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Uma perversa reforma eleitoral

 

A reforma política vem aí no arrasto da dita modernização, ou seja, do que é já possível mudar num consenso adiposo contra as práticas passadas, enfim, ao arcaico, e unanimemente.

Mas não se trata do avanço da consciência coletiva, que o peso de uma vitória como a do PT acarretaria na aceleração do novo. Não é sem razão que o relator do projeto, sacramentado por gregos e troianos, seja o deputado Ronaldo Caiado, o mesmo do partido dos ruralistas, que hoje enfeitam a vistosa direita do PFL.


É de distintos horizontes que se trata, tanto quanto somem, por encanto, as travas e pretextos da reforma inviável. Deixa de ser cavalo de batalha o voto distrital, reduzido, afinal, às suas verdadeiras proporções, como trunfo para a melhoria da representação.


As novas questões-chave, e olhadas de corpo inteiro, são a do financiamento público das campanhas e a das listas fechadas, para o voto popular, comandadas pelas lideranças partidárias, na ordem em que se tornem eleitos, segundo a preferência dos caciques, e não da força nas urnas. Diante das novas propostas, o projeto de reforma exaspera as penas e os crimes eleitorais, sabendo contra que maré avançarão os próximos pleitos. Só que tanta sanção se desmoraliza, de saída, no preceito que não prospera e em mais uma coroa fúnebre, da lei que não pega, e ferindo mais fundo agora a cultura cívica do país, acicatada pela vitória petista.


Criaremos o fundo público das campanhas, controlado pelos partidos, a dispor dos cerca de 800 milhões de reais que, postos em miúdos, resultarão da cobrança de sete reais de cada eleitor. Quer-se pela novidade pôr-se o pleito ao abrigo dos lobbies, dos dinheiros a mão-cheia, vindos de dotações, patrocínios, benesses, que permitem às forças econômicas ter o seu deputado, à prova de qualquer susto na boca do sufrágio.


Dará certo a medida ou já vem, diminuta, para enfrentar os capitais que rolam nessas disputas? Está em 10 bilhões a massa de recursos carreada pelos financiadores aos seus inevitáveis cabeças de chapa. É dez vezes mais que o montante dos dinheiros previstos pelas campanhas acima de qualquer suspeita, na boa utopia do Congresso e numa diferença brutal e constrangedora.


Surge o fundo sem condições objetivas de pôr fim ao que combate, e que continuará, em todo o enorme repertório da criatividade posta à serviço da fraude à lei. E diante dos primeiros resmungos na cobrança dessa taxa eleitoral, como pensar, ainda, em ampliar o fisco do contribuinte para o combate contra a corrupção política, na sua nascente, diante do Fome Zero, as despesas contra as inundações e calamidades públicas ou a luta contra a violência urbana endêmica?


Mais grave, entretanto, é a ambigüidade que porta o projeto quanto à idéia da lista fechada dos candidatos. Caberá agora ao eleitor tão só votar num partido. E por aí disputar o número de candidatos que trará ao Congresso. Mas a ordem de quem entra, ou fica na barreira da suplência, dita-a a relação prévia e determinada estritamente pelas direções das legendas.


Não importa a massa ou o portento das cédulas apuradas em benefício de um nome.


Tal em nada lhe tirará do degrau em que os paredros o colocaram, no céu ou ao inferno, resultante do pleito. A proposta responde ao intento não só de dar o partido o controle da representação, mas o faz sobre o pretexto de uma escolha conscienciosa dos melhores, que não são necessariamente os mais votados. Mas quem aí se classifica? Os do currículo a toda prova, os de melhor trânsito entre os cartolas, os mais simpáticos, como nomes da casa? Volta-se, mais uma vez, ao debate do que seja o apuro da democracia, entre a qualidade intrínseca dos candidatos previamente estimada, ou da sua eficácia política no poder de congregar e, de fato, identificar-se civicamente ao seu eleitorado.


Institui-se nova regra discriminatória ostensiva no recrutar-se um Legislativo. E essa decisão, na melhor das hipóteses, não dependerá dos paredros da legenda, mas da força que passam a ter as convenções. E nelas, de novo e em cenário reduzido, de todo o peso dos lobbies, dos estardalhaços e da corrupção, denunciada nos pleitos de todo o sempre.


Nessas listas fechadas, como respeitar as minorias e as diferenças? Como garantir a boa surpresa de candidaturas anônimas e reveladas pelo amadurecimento da comunidade, e sem vez com os donos prévios do pedaço?


Juntando o ruim ao pior, a proposta de organização dessas listas torna nítido o propósito de cristalização do status quo, por sobre uma representação para a mudança. Os atuais deputados terão preferência absoluta nessas listas, seguidos dos que trocarem de legenda durante o mandato.


O que sobra de abertura enfrenta essa verdadeira cláusula pétrea, que sufoca vozes para novos tempos e novas demandas. E nem se espere respiro do fundo eleitoral, para dar meios e fundos aos candidatos já engessados no plantel de escolhas. Só 1% desses dinheiros vão, indiscriminadamente, a todas as legendas, estejam ou não no Congresso, nesse alento, de saída, microscópico aberto às legendas nanicas. Oitenta e cinco por cento correm aos partidos no percento exatamente da sua atual representação e aquinhoados com a promessa de seu eterno retorno.


Darão, pois, as legendas o dinheiro aos membros da lista que montam como quiserem, na proporção de como já se sentam nas poltronas das Assembléias. E como esquecer na idéia da renovação do Legislativo o apoio às ONGs, onde brota essa verdadeira militância em todos esses movimentos pela transparência cidadã? Mantém-se, ou não, num país da mudança, o monopólio dos partidos sobre a vontade popular, que brota no seio da sociedade civil antes de se enrijecer no exercício da representação. O apoio dado de partida pelo PT e coligados, à atual reforma política, não pode consagrar focos de regressão ou de obsolescência escondidos sobre o dito e decantado consenso de melhoria. O entusiasmo das novas frentes amplas que deram ao governo maiorias inauditas se arrisca a que o olhar à frente acabe no retrovisor histórico.


No nervo da mudança, o álibi do alegre comadrismo das unanimidades pode calafetar a transformação social e a vontade do novo, no ''tudo bem'' dos carpetes de Brasília.


 


Jornal do Brasil (RJ) 8/3/2004