você escreve muito bem.” Creio que a penetração dos livros de Lobato junto ao público infantil, que logo se identificou com Narizinho, Pedrinho, Dona Benta e Emília, acabou levando o grande escritor a abandonar a Literatura para adultos e dedicar-se quase que exclusivamente ao mundo das crianças. Daí o papel de sociólogos e cientistas sociais que passaram a exercer o marquês de Rabicó e o Visconde de Sabugosa na conscientização de toda uma juventude – num País onde a população é predominantemente de gente moça. Crianças e adolescentes compreenderam, mais depressa que os políticos e os bem pensantes, os enigmas do pauperismo e da incapacidade da utilização das nossas fontes energéticas, através da análise e interpretação lúdicas de Lobato. O próprio Lobato, na trilha de Euclides da Cunha, Alberto Torres e tantos outros patriotas, tentara em vão mobilizar o País para a solução de alguns desses problemas fundamentais, quando escrevia só para gente grande. Como autor de histórias infantis, chegou a ser apontado como subversivo, tal o poder de comunicação junto ao público jovem, com o seu O Poço do Visconde, além de muitas outras páginas em que ensaiou um processo de desmistificação da nossa História e retratou sem retoques a realidade social.
Seguis a mesma trilha, Sr. Orígenes Lessa, sem pretender o lugar deixado por Monteiro Lobato. Vossa mensagem é bem diferente. Sem agressividade, espírito polêmico ou depreciativo. Está impregnada de confiança no futuro. E toda de solidariedade humana e de esperança, na luta contra a miséria e a ignorância, pela melhoria das condições de vida, saúde e educação de toda uma legião de meninos abandonados, de meninos pobres, carentes de hospitais e de escolas. Esses meninos montados em cabos de vassoura é que hão de construir o futuro deste País. Com mais de vinte livros, em edições sempre renovadas, com um público cada vez mais numeroso, numa faixa etária entre os nove e os quinze anos, a vossa receita pegou. Assim tem sido, desde Aventuras e Desventuras de um Cavalo de Pau até o mais recente A Greve das Bolas.
A vossa obra ficcional começou com O Escritor Proibido (1928), livro considerado à época pela crítica (João Ribeiro, Medeiros e Albuquerque, Múcio Leão, Sud Menucci) como obra de humorista. São quadros da vida urbana de São Paulo, que se transformava de repente em metrópole cosmopolita, a Cidade que mais cresce no Brasil, o maior centro industrial da América Latina, slogans que acompanharam o desenvolvimento da que em poucos anos seria a maior cidade do País. De certo modo, o escritor se identificou com esse clima da burguesia paulista em ascensão, chegando mesmo a participar da Revolução Constitucionalista de 1932, exaltação do regionalismo paulista, sublimado, após a derrota, no sentimento da integração nacional, que foi sempre a vocação do povo paulista, desde a epopeia do Bandeirismo.
O melhor da vossa obra de contista está reunido em Histórias Urbanas (1963), selecionadas por Ricardo Ramos, autor do prefácio que é uma das mais lúcidas sínteses do significado da vossa presença como autor de vanguarda desse gênero literário, numa posição singular, e talvez única, em Língua Portuguesa. A vossa obra literária se reveste quase sempre de surpresas, quer na busca de novas concepções, incursões nos domínios do suprarreal, como em A Desintegração da Morte, do subconsciente, de tipo da aventura póstuma de João Simões Continua, mas onde o discurso não se altera, para que não haja qualquer interrupção entre o escritor e o seu público, pois na verdade quereis ser lido e entendido por todo o mundo, sem sofisticações de linguagem, sem hermetismos ou complicadas parábolas indecifráveis. Fiel a vós mesmo, fiel também ao vosso público. Em suma, sois um escritor popular, no mais autêntico sentido da palavra.
Paulista de Lençóis, boca do sertão, filho de um pastor protestante pernambucano, que havia completado a sua formação intelectual e teológica na área fluminense e depois em São Paulo, e de mãe paulistana, de ascendência mineira, toda a vossa vida está como que marcada por uma predestinação nacional. Sois, sem dúvida, um escritor que se poderia chamar de pan-nacional, pela trajetória da vossa experiência intensamente vivida desde a infância, em vários Estados, não apenas em cidades do interior, mas em viagens sucessivas ao Nordeste, nas pesquisas da Literatura de Cordel, em excursões aos aldeamentos indígenas, na vossa constante preocupação de conhecer e interpretar os sentimentos e os problemas das nossas populações, dos grandes centros metropolitanos aos humildes aglomerados. Da poesia popular, que analisastes em ensaios magistrais, como Getúlio Vargas na Literatura de Cordel, e dos flagrantes de Oásis na Mata, a propósito dos índios caiuás, nos confins de Mato Grosso, “vivendo e morrendo de braços cruzados no maior desamparo, sem qualquer estímulo, sem qualquer apoio”, o apelo do escritor é sempre no sentido da sobrevivência da gente humilde do interior, caboclos, índios e negros.
Nessa encruzilhada, vosso espírito de bandeirante se une na mesma ansiedade ao de um outro desbravador de caminhos, Noel Nutels. Em vosso livro, O Índio Cor-de-Rosa, descrevestes o retrato de corpo inteiro, corpo e alma de outro extraordinário pan brasileiro, nascido em Odessa, na Rússia, cedo aclimado em Alagoas, estudante no Recife, apaixonado pelo frevo e pelo carnaval, e que seria, afinal, o criador do serviço de assistência médica às populações indígenas, através dos aviões que transformou em hospitais. A biografia que escrevestes, pensando, sobretudo nos leitores jovens, Sr. Orígenes Lessa, dá bem as dimensões humanas de Noel Nutels e faz justiça ao esforço gigantesco do Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas, SUSA, por ele impulsionado com o apoio de Maurício de Medeiros, figura apostolar de médico e escritor, que tanto honrou a nossa Academia, ao tempo ministro da Saúde, no governo sempre lembrado do Presidente Juscelino Kubitschek. A predestinação do bandeirismo, que começa na casa de madeira da zona pioneira de Lençóis Paulista, continua com a vossa infância, vivida em São Luís do Maranhão, tradição e lirismo, dos três aos nove anos de idade.
Acompanhastes o vosso pai nas peregrinações evangélicas por todo o Estado, em contato com as populações pobres, campos, rios e bichos. Da vossa infância maranhense, deixastes um livro, já em quarta edição, que deve ser lido por todos quantos desejarem conhecer e impregnar-se do que é e de que vale ser brasileiro, Rua do Sol. Não só pela morte da vossa mãe, que perdestes aos sete anos, esse livro é uma lição de Poesia e humildade, com algumas das melhores páginas do gênio criador do autor, como o caso de Raimundinho, o filho do morfético, que surpreendestes numa das visitas pastorais paternas, em povoado distante, numa casa de palha, isolada de tudo e de todos.
Teria oito anos. Claro, os traços delicados, os bracinhos leves, um olhar de doçura, de inveja e de medo nos meninos sadios.
– Sai, lazarento!
Ele já estava à distância. Olhava apenas. Assistia a vida dos outros.
– Sai daí, filho de lazarento!
Ele se afastava humildemente como cão enxotado, ficava mais distante ainda, contemplando em silêncio. Sentava-se às vezes no chão, ficava juntando terra com as mãos, que depois deixava escorrer, fininha, por entre os dedos, formando montículos que depois afilava em cone, com pequenos cuidados.
– Tá sujando a terra, desgraçado?
Ele se erguia, trêmulo, corria, parava um pouco mais longe. Os outros brincavam. Mas não se ia embora. Às vezes, muito raramente, faltava alguém para completar o brinquedo e ele era afinal convidado.
– Vem brincar, Raimundinho. Mas não encosta na gente!
Do Maranhão, voltastes a São Paulo, não para a vossa pequena e querida Lençóis, e sim para a capital, onde ingressastes como aluno do Colégio Evangélico, de que o vosso pai era vice-diretor. A fase da adolescência é de leitura tumultuada, de dúvida religiosa, que vai explodir na revolta contra a perspectiva de ver-se doutor em Teologia, honrando o nome que havíeis recebido de um dos primeiros filósofos e doutrinadores da Igreja. Vossas leituras de insubmisso se concentraram então em Platão, Voltaire, Leopardi, Shakespeare. Pelos dezesseis anos, descobristes numa livraria as brochuras do anarquismo, que vinham de Portugal, da Espanha e da Itália, nos navios de imigrantes, toda uma onda libertária dos anos heroicos do movimento proletário, engrossada no fim da Primeira Guerra Mundial e que havia conquistado a juventude inquieta e desiludida, com o fracasso da campanha civilista, descrente das eleições a bico de pena e das ligas que se organizavam pelos aliados ou pelo serviço militar obrigatório.
Aos vinte anos, o retorno à religiosidade, que vos dava a ilusão de cumprirdes o destino paterno. Era o sonho de vosso pai, desde a morte do primogênito, Jonadabe, ainda infante. Mas, ao cabo de dois anos, abandonastes o seminário e viestes para o Rio de Janeiro. São quatro anos de frustrações como jornalista, aluno da Escola Dramática, entremeados de momentos difíceis, quando passastes necessidades materiais e chegastes a dormir ao relento algumas vezes no Passeio Público.
Só em 1928 retornastes a São Paulo, trabalhando como tradutor de Inglês numa firma comercial. Em 1931, é que escolhestes a propaganda como profissão, entre o Jornalismo e a Literatura. Vossas leituras se voltaram então para Pirandello, Chesterton e os romancistas russos, Gorki, Tchecov, Andreiev. Na vossa bibliografia, sobressai a tradução de Os Sete Enforcados, de Andreiev, uma das chaves talvez das grandes influências assimiladas: o trágico e o grotesco, o lírico e a fantasia, combinados quase sempre com obsessiva procura, através de episódios e personagens, numa temática que é sempre a da solidariedade humana, conforme assinalou Gilberto Mendonça Teles, no ensaio da Seleta, publicada pela Livraria José Olympio Editora, da Coleção Brasil Moço, Literatura Viva Comentada, sob a direção de Paulo Rónai.
Gilberto Mendonça Teles estabeleceu com precisão as coordenadas da vossa antítese criadora, em ensaio de tanta agudeza e compreensão, mostrando as características da obra vasta e multiforme do contista, do romancista, do autor de histórias infantis. Todo esse universo tem por base princípios aparentemente antagônicos: a solidão e a solidariedade. Firma-se, no entanto, nesse dualismo paradoxal uma construção sólida e estruturada com o vigor de uma coerência indestrutível, sob a forma de signos, o significante e o significado, faces opostas, no entanto vinculadas e inseparáveis da mesma realidade ficcional.
Diz Gilberto:
É que Orígenes Lessa, voltando-se para si mesmo, não se torna um alienado, no mais amplo sentido que se costuma dar atualmente a esta palavra. Pelo contrário, é na sua solidão – o que significa: na origem da sua linguagem criadora – que o escritor combina as suas experiências com a vida, com os homens, com os animais e com o mundo, fazendo emergir da solidão a sua constante solidariedade para com os seres indefesos e infelizes em que se reflete a sua própria solidão: a solidão que o acompanha desde menino, quando sentiu a morte da mãe, quando se tornou amigo de Raimundinho (o filho do morfético), quando se esquivava do companheiro de escola, por se sentir pobre, mal vestido e doente. Assim, essas duas atitudes vivenciais – sístole e diástole do seu processo criador – apenas na aparência parecem contraditórias: elas se identificam no espírito do escritor, tanto que se prolongam sobre a obra, constituindo os pólos em torno dos quais se movem: de um lado, os aspectos de uma temática ideologicamente humana – solidária; e de outro, as estruturas de sua linguagem – solitária na sua essência, mas transparente na sua solidariedade. Os temas (do passado, do presente e/ou do futuro) recebem o tratamento que os vincula a um ideal de relações humanas: mas só os princípios solitários (psicológicos, estilísticos) da criação conseguem convertê-los na realidade concreta da linguagem literária. Daí porque – acentua Gilberto Mendonça Teles – em Orígenes Lessa a solidariedade é uma condição de ser recluso, não precisamente fechado sobre si mesmo, mas fechado sobre a imagem do mundo reduzida e convertida em matéria da solidão criadora.
Embora desligado de grupos e correntes literárias, indiferente às promoções em torno de si mesmo, surgistes como escritor depois da Semana de Arte Moderna. De qualquer modo, não escapastes à lufada renovadora, no despojamento da linguagem, simples e direta, que se foi no entanto aperfeiçoando no lento e difícil trabalho de escrever. Ninguém melhor do que mestre Manoel Cavalcanti Proença, que tinha olhos de penetrar o fundo da criação literária, pôde acompanhar essa evolução. O grande e inolvidável crítico dos Estudos Literários deu-nos a melhor lição sobre o vosso estilo.
De fato – passo a palavra a mestre Proença – Orígenes Lessa não é escritor à croire que l’art ne respire qu’en sa plus nouvelle apparence. Citação de Gide que nos vem a propósito da formação francesa do contista, com seus momentos voltairianos, capaz de apresentar essa difícil aparente facilidade em tudo o que escreve. Enganadora facilidade, ilusão de leitor que, por ler sem cansaço e sem esforço, imagine que o livro não deu trabalho para escrever.
Proença continua:
Entretanto, lendo-o com olhos mais atentos, sente-se em Orígenes Lessa a permanente aplicação, o trabalho constante de artesanato, de vigilância e autocrítica, o que é traço de modéstia em autor consagrado, pois, voltando a Gide, a falta de aplicação est due plus fréquemment encore à une suffisance excessive.
Conclui o mestre: “O que, desde logo, nele chama a atenção é a espontaneidade que consegue dar às frases curtas e ao diálogo, o desenho de um pormenor posto no lugar justo, para efeito de verossimilhança.”
De Proença, vou aos evangelistas, sem a pretensão de completar a exegese. A Bíblia é vossa leitura permanente e indispensável, desde a infância no Maranhão, ensinada e vivida pelo ministério paterno. Não há versículo neste livro eterno que não seja modelo de concisão. Está tudo escrito numa admirável precisão e economia de palavras. Vosso O Evangelho de Lázaro coincide com o vosso reencontro, no entardecer de uma existência trabalhosa e sofrida, com a religião protestante, de que vosso pai foi pastor exemplar e admirável historiador do culto no Brasil, em alentado volume de 711 páginas, os Anais da 1.ª Igreja Presbiteriana de São Paulo.
De Vicente Themudo Lessa, além da bondade e da inteligência, recebestes a vocação de escritor. Vosso pai é o autor de uma série de obras de grande interesse, como as biografias de Calvino (1509-1564), sua Vida e sua Obra, Luthere e Maurício de Nassau, o Brasileiro, além dos estudos históricos de Episódios e Perfis. Foi um grande homem Vicente Themudo Lessa, discípulo e companheiro de Eduardo Carlos Pereira, de uma geração de eruditos protestantes de primeira ordem, a começar pelo próprio Eduardo Carlos Pereira, Othoniel Mota, Erasmo Braga, Ernesto de Oliveira, Alfredo Teixeira e Albertino Pinheiro. O pai está sempre presente na vida e na obra do filho ilustre, hoje acadêmico, com o mesmo espírito de tolerância, modéstia e humildade revivido de forma imorredoura no conto “Viúvas, Enfermos e encarcerados”, sem dúvida uma das vossas páginas mais inspiradas.
Vicente Themudo Lessa foi um bom e um justo. Em toda a vida, sem mágoas, nem ressentimentos, soube sempre repartir o pouco que recebia, como se estivesse desfrutando a bem-aventurança e a fortuna dos privilegiados.
No dia do aniversário dos filhos, ensinou-lhes que o melhor presente era a maçã que dividia em fatias iguais – o pedaço do aniversariante, um pouquinho maior – para que todos pudessem compartilhar da mesma alegria. É o quinhão dos puros e limpos de coração.
Para Lençóis Paulista, onde iniciou Vicente Themudo Lessa o seu ministério de pastor evangélico, pequenina povoação da boca do sertão, zona de pioneiros, que se agigantou em grande centro de produção canavieira, volta-se nesta noite o pensamento do filho amoroso do seu torrão natal e da sua Biblioteca Municipal, talvez a obra de que mais se orgulha Orígenes Lessa. Não foi dele a iniciativa, faz sempre questão de acentuar. A Biblioteca Municipal de Lençóis Paulista foi idealizada por um funcionário do Instituto do Açúcar e do Álcool, já falecido, um nordestino, de nome difícil, de alma simples e coração grande, Zanderlite Duclerc Verçosa que, além da biblioteca, deixou na cidade um jornal e uma estação de rádio. Mas a biblioteca tornou-se um centro de irradiação cultural de toda a região graças à devoção de Orígenes Lessa. Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava, Jorge Amado, Menotti del Picchia, peças teatrais de Guilherme Figueiredo e Pedro Bloch. Muitos deles, e mais Paulo Rónai, Mário da Silva Brito, Procópio Ferreira, formam entre os beneméritos da Biblioteca Municipal de Lençóis Paulista.
Sr. Orígenes Lessa,
sim, esta é a vossa colheita. Os que têm o privilégio de privar da vossa companhia – os companheiros da Academia, Menotti del Picchia e Genolino Amado, há mais de cinquenta anos; Jorge Amado e Raimundo Magalhães Júnior, há mais de quarenta; eu mesmo, em anos de que já perdi a conta – todos sabemos de vossa natureza introvertida, mas amável e generosa, envolta numa timidez, quase que diria humildade, incorporada à vossa maneira de ser, num misto de caipira desconfiado, meio sem jeito ou absolutamente sem jeito, um riso amarelo que se abre em flor nos momentos de expansão, vencida a barreira da autodefesa de quem parece estar sempre a indagar: Posso falar? Posso entrar? Posso...? Como vos devem estar pesando sobre os ombros, querido Orígenes Lessa, as galas e os bordados do nosso pomposo e aurifulgente fardão acadêmico! E como estareis, no instante da vossa investidura na Casa de Machado de Assis, aflito e desamparado, pássaro encolhido, durante toda a sessão, do princípio ao fim do interminável cerimonial, enfarpelado e assustado, ao espocar dos flashes fotográficos, ao embalo do colar com a inscrição Ad Immortalitatem, nas plumas do chapéu de dois bicos, com fita verde e amarela, que ninguém tem coragem de colocar à cabeça, e, sobretudo, no espadim à cinta, este artefato que conduzis contrafeito. E dos mais extravagantes adornos do uniforme acadêmico, mas o vosso antecessor, Osvaldo Orico, dele muito se vangloriava. Garantia haver pertencido nada mais nada menos que a Edmond Rostand, afirmando-o em tom peremptório, próprio à sua condição de anjo do Exército do Pará, segundo a gnomonia de Jayme Ovalle, aperfeiçoada por Manuel Bandeira.
Pois entrai na vossa casa, Sr. Orígenes Lessa. Tomai assento na vossa Cadeira e nela deixai-vos ficar por muitos e muitos anos. É vossa a Cadeira 10, inaugurada por Rui Barbosa, iluminada pelo liberalismo de Evaristo da Veiga. Esse incômodo e quase escandaloso fardão é só para os dias de gala. Às quintas-feiras, dias das nossas tertúlias semanais, as reuniões são informais e até divertidas. São como os bate-papos das rodas literárias, das redações dos velhos bons tempos, das mesas de café que já desapareceram. O outro lado da Academia, a obra que vem sendo construída há quase um século, na preparação dos dicionários e dos vocabulários, no estudo dos clássicos e dos contemporâneos, na permanente vigília da Língua Portuguesa, na defesa da unidade e grandeza da Literatura, da liberdade de expressão do pensamento, da dignidade da profissão de escritor, tudo isso se pratica sem alarde, como é do vosso gosto, Sr. Orígenes Lessa, no silêncio dos gabinetes, à sombra das bibliotecas, sem ouropéis e lantejoulas, quando nos despimos dos aparatos e dos ônus da fugaz e fantasiosa imortalidade.
20/11/1981