À Força de serem repetidas caíram em desuso as confissões de humildade nas cerimônias desta natureza.
O menos que vossa tolerância surpreenderia em tal faceirice fora a contradição entre a conduta do postulante e o papel do agraciado: aquele, submisso ao vosso julgamento e possuído de seu mérito; este, desconfiado de vossa justiça e despojado das virtudes em que foi o primeiro em acreditar.
Ao proferir seu agradecimento na Academia Francesa, já Henri Poincaré quebrara de certo modo semelhantes praxes, segundo as quais todo aquele que chega finge estranhar a honra solicitada, esmerando-se em explicar desconcertantemente até que ponto os confrades se enganaram na escolha.
Também Jean Aicard, tomando posse da Cadeira de François Coppée, evitou cair no paradoxo, escusando-se delicadamente de censurar aos que o elegeram. E contra o argumento de que, se o direito do candidato é o de não ser modesto, seu dever é o de tornar-se logo que se veja bem-sucedido, entendia não ser este o melhor instante de provar-se ingratidão, retribuindo-se a extrema benevolência com a extrema descortesia: Ce n’est pas à l’heure où, en m’accueillant comme l’un des vôtres, vous me prouvez la plus extrême bienveillance, que je me permettrai de vous la reprocher comme une injustice.
Não é uma coisa verdadeiramente estranha – interrogava Brunetière, na recepção de Paul Hervieu – “que nenhum de nós, tomando lugar nesta Companhia, seja fiel e agradecido aos sufrágios que o chamaram? Dizemos todos, ou quase todos: não foi a mim que elegestes, foi ao filho de meu pai; ao discípulo de meu mestre; ao amigo de meu amigo; e, pois que o dizemos, seguramente: assim o pensamos”.
Pensamos, dizemos; mas sempre com as cautelas que os farmacêuticos escrevem em certos vidros delicados: para uso externo.
No fundo, todos nos orgulhamos e estimamos, concordando com o nosso Matias Aires em que, se há uma vaidade sem fortuna, não há fortuna sem vaidade...
Não pleitearia, pois, ser o primeiro; nem confiaria que fosse o último em atirar-vos pedras pela mercê com que me cumulastes. É que tenho em máxima conta as palavras com que Santo Antônio se refere às três vozes que encontramos no caminho. Três vozes distintas e uma só verdadeira: guarda-te, homem, do castigo de não seres agradecido.
Os dois climas da vida
Honrastes, na minha mocidade, a preferência daquele a quem fui chamado a substituir.
Laudelino Freire, o último ocupante da Cadeira 10, que Rui Barbosa fundou sob a invocação do nome de Evaristo da Veiga, e a que ligou seu nome e seu gênio, foi um laborioso servidor das letras, que versou com elegância e sobriedade, e por amor das quais sacrificou outros quinhões do destino, talvez mais vantajosos e compensadores.
Discutido, negado, e principalmente incompreendido, era um espírito generoso, suscetível de comprometer-se nas aparências de seu feitio, ou melhor, do feitio dos lidadores da gramática e policiais dos textos, mas dotado de perfeito cavalheirismo, que lhe temperava os assomos com a fidalguia de um mestre de bom-tom.
Conhecedor dos segredos do idioma; conhecia também os arcanos daquela arte inconfundível – a polidez –, a respeito da qual só não escreveu um tratado, porque a sua galanteria, adivinhando o futuro, quis ceder a autoria de tal obra a quem possuísse o droit de naissance: o Duque de Lévis Mirepoix e o Conde Félix de Vogüé.
Dessa generosidade é que me benefício nesta hora, invocando para juntar aos títulos de minha ambição literária o seu ponto de vista a favor da presença dos elementos jovens nesta Casa. Olhado com desconfiança e até má vontade pelos rapazes que chegavam para a vida das letras, Laudelino Freire orientava-se, em matéria de escolhas acadêmicas, segundo o conceito de um dos mestres desta Fundação: “Há dois climas na vida, o passado e o futuro. A Academia, como o nobre romano, tem a sua vila dividida em casa de verão e em casa de inverno. Podeis habitar uma ou outra, conforme o vento soprar.”
Divulgou Anatole France o gosto esquisito dos habitantes de certa ilha do Pacífico, os quais costumavam comer os velhos da tribo. Nós abrandamos esse canibalismo, acrescenta Afrânio Peixoto: “Fazemos deles acadêmicos.” É um modo de premiar o tempo e, sobretudo, “defender a instituição de outro canibalismo – o das novas gerações”.
Desse juízo não participava, entretanto, o escritor a quem me cabe a honra de suceder. Laudelino Freire foi aqui um amigo dos moços, ardoroso defensor da mocidade, pela qual sempre se bateu, procurando conciliar a seu modo a sabedoria da madureza com o entusiasmo da juventude, conforme o desejava o senso da experiência antiga: “Dos jovens, as lanças; dos velhos, os conselhos.”
No belo discurso com que entoou alvíssaras à entrada de Ribeiro Couto, afirmava num galante epinício ao poeta que aqui chegou, como Lucano, coroado por trinta e poucas primaveras: “Só a mocidade resistirá ao trágico desencadeamento de coisas cruéis que o destino regula. Assim plantado à nossa porta, tão medonho fantasma, com o desígnio implacável de uma escala à vista, para espaçar a dor, adiando o luto, não há senão que buscar a vida onde ela, sorrindo em flor, é menos fugitiva, duvidosa e instável, opondo-se contra a fúria de Átropos, a mocidade, que é saúde, resistência, esperança e força.”
A luta dos valores e das formas da vida deu a Hegel a ilusão de que a História se movimentava em contrastes lógicos. Desse engano veio desmontar-nos o conceito de Eduardo Spranger, para o qual todo o passo da juventude representa, necessariamente, uma nova diferenciação de cultura. É implícita a separação entre a idade que amadurece e a que apenas frutifica. Alcançado, porém, o seu “clímax”, há de trabalhar também essa juventude na síntese perfeita, que é o limite e o ideal de todos nós.
Só assim – pensa ele – entrará o novo para o patrimônio da criação humana, seguindo uma tendência que se desenvolve “em espiral”, como se a vida do espírito sempre girasse na mesma direção anterior, conservando, porém, a sua fase distinta.
Já vai longe o tempo em que os inimigos da Academia, os que dela diziam mal, andavam na casa dos vinte anos; o tempo em que, na expressão de um de vossos confrades, os inimigos de vinte anos eram, aos trinta, candidatos e, aos quarenta, acadêmicos.
Das três coisas mais detestáveis na França, dizia Maupassant nos seus tempos de mocidade – a Revue des Deux Mondes, as condecorações e a Academia Francesa –, esta é a pior. Tal declaração não impediu que ele viesse a colaborar na revista e acabasse candidato à Academia.
Hoje, com a subversão das coisas, também o panorama se modificou por estas alturas. Os inimigos, aos vinte anos, falam bem da Academia; aos trinta, não falam nada; e aguardam-se para falar mal aos quarenta, já depois de acadêmicos.
Dessas contradições, porém, é que resulta cada vez mais nítido e forte o prestígio deste Senado. Elas é que geram a inquietação de seu renome, influindo como a lua no exercício das marés. Elas é que limpam as praias de todos os troncos da maledicência. E são elas que jogam às praias os troncos da maledicência e da ironia.
Também quão monótona seria a paisagem deste promontório, se não fora o rumor que provoca lá fora, sobretudo quando as ondas crespas anunciam maresias e... eleições!
Quantos institutos semelhantes, criados pelo Brasil afora, quase desaparecem na placidez de suas reuniões, onde ninguém discute, onde ninguém discorda, onde ninguém pleiteia?!...
O que torna sobremodo interessante a existência das academias é justamente a má fama de que gozam. E que, por isso mesmo, justifica sempre o especial obséquio dos que a cortejam.
Conheceis, decerto, o episódio ocorrido entre Voltaire e um dos membros das muitas academias que se multiplicaram por toda a França, depois que a púrpura de Richelieu dotou os salões de sua herdeira presuntiva. Repousando o espírito às margens do Lago de Genebra, em Ferney, o mais irônico dos sábios, aquele cujo sorriso, como se disse, encheu um século, foi procurado por certo cidadão da campanha, que lhe disse com seriedade:
– Sou também homem de letras. E, até certo ponto, seu confrade, porque pertenço à Academia de Châlons, que é, como o senhor sabe, filha da Academia Francesa.
– Ah! sim – respondeu Voltaire. – É isso mesmo. E tão boa filha, que nunca deu que falar de si.
Vede, pois, que um atestado de boa conduta pode às vezes constituir-se em má recomendação para as instituições que se prezam. Ao contrário de certas damas, cujo interesse para nós diminui na razão direta da reputação que perderam, parece que as academias, quanto mais faladas e malvistas, são mais apetecidas e requestadas. É um paradoxo; mas, sobretudo, uma verdade.
Espírito de renovação
Há uma coisa que não deveis temer, senhores acadêmicos: a mocidade. Se ela é um mal, é, na expressão de Jacques de Lacretelle, um “mal curável”. Quando procura a vossa Companhia, é que acredita, em verdade, naquelas palavras do diálogo entre Milkau e Lentz: “A palavra dos velhos é um mandamento para a vida.”
Inverte-se aqui o precedente bíblico que outrora atordoou os doutores da Sinagoga. A mocidade que passa a viver entre vós vem menos para ensinar do que para aprender, mais para ouvir do que para falar. Só esta razão já será um título à vossa benevolência. Além disso, a sabedoria não está somente em possuir o conhecimento, mas em querer possuí-lo. Doceri velle summa est eruditio. Lembra Machado de Assis que o próprio Napoleão, já em vésperas de sair à conquista do mundo, agradecendo a eleição do Instituto de França, respondia que, antes de ser igual aos colegas, seria por muito tempo seu discípulo.
Penetrada de que o “querer aprender já é saber muito”, vai a Academia abrindo as portas à juventude, renovando os seus valores sociais, sem cuidar das etiquetas literárias que os distinguem, sem indagar os cânones a que se filiam, ou a independência revelada nos seus assomos iniciais.
Cabe-lhe, neste ponto, a glória de haver aplicado ou transposto do mundo físico para o mundo intelectual aquela teoria científica, revelada há muitos anos por um geólogo inglês, Charles Lyell, sob o nome de lei das causas atuais. Procurara ele demonstrar que as mudanças e alterações processadas através das idades na fisionomia da terra, longe de serem ocasionadas por movimentos sísmicos, cataclismos, dobras tectônicas ou outras comoções violentas, tinham sido, pelo contrário, o efeito de causas discretas e insensíveis, que nunca deixaram de produzir-se, embora nunca as tenhamos percebido.
Idênticas revoluções se processam aos vossos olhos, no vosso espírito mesmo, sem que, em verdade, nelas estejais atentando.
O espírito conservador e o espírito moderno, como na descoberta do geólogo inglês, encontraram aqui o chamado terreno de conciliação.
Certo de que é impossível deter o surto da vida e modificar a marcha das horas, “o conservador não se oporá jamais às transformações inevitáveis, receoso de acumular forças destrutivas no ponto em que houvesse colocado o obstáculo. E o revolucionário, por sua vez, renunciará a demover imprudentemente energias que deve sempre respeitar”.
O clima das idéias é o mesmo para todos: não exige lume para os que envelhecem, nem cobre de neve o caminho dos que chegam. A vida de Goethe foi uma primavera após os setenta anos. A de Victor Hugo um roseiral, ainda aos oitenta. Bastaria um nome para coroá-la: Juliette Drouet, o amor de meio século.
Taine amava em Platão a antiguidade, porque a antiguidade era, afinal, a juventude do mundo. E, portanto, a nossa juventude.
Para o Espírito, a mocidade é uma oferenda; a velhice, uma dádiva. Ambas podem ser obra de arte. Mas a perfeição na Arte está justamente em esconder a Arte. Ars est celare artem. E isso é que muitos não querem, ou não podem compreender.
Na ordem intelectual, mocidade e velhice valem como simples pontos de referência. O espírito não envelhece jamais. E, se envelhece, é só para conhecer, através do tempo, aquele refinamento, a graça especial que adquirem os bons vinhos, quando passam os anos. Uma das imagens mais felizes das Pensées Detachées é aquela em que o autor nos garante: La jeunesse, au fond, n’est que la surprise de la vie. O deslumbramento do mundo, o encanto de viver tanto podem estar na aurora de Byron, na adolescência de Shelley, como no sorriso de Voltaire, na malícia de Renan, no esportivo ocaso de Bernard Shaw.
Olhando esse homem de aspecto jovial, que braceja nas piscinas e corre nos skys, não será absurdo admitir que seja a primavera a última estação da vida e o poente o primeiro clarão do dia.
Já Anatole France manifestara certa vez o desejo de tornar-se algum gênio ou demiurgo ou, simplesmente, qualquer demônio construtor, a fim de alterar o ciclo das coisas, invertendo as idades. Houvesse ele criado o homem e a mulher, e decerto os teria feito muito diversos do tipo que prevaleceu. Não descenderíamos em linha reta dos símios, como generalizando excessivamente insinuava Darwin, mas do mundo das lagartas, que, após o ciclo primitivo, logram sair da crisálida e, chegando ao termo da existência, não têm outro cuidado senão o de amar e outro destino senão o de ser belas. A mocidade deveria constituir a última fase da vida. J’aurais mis la jeunesse à la fin de l’existence humaine. Copiaríamos a vocação dos lepidópteros, que, na derradeira transformação do tempo, possuem asas, em vez de estômago, e não renascem como entes alados senão para amar uma hora e depois morrer. Seria o mundo infinitamente melhor na sua marcha dirigida. E o improvisado demiurgo, esmerando-se na transformação imaginada, teria feito que o homem e a mulher, “ostentando as mesmas asas cintilantes, vivessem do orvalho e do desejo e morressem num beijo”.
Infelizmente, senhores acadêmicos, não foi ele quem criou o mundo, nem sequer se viu consultado a respeito.
Viver a mocidade e viver com a mocidade – eis a grande missão dos mestres. Viver a mocidade, para senti-la; e com a mocidade, para prolongá-la. Só assim o firmamento será mais belo. E brilharão todas as estrelas. Indagava de uma feita o Padre Antônio Vieira, por entre as louçanias de seu estilo, que possuíam mais as estrelas da manhã que as da tarde ou as da noite, para fazer Deus mais caso do louvor de umas que das outras? E concluía: “Assim é; porém, as estrelas da manhã têm esta vantagem: que madrugam, antecipam-se e despertam aos outros, que se levantam a servir a Deus. Pois disto é que Deus se honra, e agrada, em presença de Jó.”
A polidez num homem de letras
Por mais refinados que sejam estes cerimoniais, é doloroso ainda o processo de chegar-se à imortalidade. Faz lembrar aquele fruto das matas amazônicas – o caramuri –, tão apetecível e provocante ao paladar dos naturais, pelo sabor que de longe anuncia. Só de quatro em quatro anos enfeita as árvores, sendo raro aparecer em dois anos seguidos. Quis a imaginação dos maués que o aparecimento do pomo representasse o sinal da morte de um tuxaua. E impôs uma única forma de colheita: para alcançar o fruto, derrubar a árvore.
Os que sonham com estas alturas não derrubam a árvore, mas são forçados a esperar que ela caia. Mutatis mutandis, o caramuri é um símbolo da inquietação pela glória literária. Mas – ai de nós! – os que aspiramos a ela mal podemos adivinhar que, em provando o fruto, a polpa recorde sempre o gosto da árvore tombada.
Também o sucessor de Edouard Pailleron, ao sentar-se na Cadeira que pertencera ao amigo, disse comovidamente: “Os homens não saberiam viver se não ignorassem a data da sua morte.” E acrescentou que “seríamos incapazes de mirar-nos nos projetos do futuro, se conhecêssemos a hora em que vai desaparecer o amigo”.
Ligavam-me a Laudelino Freire os vínculos de longa estima, cada vez mais consolidada pelo tempo. A vocação do gentil-homem repontava no cavalheirismo do trato, na elegância das atitudes. A época exata de sua vida deveria ser o século das camisas de folho, dos coletes de cetim macau, enfeitados de lantejoulas, das casacas de veludo, variadas e multicores, com portinholas e canhões dobrados; das gravatas de lenço branco, finamente bordadas; dos largos calções de seda, com fivelas de ouro.
Vendo-o aqui e ali, sempre impecável nas maneiras e nos trajos, lembraria o tipo de Eugène Guillaume, pintado por Freycinet: Courtois, élégant, plein de tact, traversant la vie ainsi qu’il traversait la salle de nos séances.
Esse esmero na indumentária causava-lhe muitas prevenções e antipatias. Parecia excessivo, convencional, como se tivesse o propósito de escrever pela roupa os índices da prosperidade. Admite-se, no Brasil, que um nababo seja escritor; mas nunca que um escritor seja nababo. Vestir com certo gosto ou, mesmo, com decência é, entre nós, passaporte para o descrédito. Os escribas menos arremedados tomam bastante ao pé da letra a frase dos Evangelhos, segundo a qual “é mais fácil passar o camelo por uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus”. Tido e aceito como rico, Laudelino Freire, embora empobrecido por circunstâncias que lhe deram à vida grande dignidade, acarretava os ônus da fama, sem os proveitos. Tinha de pagar imposto à recebedoria da maledicência, tão exigente e inflexível quanto a outra. Não lhe perdoavam os requintes de bom-tom. Por isso mesmo, a sua presença em certos pontos da cidade constituía sempre excelente repasto para os cronistas bisbilhoteiros. Até os que lhe não eram hostis gostavam de seteá-lo, aproveitando-lhe os rigores da moda para certas alusões impertinentes. Implicavam com os seus coletes, achando neles semelhança com os arco-íris ou com as portas pintadas dos tintureiros. Não aceitavam bem seus jaquetões debruados, que faziam pensar em missa de sétimo dia. Franziam o nariz aos ternos muito claros, que pareciam haver caído em tigela de café com leite. E escandalizavam-se com as suas calças de riscas, da mais pura casimira inglesa, achando que não eram tecidas e sim... riscadas a giz.
Laudelino Freire, com fleuma britânica, entendia como Disraeli, nos tempos de dândi, que era necessário educar a vista pelo hábito, e que, para uma sociedade botocuda, mal vestida e arrepiada, ainda o melhor mestre é o alfaiate. E continuou, até ao fim da vida, a vestir-se pelo mais recente figurino, convencido, como o Duque de Morny, de que o trajar com elegância, se não é ainda necessidade, não chega a ser afetação.
Homem de bom gosto, segundo o modelo inglês, não é só o que se veste bem. É, principalmente, o que não se comporta mal. Ainda, neste particular, o último ocupante da Cadeira 10 confirmava o senso britânico da polidez, isto é, o traço de harmonia entre o espírito e o vestuário.
Seguia ele rigorosamente a disciplina do espírito, praticando aquela recomendação de Sainte-Beuve: Il y a une bienséance qui ne se viole jamais entre honnêtes gens. Admitia o grande crítico a controvérsia e o debate entre homens de letras, mas pleiteava que tais discussões não transpusessem jamais os limites da cortesia e os umbrais das portas. A polidez, como o aceno dos soberanos antigos, torna fidalgos aos homens de origem obscura. O estilo, no escritor, não deve ser privativo da pena. Para o mestre das Causeries du lundi, um dos mais belos espetáculos de nobreza humana era o que se representava no reinado de Luís Filipe, entre os marechais das letras, na França. Evocava ele, sous la coupole, o encontro obrigatório e cordial dos homens políticos, antigos ministros desafetos, cheios de rivalidades cá fora, mas perfeitamente cordiais na sala estreita que os reunia a todos:
Ce caractère de salon, qui est le propre des réunions particulières de l’Académie Française, ne peut guère être bien compris que par ceux qui en sont. Si l’on excepte, en effet, quelques cas rares où la vivacité de la passion a forcé un moment le ton et dépassé la convenance, l’habitude est de vivre à l’Académie comme entre confrères et de ne s’aborder que par les surfaces polies.
A glória da Cadeira 10
A glória desta Cadeira reponta do seu itinerário através do tempo. Itinerário que corresponde ao desejo de Machado de Assis: “conservar no meio da federação política a unidade literária”.
No vértice de sua escalada, para enaltecer-lhe o destino, colocou Rui Barbosa um nome inspirado pelas alturas. As montanhas de Minas simbolizam-lhe a majestade no perfil de Evaristo da Veiga, o mestre, o patriarca, o fundador, no Brasil, do jornalismo de opinião. Jornalismo que é menos ofício do que consciência; mais patriotismo do que indústria; menos impulso do que raciocínio.
Admirável é o destino das virtudes humanas pelas coincidências que a vida se encarrega de ajustar. Um dia, retirando-se do edifício da Cadeia Velha, onde então se instalara a Câmara temporária, reparou Evaristo da Veiga em que o seguia um homem de cor, procurando esconder alguma coisa entre as mãos. Comunicou seus receios ao jovem que o acompanhava, Luís da Cunha Feijó, mais tarde Visconde de Santa Isabel. Que pretenderia o desconhecido? Um braço oculto já buscara emudecer-lhe a voz e quebrar-lhe a pena, recorrendo ao atentado. Apressando o passo, entraram ambos na modesta loja de livros, onde o grande publicista da Regência continuava a profissão de outrora, aumentando-se em autoridade quando despia as prerrogativas do mandato político. O homem do povo, acelerando também a marcha, aproxima-se dos dois. Descruza os braços, avança resolutamente e coloca sobre a cabeça do grande jornalista uma pequena coroa de louros. Desaparece em seguida, entre o espanto e a comoção de ambos.
Cem anos depois, esse homem do povo, que assim manifestava o seu apreço e desaparecia à esquina de uma rua, deixando apenas o traço anônimo da lenda, reencarnava-se na maior expressão intelectual da nossa história política e literária. Tendo de escolher o paraninfo, o herói tutelar desta Cadeira, Rui Barbosa faria florescer ab aeterno a humilde grinalda que um homem do povo colocou um dia na cabeça de Evaristo da Veiga.
E, com isso, escreveu a página mais bela que se lhe poderia oferecer.
A Bahia, na figura do maior de seus filhos, que seria também a mais alta expressão do gênio, entre nós, coube acrescentar novos brasões, outras láureas à Cadeira 10, tornando-a o maior legado do nosso patrimônio espiritual. Berço do Brasil, primogênita flor da nossa história, o perfume da sua inteligência espalhou por todo o país a palavra que foi mais exemplo do que censura, mais advertência do que castigo, mais conselho do que látego, mais profecia do que condenação.
Tamanha foi sua influência na vida nacional – (e por que não acrescentar? – na vida da humanidade) – que o clarão de sua morte ilumina ainda o vácuo que ele deixou.
Ao traçar-lhe o perfil nas páginas dos Clássicos Brasileiros, foi Laudelino Freire buscar ao proêmio do tradutor das Palavras de um Crente, de Lammenais, a imagem exata, que define a grandeza da obra de Rui, na figura daquele homem que encontrou no caminho a semente de uma planta exótica, fabulosa, até então desconhecida de sua gente. Nasceu-lhe o desejo de plantar a semente no primeiro campo, esquecido do tempo em que a planta viria a florescer. Os beneficiários do semeador, conhecendo o valor da árvore nascente e sabendo que os seus frutos tornariam ricos de fé os desanimados, cheios de confiança os tímidos, opulentos de graça os humildes, espalharam logo que aquele homem lançara na terra um fogo encoberto, que arrasaria as colheitas. Então todos se puseram a negá-lo e a persegui-lo; primeiro, com pedras; depois, com escárnios e maldições. O semeador piedoso não protestou. Mal se viu livre do perigo, ajoelhou num outeiro, que dominava a planície, rendendo muitas graças a Deus pela sua iniciativa, e só implorando que a semente lançada fizesse prosperar aquelas terras e aclarasse o espírito daqueles homens. Feito isto, adormeceu serenamente, como um justo e como um sábio.
Após alguns anos, aqueles mesmos que o haviam apodado e castigado reuniram os filhos em torno da árvore santa para gozar da sombra que se espalhava pela terra em abrigo e abundância. Mas aquela árvore não era senão o grande símbolo da liberdade. E aquele homem não era senão o semeador, que estende a sua palavra sobre o universo.
Os ensaístas e biógrafos que estudaram a obra e a vida de Rui inclinam-se pela tese de que ele deveria ter nascido, para ser maior, na Inglaterra liberal de Roberto Peel ou de Gladstone, durante a victorian age. Nada mais falso. Rui é o homem providencial que o Brasil esperava no meio de seus defeitos e contradições. Aparecido noutra época, poderia ter sido mais feliz; teria sido, porém, menos útil.
Deixaria um exemplo; mas não nos teria deixado uma lição.
Recordo-me sempre, senhores, daquele conto em que Viriato Correia descreve as laranjeiras do quintal da casa em que nascera. Umas, grandes, ramalhudas e decorativas; outras, pequenas, operosas e humildes. Entre estas, uma que valia por todas. Baixa e modesta, não se engalanava como as companheiras na quadra da florada; mas, em chegando a maturação, era um gosto vê-la carregada, os galhos curvados ao peso dos frutos. Nenhuma os oferecia mais doces e sumarentos. Porém – estranha coincidência! – da laranjeira que mais produzia ninguém fazia caso. Todos os cuidados da família voltavam-se para as outras, as que mais escassas se mostravam na colheita. Parecia que, quanto mais estéreis, as árvores do quintal eram tanto mais festejadas. O pé de laranja esquecido compensava com a fartura a deficiência dos outros. Veio, porém, uma seca terrível. Baldes de água procuravam evitar que se estiolassem as grandes árvores do terreno. Ninguém se lembrou de regar, ao menos uma vez, a laranjeira dos frutos abundantes.
Desabrochando para dar, sem nada receber, exaurindo-se para produzir, sem nada conquistar, a vida dos homens de pensamento não lembra, realmente, na sua destinação, o laranjal da casa em que nascemos?
Esta pergunta é a moralidade do conto.
O que somos como idéia ou vibração de idéias devemos àquele homem pequeno e heróico, decerto providencial, cujo destino, em ponto grande, foi a laranjeira carregada de frutos generosos. Existência maravilhosa de batalhador, copiou a vocação das pedras preciosas, que refletem a luz por todas as faces.
À sua vida poderia ajustar-se bem aquilo que, numa das formosas orações do Teatro Lírico, aplicara ele à personalidade do Conselheiro Andrade Figueira: “Se é certo, como diz Voltaire, que às vezes basta um homem para desdoirar uma nação, não menos verdade é que, às vezes, basta um só para a salvar.”
A montanha e a planície
Quis a Academia que a glória deste legado, o maior de sua herança, coubesse, por uma compensação geográfica, ao menor de nossos distritos territoriais. E deu a Sergipe, na pessoa de Laudelino Freire, a palma da sucessão de Rui Barbosa. Agora, ainda, por uma destas manifestações de sua vida e de sua força, que é a de “formar-se de contrastes que acharam um ponto comum de apoio”, resolveu destacar a beleza de seu sistema orográfico, chamando à Cadeira, onde se respira o ar da montanha, um homem colhido na planície de origem e de destino. Tais contrastes, justificava-os Augusto de Lima, “estão mais permanentemente nela garantidos, do que se, à porfia, dentro ou fora dela, se fizessem valer para a exclusão de uns pelos outros. Visando todos a mesma altura para a ascensão comum, todos aí se encontram”. E, encontrando-se, realizam no itinerário da Academia o itinerário da pátria comum.
Desejava Nabuco, para a perfeita unidade da língua, que fôssemos também aqui, como em qualquer gênero de cultura, uma espécie de México intelectual, tendo tierra caliente, tierra templada e tierra fria.
Avançando para o extremo norte, tão rico de valores humanos, destes a mão a quem pleiteava, menos por si do que pela honra de sua terra, a oportunidade de restituir-lhe a representação que lhe faltava depois da morte de José Veríssimo e Inglês de Sousa.
Todos os que emergem da obscuridade gostam de rever o caminho da escalada. A alma sensível de Pierre de Nolhac desejou até que, em seu discurso, o herdeiro da poltrona que ocupou tivesse ao menos um sorriso para a cidadezinha d’Ambert, onde nascera. Descreve-a “jolie et sonore du chant de ses toits rouges, au flot si limpide que les arbres ont plaisir à s’y mirer”.
Transporto-me também nesta hora, como se recuasse trinta anos, para o tempo em que, às margens dos lagos e rios da Amazônia, um curumim travesso, despreocupado e feliz, pescava ou nadava sem imaginar que, um dia, o destino lhe desse asas para voar do barranco ao píncaro. E a inteligência brasileira se engalanasse para recebê-lo.
Os homens de letras, como aqueles artistas de que nos fala Camilo Mauclair, assemelham-se muito às crianças perdidas dos contos de fadas. Atiram-se ao desconhecido com a alegria de quem ignora o mundo. São, porém, maravilhosos e prudentes como o Pequeno Polegar: semeiam na estrada os seixos brancos que lhes asseguram o caminho da volta. Não retrocedem, como acontece às crianças. Mas deixam na estrada o vestígio da sua passagem. E a humanidade, que, tímida e curiosa, se aventure a segui-los, encontra nas suas obras, nos seus atos e combates, as pedras que lhes marcam o roteiro da viagem.
Todo o heroísmo dessa jornada, todo o sofrimento dessa luta, permiti que reparta com a terra que me estende de longe os braços barrentos de seus rios e o coração de prata de seus lagos.
Na lenda da tapera da lua, criada pela imaginação popular, quando as garças emigram para outras plagas, costumam, nas grandes noites de êxtase, debruçar-se para reverem no espelho das águas os velhos painéis do berço.
Assim em nossa memória, como as aves migradoras, falam as recordações da terra distante.
Repetindo a vocação do campesino Pesquidoux, confesso-vos que também “amo a terra como a uma criatura humana”.
Para ela, o primeiro sorriso e o último sonho; a ambição mais ingênua e a mais alta conquista. É isso, afinal, em troca de tudo o que de nós espera o pouco que lhe podemos oferecer.
Agradeço-vos, senhores acadêmicos, a restituição que lhe fizestes. A fortuna desta noite eleva-me à eminência de onde se pode descortinar o panorama do Brasil no seu desdobramento orográfico e humano.
Concedestes, com o vosso poder ilimitado, que a planície pudesse experimentar, um dia, o ar dos cimos.
Conheci, assim, o altiplano, onde podem caber, ao mesmo tempo, a águia real e o grão de areia.
Alerta, Sentinela!
Em 22 de março de 1924, Laudelino Freire tomava posse da Cadeira para a qual fora eleito a 16 de novembro de 1923, depois de um pleito renhido e duas vezes disputado com galhardia. Vinha suceder a Rui Barbosa. Ao mesmo tempo em que o deslumbrava, a herança o constrangia, tão luminoso era o tesouro do espólio e tão pesada a arca das responsabilidades. Replicando às irreverências tão comuns nas grandes vitórias, justificava a escolha de modo altamente digno na sua modéstia, declarando aos confrades:
Não; não me elegestes para substituir a Rui Barbosa. Influem, sem dúvida, nas eleições acadêmicas certas relações ou alianças; mas o que nelas realmente ocorre é um seguir-se, um vir depois, ou melhor, uma perpetuação sucessiva de nomes, enlaçados apenas na solidariedade espiritual do culto e amor das letras e da língua.
Recebendo-o com aquele aticismo, que é dom de estirpe, rebateria o senhor Aloísio de Castro a afirmativa do recipiendário, segundo a qual o critério adotado na substituição fora o de trazer o último para seguir-se ao primeiro, o menor para vir depois do maior dos nossos escritores.
Compreendia a humildade do conceito, visto que já se definira a modéstia como virtude privativa dos oradores, mas sempre oporia ao exagero a medida, concordando haver sido Rui, de fato, o primeiro em tudo, mas acrescentando que, sendo o sucessor da mesma escola, vestindo também a toga dos juristas e dos letrados, tinha todos os requisitos “para conservar a luz do facho”.
Condecorado com as mais altas insígnias da inteligência e da cultura poderia Laudelino Freire, naquela hora culminante da vida intelectual, volver os olhos ao passado para apreciar o espetáculo de uma trajetória que sobremodo o enobrecia.
Em 1889, deixava a cidade de Lagarto, no Estado de Sergipe, onde nascera, um rapaz tímido e franzino. Sentara praça no Exército e dirigia-se para o Rio de Janeiro, a fim de matricular-se na Escola Militar. Não tinha vocação para a carreira das Armas. Engajara-se, entretanto, para não sobrecarregar a família. Filho de Felisbelo Firmo de Oliveira Freire, fazendeiro sergipano, e de sua esposa, D. Rosa de Góis Freire, verificou que os pais não possuíam mais recursos para dar-lhe a mesma educação que propiciaram ao irmão mais velho, Felisbelo Freire. E, para poupar-lhes sacrifícios, resolveu por si mesmo abrir caminho na vida. Veio para a Escola Militar, onde fez o curso preparatório e chegou até ao segundo ano geral, com direito quase ao posto de alferes-aluno.
Aí estudou e lutou sozinho, sem outra recomendação além do próprio mérito. Prestes a terminar o curso, foi presa de um mal que o obrigou a baixar à enfermaria, interrompendo-lhe os exames.
Rodeado por mestres e colegas, recebia então a visita de Felisbelo Freire, ministro da Fazenda do Governo do Marechal Floriano Peixoto. Só então se viria a saber que aquele estudante aplicado e discreto era irmão de um ministro de Estado, cheio de inteligência e de poder. Jamais o cadete o revelara a alguém para beneficiar-se do parentesco ilustre. Jamais se valera de tal circunstância para subir ou furtar-se às obrigações militares. Quantas vezes não viera ele sob a inclemência da chuva, ou ao rigor do frio, cumprir as ordens do comandante, passando a noite na guarita, ou de carabina ao ombro, dando guarda à cidade, e tendo o sono interrompido de instante a instante pelo grito do camarada:
– Sentinela, alerta!
Ao qual respondia, estremunhado:
– Alerta estou!
Foram esses os primórdios de sua vida.
À maneira de Euclides da Cunha, Lauro Müller, Félix Pacheco e outros, trouxe da caserna para a vida o hábito da disciplina militar, empregando-o vantajosamente em outras atividades do espírito. Bacharelou-se em Direito e entrou para o magistério oficial. Foi professor, advogado, jornalista. Entregou-se depois a grandes cometimentos editoriais, fundando, em 1919, a Revista de Língua Portuguesa e enriquecendo a bibliografia do idioma com a publicação da Estante Clássica e a reprodução do Dicionário de Morais.
Em sua bagagem literária enfileiram-se mais de trinta obras, que se repartem por diversos gêneros de cultura, atestando o engenho, a variedade da inteligência, a sedução dos assuntos. Versou a Geografia, a História, a Moral, a Filosofia, a Pintura, a Matemática, o Direito, não se fixando, entretanto, em nenhum desses campos do espírito. Entrou pela Crítica, revelando certo azedume e utilizando pela primeira vez linguagem que contrasta com sua habitual serenidade e constitui exceção na conduta do escritor. Na defesa da língua, no estudo de suas formas, na apreciação de suas belezas, na coletânea de suas graças e galas, no expurgo dos vícios, que a desfiguram, e na busca às fontes, que a enobrecem, viria a fixar-se definitivamente, modelando a sua obra segundo as reais tendências do temperamento.
O culto do idioma foi-lhe a vocação essencial. No zelo da tradição, no convívio dos segredos da Literatura e da arte de escrever encontrou-se a si mesmo. E reconheceu, então, que nascera para aquilo. Trocara-lhe o destino afortunadamente a espada de alferes pelo brilhante e inofensivo espadim do fardão acadêmico.
Assim, quando Leite de Vasconcelos, do outro lado do Atlântico, erguia o protesto contra as formas viciosas do falar e do escrever, atribuindo o empobrecimento do estilo à ignorância cada vez maior do Latim, ao abandono dos livros clássicos, à influência da literatura francesa e à falta daquele sentimento de personalidade e patriotismo, tão vivo nos mestres de antanho; quando a voz do emérito filólogo ecoou no Brasil como antigamente o grito da guarda aos ouvidos do antigo aluno da Escola Militar: “Alerta, Sentinela!”, alguém daqui lhe retrucou, apontando um volumoso rol de trabalhos em favor do vernáculo, contra os escalrachos que acometiam a índole do idioma:
– Alerta estou!
Era justamente Laudelino Freire, que aliviado da carabina com que, anos antes, por estes sítios, montara guarda à cidade, rondava agora a linguagem, policiando-a em nome da vernaculidade e tendo a seu serviço um pelotão de obras apreciáveis, entre elas a Defesa da Língua Nacional (1920), Galicismos (1921), Clássicos Brasileiros (1923), Seleta Clássica Brasileira (1924), Verbos Portugueses (1925), Notas e Perfis (I a XI), Livros de Camilo (1927), Graças e Galas da Linguagem (1921), às quais obras se seguiram ainda: Seleta da Língua Portuguesa (1934), Sintaxe da Língua Portuguesa, Regras Práticas, Linguagem e Estilo e Estudos de Linguagem (1937).
O melhor louvor de sua campanha é a enumeração feita.
Dele se poderia afirmar o que de Silva Túlio, sob tantos aspectos semelhante ao seu destino, inclusive na guerra aos galicismos, disse Ramalho Ortigão: desaparece um dos raros homens que ainda possuíam, por aqui, a prenda, já naquele tempo exótica, de saber português.
O inimigo n.o 2 dos galicismos
A pureza da linguagem encheu uma fase de sua vida. Inspirou-lhe a paixão dos clássicos, o arrebatamento pelas formas vetustas e sábias do idioma. Torceu-lhe o estilo, modelou-lhe a expressão, a vida, os hábitos. Fez-lhe a pena recuar para os séculos XVI e XVII, regalando-se no vinho velho dos quinhentistas e seiscentistas, purificando-se no rigor das fontes idiomáticas. A defesa do léxico pareceu-lhe necessidade imediata. Coelho Neto dissera numa daquelas falas de apocalipse: “A língua está a pique de perder-se, degenerando em garabulha por arte dos franchinotes. Não é somente o vocábulo de boa casta, que é renegado pelo barbarismo, é a própria plástica, a mesma sintaxe, de construção robusta, que se vai deformando com o arrocho do justilho, efeminando-se com embelecos e postiços.”
A infiltração reclamava corretivo urgente. Laudelino Freire, fazendo-se o higienista da nova profilaxia, publicava, em 1921, o inventário dos galicismos. Estavam ali, sentados no banco dos réus, os emigrantes das Gálias. Tinham viajado como clandestinos, descendo à terra sem passaportes, e expiavam agora, no “index” da polícia de Frei Luís de Sousa, o crime de lesa-vernaculidade. Arregimentando-se entre os que montariam guarda às tradições da língua, evitando a invasão dos bárbaros e dos barbarismos, Laudelino Freire levaria a sua paixão às raias daquele zelo, que notabilizou, em Portugal, a figura de Silva Túlio, tornando-o o inimigo n.o 1 dos galicismos, conforme o retrato que dele nos pinta Ramalho Ortigão. Conservador da biblioteca pública e membro da Academia Real das Ciências, pertencendo à mesma geração literária de Almeida Garrett, de Alexandre Herculano e Antônio Feliciano de Castilho, Silva Túlio circunscrevera sua atividade à correção gramatical, votando-se inteiramente à pureza da linguagem. Vivia absorvido pela idéia da boa colocação dos pronomes, pela forma definitiva dos verbos e, sobretudo, pela defesa dos textos contra a investida dos galicismos. Responsável pela correção das provas tipográficas na imprensa acadêmica, imprimia à sua tarefa o cunho de uma liturgia. Revendo, certa vez, um trabalho de Latino Coelho, encontrou a palavra dados, empregada na mesma acepção do francês – données. Seus melindres de purista impuseram-lhe logo a obrigação de escrever ao autor, advertindo-o da falta e convidando-o a substituir o vocábulo perigoso. Entendendo que lhe assistia o direito de empregar um neologismo que vinha sendo usado desde o século XVIII, Latino replicou-lhe discordando da sugestão. Túlio passou a mão no original do elogio de Humboldt, que era a página discutida, e lá saiu, noite em fora, à procura do autor. Esgotou os argumentos gramaticais, passou às razões acadêmicas, invocou as relações de estima, implorou, suplicou para evitar o emprego da palavra espúria. Inflexível no seu ponto de vista, Latino teve de ceder, quando verificou o estado de prostração em que iria deixar o confrade: “Diluiu o termo suspeito num bravo circunlóquio de acorde quinhentista, harpejado a quatro mãos no teclado do estilo.” E Túlio, que sempre esquecia alguma coisa, absorvido pelo ofício, lá deixou ficar, nessa noite, os cigarros, as luvas, o chapéu, a bengala e até as provas. Só de uma coisa não se descuidou: foi de trazer na cabeça despenteada a vitória na luta contra o galicismo.
Sem o saber, talvez, Laudelino Freire repetiu aqui o mesmo episódio com o saudoso Mário Barreto. As conseqüências foram, porém, diferentes. O autor dos Novos Estudos não possuía a ductilidade de Latino Coelho para compreender certos estados de alma. Além disto, grammatici certant. Quando discutem, nunca os sábios se entendem. De amigos que eram, tornaram-se desafetos militantes, tudo por obra e graça da pureza do idioma.
À maneira do filólogo português pôs Laudelino Freire no Brasil a combatividade ao serviço dos foros da boa linguagem, acarretando, não raro, o sorriso dos confrades e a ironia dos maldizentes. De um destes deve ser a historieta que assinala a fase culminante da sua intransigência contra os vocábulos sem registro de nascimento no Dicionário de Morais.
Editor e diretor da Revista de Língua Portuguesa, tendo já empenhado elevadas somas em dotar o patrimônio das nossas publicações culturais, inclusive com a reprodução em fac-símile daquele monumental trabalho, o polígrafo estava certo dia à sua mesa de estudo, quando lhe anunciam a visita de um capitalista, que se propunha associar-se a ele para empreendimento editorial de grandes proporções.
Recebendo-o com sua urbanidade inconfundível, Laudelino Freire teria achado de todo ponto aceitável e conveniente a proposta que lhe era feita. E dispunha-se a ultimar o trato, quando o capitalista, para melhor elucidá-lo sobre as vantagens oferecidas, acrescentou que se faria antes uma campanha de publicidade e por ela já se poderia antever o sucesso da empresa.
– Sucesso! – Teria exclamado então o gramático, levantando-se da cadeira como se o impelisse a força de um botão elétrico. – Então, o senhor não sabe que, nessa acepção, a palavra é um galicismo?
O homem não o sabia. E, por isso, não se fechou o negócio.
Este sucesso (e aqui o termo vai empregado com a folha corrida do vernáculo), eu o inscrevo como um documento da atuação que exerceu a obra de Laudelino Freire, inspirando anedotas que não diminuem, antes realçam, o mérito de sua campanha. Porque, por mais liberal que seja o nosso ponto de vista em relação aos fenômenos da linguagem, os vícios do uso exigem lei que regule a infiltração e defenda o valor das palavras, evitando que dispam a vestimenta originária, para se embelezarem com trajos e plumagens estranhas. Todos os filólogos modernos participam da convicção de que as línguas, organismos vivos, ágeis e móveis, experimentam o efeito de duas forças contrárias, que se ajustam, quando se chocam; e se desequilibram, quando não se rebelam. Para manter o pêndulo, a força que inova é tão necessária como a força que conserva. Une langue ne se fixe pas.
Não sirva, porém, o conceito de Victor Hugo para pretexto, exagero e abuso de quantos petimetres e plumitivos rabiscam nas gazetas e nos livros os seus gosmados travessos, desarmazenando dos figurinos e revistas da Europa e da América todas as palavras pedantes, recendendo ainda ao cheiro de travessia, para enfeitarem com elas um estilo de vitrinas.
Há barbarismos e barbarismos.
Estes, gerados por simples exibição ou luxo, postos a circular só por bovarismo e não por necessidade, reclamam de nossa intransigência o merecido corretivo. Aqueles, inútil seria querer varrê-los do linguajar comum, porque, afeiçoados a ele, preenchem claros determinados, se tornaram insubstituíveis e a própria terapêutica dos neologismos não logrará afastá-los dos seus lugares nas expressões do povo.
Mostrou-se neste particular a Academia extremamente liberal quando discutiu onde se deveriam colocar, no dicionário brasileiro da língua, os estrangeirismos já sancionados pelo povo. Três propostas, então, empolgaram a atenção do plenário: a do senhor Fernando Magalhães, severa e patriarcal, inflexível contra a mistura da ilegitimidade, queria que, no fim da cada letra, houvesse um suplemento, uma espécie de casa de expostos, para abrigar essa casta de filhos naturais; a do senhor Cláudio de Sousa, mais conciliatória e humana, sugeria que as palavras estrangeiras, que já houvessem adquirido a fisionomia das nossas, aportuguesando-se convenientemente, ficassem irmanadas no texto, recebendo o sal do batismo a juízo dos padrinhos da comissão do dicionário; e a do senhor Humberto de Campos, libérrima e quase comunista, acabava com certos melindres de família e perfilhava-as todas no corpo do dicionário, desde que apresentassem responsável, um pai idôneo que as houvesse empregado e vestido a seu gosto. Apenas ressalvava que a prosódia fosse registrada entre parênteses e se indicasse o termo correspondente em vernáculo.
A julgar pelos precedentes, o posto de Laudelino Freire deveria ser na trincheira de onde o senhor Fernando Magalhães, com aquela galhardia dos patriarcas romanos na defesa do jus sanguinis, reclamava que se cumprissem todos os deveres para com a legítima paternidade. Ao contrário do que fora de esperar, o polígrafo sergipano, mais humanizado pelo tempo e apiedado pela sorte dos galicismos, formou como os senhores Afonso Celso e Coelho Neto no regimento do senhor Cláudio de Sousa, mostrando-se, porém, mais tolerante do que este com os velhos desafetos da forma clássica. Concordava que fossem incluídas no léxico as palavras “bonde”, “clube” e “esporte”, com a condição de se apoiarem naquele e, respeitável; “bibelô”, “cachepô”, “argô”, com o compromisso de largarem a companhia suspeita daquele t, substituindo-o por um acento circunflexo e circunspeto.
Ao lado de Coelho Neto, o senhor Cláudio de Sousa sustentava com vigor a sua proposta, convencido de que o idioma se bastaria a si mesmo; dispondo dos recursos necessários para suprir todos os termos de arribação.
– Dê-me, então, em vernáculo, um sucedâneo de garage – lhe pediu Humberto de Campos.
– Muito fácil, respondeu o vosso atual presidente. Aí o tem: auto-cocheira.
– Pois, se V.Ex.a sair um dia com o seu automóvel em busca de uma auto-cocheira – observou o confrade –, correrá o risco de ficar com o carro na rua.
No final das contas, graças ao parecer de Carlos de Laet, que foi erigido por voto de Minerva, a proposta de Humberto de Campos traçou a orientação oficial da Academia. Os barbarismos seriam perfilhados, como lhes facultava o código civil das letras. Individualmente, porém, nenhum dos signatários enrolaria a bandeira. Cada qual permaneceria na retranca da sua proposta. Inclusive aquele mestre magnífico que foi Silva Ramos, tão puro na bondade como sincero na expressão, que se batia como bom alfacinha pela exclusão das palavras que não fossem rigorosamente vernáculas, só admitindo no dicionário os termos que apresentassem “certidão de batismo na pia de Camões e de Camilo”.1
Uma tropa sem quartel
O Dicionário da Academia foi o grande sonho de Laudelino Freire. O seu “sino de ouro”. Tal como no conto de Júlia Lopes de Almeida, vivia para ele, fazendo da avareza diária, da obstinação invencível, o encanto das suas horas. Não raro, a paixão de um assunto transpõe os limites da permissão humana e confunde-se com os excessos e manias. Foi assim na questão ortográfica, em que ele se expôs a céu aberto e a que se votou por inteiro, sem ter podido contemplar a hora da vitória, quando o governo, liberto da sutileza dos textos sibilinos, reconheceu que a Academia estava com a razão, pleiteando para as novas gerações brasileiras uma grafia simplificada e racional. Foi ele, sem dúvida, o mais visado de todos pela campanha dos adversários do novo sistema. É que o seu temperamento não se coadunava com as meias-tintas e os entretons. Não ia para a luta a botes e quedas. Enfrentava as hostilidades sem perder o traço afirmativo, aquela disposição de querer, de realizar, num meio em que a regra, o comum das coisas, é o adiamento sistemático, a fuga das oportunidades, a delícia de ficar quieto, de não deliberar, de não resolver, o comodismo de repetir que não vale a pena... Amoedando as palavras para levar avante a idéia do dicionário, como aquela Maria Matilde amealhava as moedas para ouvir um dia o badalar do sino de ouro rente à baía de São Marcos, Laudelino Freire exagerava os seus cuidados, mas abria caminho às possibilidades de um empreendimento necessário. Reproduzia entre nós, com a ressalva de certos aspectos, o exemplo decisivo e a coragem voluntariosa de Antoine Furetière. Tempo sem tempo levara este a pugnar para que a Academia Francesa, saindo do encanto e da placidez de suas deliberações, ultimasse o vocabulário da língua, coordenando os materiais que ajudariam a desejada construção. Agraciada pelo privilégio que lhe outorgara o ato de Luís XIV, proibindo que se elaborasse ou publicasse obra congênere antes que surgissem os volumes da Academia, esta prolongava a expectativa pública, dormindo sobre o decreto real. Semelhante atitude irritava o espírito do diligente abade, para o qual o descanso dos confrades significava descortesia aos bons propósitos do rei. Embalde procurou ativar os trabalhos, apelando para os colegas no sentido de completar-se a iniciativa. A mal de seu grado, infrutíferos foram os esforços. Nem ele, nem os epigramas de Boisrobert, nem as malícias de Lebrun, nem as advertências de Boileau e as solicitações de Molière e de Racine apressaram o ritmo lento do Dicionário da Academia. Nem sempre a demora é amiga da perfeição. Nem sempre o mérito é incompatível com a pressa. Na revista que passa aos grandes escritores de todas as literaturas, Charles Simond examina a lentidão do trabalho da Academia, citando a expressão severa de um moralista da época: Il y a une maturité qui mûrit les entreprises, il y a une maturité qui les pourrit. Então, uma ofensiva perigosa, mas salvadora, sacudiu a atenção dos Confrades: Furetière conseguia em 1685 um privilégio para a publicação do seu Dicionário Universal, contendo geralmente todas as palavras francesas, tanto antigas como modernas, e os termos das ciências e das artes, obra que, ao contrário do que informa Humberto de Campos ao marcar-lhe o aparecimento em 1684, só viria a ser publicada em 1690, dois anos após a morte do autor. Levantaram-se, então, contra o sardônico prior todos os zelos adormecidos. Vingavam-se os confrades dos seus ferinos epigramas. Uns o acusavam de se haver apossado de certos verbetes; outros o apontavam como beneficiário dos arquivos da instituição. Altanado nos seus objetivos, superior às afrontas destes e à invectiva daqueles, Furetière respondeu com os incisivos “Memoriais”, entendendo que a Academia, em vez de culpá-lo, deveria antes rejubilar-se “por haver um de seus membros feito sozinho, em pouco tempo, o que quarenta não haviam logrado em meio século”.
No fim, o sacrifício de Furetière valeu como o melhor dos estímulos. A Academia recuperou em dez anos o tempo perdido em cinqüenta e ultimou o dicionário da língua, para honra das letras francesas e especial satisfação do rei.
Das ruínas de um nome ilustre, saíra a glória de uma instituição. Só isso faria dobrado o valor da obra de Furetière, cujo mérito para a época é indiscutível, e no qual se basearia até a enciclopédia de Trévoux.
Abrangendo com os olhos o vasto panorama lexicológico do país, Laudelino Freire fez tudo, também, para que a Academia Brasileira acelerasse a marchado dicionário, dando ao Brasil o resumo vocabular da sua vida e da sua história. Desiludido ou apressado, como o entendermos, resolveu empreender sozinho a jornada, lançando o seu dicionário.
Trabalhou com afinco, revelando disposição e energia que lhe conferem importante papel na realização do empreendimento.
O plano do dicionário brasileiro da língua, por ele pleiteado, defendido e, afinal, executado, nada tem de sobrenatural. Nem ele o quis diverso dos que têm sido organizados por outras academias. Desejava simplesmente um dicionário ortográfico, prosódico, sintático, no qual as palavras tivessem breve notícia de sua legítima derivação, evitando-se as controvérsias etimológicas. Livros úteis à língua e ao povo, nada mais. Inspirava-o o conceito de Littré, para o qual um dicionário histórico se torna útil desde que “não passe pela erudição senão para chegar ao serviço da língua”.
Inexeqüível seria a obra que reclamasse esforços que só especialistas e glotólogos do tomo de um Darmesteter, de um Lefèvre, de um Bréal, de um Webster, de um Meyer-Lübke ou de um Dauzat poderiam legitimamente empreender.
O dicionário que podemos e devemos executar, e de que precisamos – concluía ele –, “é um nos mesmos moldes das outras academias: etimológico, à semelhança do de Littré; ortográfico e prosódico, à semelhança do da Academia Espanhola; e sintático como o que, com o seu saber, nos legou a Academia de Lisboa”.
Obstinado no seu propósito, logrou o saudoso acadêmico a fortuna de ver em realidade a obra pela qual tanto se empenhou.
A morte deteve o passo para que pudesse ainda ouvir dos lábios da esposa a notícia que o recompensava da luta de tantos anos.
Levou, assim, para o túmulo a melhor coroa: aquela que lhe recordará para sempre a memória na flor de cada palavra e no sentido de cada expressão.
Complemento do grande dicionário, que a língua reclama, é a Enciclopédia brasileira, que o país deseja. D’Alembert não se enganava. Uma enciclopédia não é um dicionário. É um retrato. Traça, em palavras, a fisionomia de um país. O conceito, que vem desde o famoso Discours préliminaire, que é a introdução fiel da Enciclopédia francesa do século XVIII, levou longos anos para atravessar o Atlântico, e formar a consciência da necessidade de possuirmos, também, o nosso speculum historiale, reflexo da nossa origem e da nossa História.
Através dos seus volumes, ouve-se a voz dos séculos, rezando o inventário das ciências, das letras, das artes, e definindo a marcha dos povos pelo resumo de suas lições. Graças a esse aparelho maravilhoso, que transporta para o caleidoscópio da linguagem escrita todos os prodígios e revelações do mundo físico e do mundo da inteligência, ouve-se o ritmo da vida alemã nas Conversations Lexikon de Brockaus; da vida inglesa, na Enciclopédia britânica; dos Estados Unidos, na Enciclopédia americana; e do mundo, nos trechos da obra de Ersch e Gruber, ou no estupendo processo da Grande Encyclopédie, resumo da energia universal dirigido por Berthelot, Derenbourg, Glasson, Levasseur, Müntz, a constelação de institutos da cultura clássica.
Les encyclopédies ne tombent pas comme les feuilles et leurs printemps durent de longues années, escreveram os sábios que lograram realizar essa obra, animando-nos a uma tarefa que corresponde a uma obrigação.
Evocando nas páginas de Crítica as desventuras do Abade de Chalivoy, recorda Humberto de Campos uma velha canção de gesta, aplicada por Anatole France a um pequeno estudo sobre o Nouveau Dictionnaire classique illustrée, de Gazier. Segundo a gentil historieta, a condessa de Boussillon, filha do rei de França, vira do alto de uma torre a grande batalha que, na disputa de seu dote, travavam o pai e o marido. Luta sangrenta, desesperada, entre um e outro, consumira o dia inteiro. Ao cair da noite, já cessada a refrega, desceu ela a contemplar os mortos, “seus belos e queridos mortos, deitados na relva e no orvalho”. Não distinguia entre os dois. Queria beijá-los a ambos, repartindo-se em carinhos aos que lutaram de uma e de outra banda. À maneira dessa Condessa, o mestre de Thais sentia também íntima ternura subir-lhe ao coração toda vez que via reunidos, humildes ou soberbos, ignorados ou conhecidos, os vocábulos do seu belo idioma. Amava-os todos, ou, pelo menos, todos lhe interessavam, agrupados democraticamente no volume que os reunia sem distinção de origem. Eis por que lhe falavam fraternalmente ao coração os dicionários franceses. Modificando a imagem para transportá-la ao nosso ambiente, o autor de Memórias tinha a impressão de assistir, no Brasil, à mobilização de um grande exército revolucionário em vésperas de combate: “Soldados valentes, corajosos, cavalheirescos e úteis”, mas desprovidos de disciplina, de fardamentos, de armas, como aqueles que deram à guerra civil de 35 o nome de luta farroupilha. No acampamento desordenado ou na cidadela tumultuária, “empertiga-se o velho vocábulo português, cheirando à pólvora e maresia; bamboleia-se o vocábulo africano, molengo, bambo, dengoso; e o tupi-guarani, ainda nu e virgem, amolecido pela preguiça das raças que o inventaram; e finalmente o estrangeiro – o inglês, o francês, o alemão, o italiano e o espanhol, ainda com a roupa de chegada ou trajado, já, à moda portuguesa”.
Essa tropa valorosa, vigorosa e aguerrida reclama instantemente a presença de um instrutor e o abrigo de um quartel.
O meu antecessor nesta Cadeira deu a essa obra o melhor esforço de sua vida, desdobrando-se em iniciativas para que fosse a tarefa bem-sucedida.
Em arte, como em qualquer trabalho de inteligência e de ação – escreveu Mauclair –, les morts agissent avec la même autorité que les vivants.
Três figuras acadêmicas devotaram-se à tarefa do dicionário. De duas já o destino infelizmente nos privou: Laudelino Freire e aquele moço de noventa anos, que foi o Barão de Ramiz Galvão. A outra, que por fortuna vossa, preside agora aos destinos desta Casa e, por uma coincidência com a tradição da Academia Francesa, me vem receber à porta do templo com a sua palavra amiga, foi o Diderot da solução prática para levar-se a idéia avante.
Corre-nos, realmente, a obrigação de incorporar ao patrimônio de um dicionário nacional todos os valores humanos que se escutam nas palavras, como no bojo das conchas se pensa ouvir ainda a voz do mar.
O povo as criou, elas nasceram sob a autoridade de quarenta milhões de almas. Milhares de expressões, aqui nascidas e aclimadas, esperam que a Academia as chame à galeria dos seus verbetes, dobrando o número de termos dos nossos vocabulários, que não atingem a 150 mil palavras, quando podem elevar-se a duzentas mil com o volume e contribuição dos brasileirismos à espera do seu registro de batismo.
Como deixar de inscrevê-los, aproveitando os mananciais que espelham a variedade, a força, a inquietação da terra e do povo? Reconhecidamente “pobre nas suas tecnologias”, a língua portuguesa encontrou aqui o filão de ouro da sua riqueza geográfica. Conquistou o país; mas foi depois conquistada por ele: linguam fraenare plus est, quam castra domare.
Não é possível – disse-o muito bem o senhor Roquette-Pinto –, por amor ao português dos avoengos, ignorar todos esses movimentos idiomáticos, principalmente léxicos, quando se trata de coordenar os elementos da fala atual para o nosso grande dicionário. No vocabulário da língua que falamos, em dez palavras, há talvez, seis nomes de animais e dois de plantas. Se a Academia Brasileira considera aquela obra fundamental justificativa de sua atividade, claro está que, sem cuidar da Natureza, pouco poderá fazer. Mas quem batiza os acidentes do meio é o povo. Ele tem voz nesse capítulo.
É a grande voz que se levanta, impondo-nos as formas dialetais, o rumo da floresta americana, a exuberância das espécies e o perfume das plantas novas. Quando o idioma português saiu das nossas matas, vinha como aquela doce língua da Provença, que encantou a Lamartine: envolvido no aroma das selvas e misturado com a voz dos pássaros.
O idioma que o Brasil fala
Essa a língua que não geramos, mas adotamos, que não se batizou aqui, mas aqui se fixou e engrandeceu, ganhando novas formas, novas cores, outros sentidos de expressão.
Vindo, já adulta, no bojo daquelas caravelas, que traziam a cruz de Cristo nas velas – Christi sanguine sacrata –, não poderia ficar, senão por anacronismo biológico, a beber eternamente o leite da loba romana, amenizada por um alimento único, ainda mesmo que essa nutrição mergulhasse o poder nos ricos veios maternais da latinidade.
Trazida para cá, deveria experimentar aqui a segunda infância, rejuvenescendo-se no hálito da terra com a surpresa matinal de cada acontecimento e com o espetáculo das horas novas, criando a sua força e espanto.
Teria de provar o gosto dos frutos ácidos no pomar selvagem, correndo pelas atibaias, pulando a ponta das sangas, escapando-se pelos brejos e rechãs, indo aos igarapés e banhados, subindo aos tacurus e descendo aos barrancos, descortinando as coivaras e caçapavas, ajudando-se nos puxirões, abrindo a terra com a ponta dos saraquás, galgando a coxilha sob a quincha das carretas, ganhando os paranás no bojo das ubás, remexendo-se nos fandangos, escutando-se nas violas, prateando-se nas serestas, varando rios nas igarités e furando estradas nos lubungos, identificando-se nas vaquejadas do Norte e no rodeio dos pampas, nas bugigangas do Sul e nos catimbós do Nordeste, nos marabus dos palmares, nas macumbas dos mocambos e mandingas dos males.
Teria de ir aos cafundós da serra, catar esmeraldas no “cofre das grutas”; pescar diamantes na “garupa dos rios”;2 e peneirar no leito de barro virgem o ouro dos riachos pródigos.
Cantaria a música nascente, chamando a chinoca ao som da cordeona; madornando a nhãnhã dorminhoca e a sinhá tafula; povoando de histórias e lendas o sonho das cunhantãs e cunhanquiras.
Iria, nos pés do vento, a todas as direções: madrugando com o sol na vigilenga dos caboclos e na cavilha dos jangadeiros; amanhecendo no suor dos braços, que labutavam nos bangüês; vendo as tardes passarem no garimpo de tabuleiros, restingas e cascalhos de pinta rica, nesse jogo cobiçoso dos alforjes e alavancas, que enriqueceram a alma aventureira de dois séculos; e anoitecer depois no galpão dos tropeiros, dormindo ao relento, com a cabeça sobre o lombilho e o corpo atirado ao pelego da grama forrada de flexilhas.
Dominaria o país pelas pontas do laço, no veloz nomadismo da vida pastoril. Aqui, correndo nos fletes e alçando os baguais. Além, fundando lavouras, abrindo os covões para a “gaveta” das sementes, arruando as terras roxas e “coroando” os massapés para a marcha dos cafezais. Para além, criando a aristocracia dos senhores de engenho, enchendo de solenidade a Casa-Grande e de vozes estranhas às senzalas; ouvindo o gege e o nagô, o quimbundo e o hauçá, e na língua dos malungos e das negras do acassá louvarem-se os bambulás e as congadas, os jongos e os jeguedês. Mais além, escrevendo na água o risco das montarias, buscando os seringais, vertendo o sangue branco das árvores e “entigelando” a estrada.
Nesse maravilhoso ciclo pelo Brasil afora está o completo e complexo poema da geografia humana, escrito por uma raça que não se contentou em receber e guardar o legado do idioma que lhe trouxeram, antes o acrescentou e enriqueceu, levando-o a todas as zonas de sua dominação: nas botas de couro, que encurtaram as léguas; nos ponchos, que pelearam nos pingos, contra os pampeiros; nas igaras, que abriram os olhos de todos os rios; nas bateias, que acenderam a cupidez de tantos garimpeiros; nas quiçambas, que geraram a mais opulenta das nossas lavouras cafeeiras.
Nesse desbordamento de aspectos, nesse tônico de paisagem, quanto não lucraria o idioma replantado, esgalhando-se num perleito milagre vegetal!
É a destinação dos organismos vivos: crescerem, arfarem, vibrarem ao sopro daquela “perpétua renovação”, de que nos fala Bilac, ao comparar a língua que nos herdaram a uma árvore, que mantém o tronco, mas substitui continuamente galhos e folhas, flores e frutos, abrindo-se para asilo de outros ninhos e para gorjeio de outros pássaros.
Instrumento afeiçoado à nossa sensibilidade, dominando de longo a largo uma área que vem das barrentas vertentes andinas às confluências do Rio da Prata, o idioma luso-brasileiro deixou de ser um legado de família para tornar-se o espelho da conquista da terra, povoando-se de vozes que modelaram a prosódia e lhe ofereceram um timbre novo.
A penetração do panorama pela língua e a da língua pelo panorama leva a meditar na verdade proclamada por um filólogo da escola alemã: Philologie ist geschichte; geschichte ist philologie.
O idioma que falamos é, assim, um resumo de nossa vida, a vida de nossa História.
Não mais aquela “doce e correntia ribeira, derivada da fonte clássica, que cantava à sombra das colinas de Roma”, porém, o grande caudal humano, que identifica longitudes e altitudes, em que se misturam a nostalgia das nascentes, o rumor das vozes ameríndias e o ronco dos bombos e dos jongos.
Língua de origem nobre e árdua descendência, ao mesmo tempo bárbara e gentil, cavalheiresca e rude, leviana e apaixonada, corre nela o sangue de guerreiros e pescadores, de escravos e senhores, de campeiros e fidalgos, de praieiros e sertanejos, de pastores e garimpeiros, de soldados e comboieiros, de contrabandistas e conquistadores.
Língua de velha estirpe e de pujança nova, liga o passado de um povo ao futuro de uma raça. Cruzam-se nela as baleeiras dos biscainhos e as jangas dos indígenas, os negreiros do pombe e o galeão dos missionários, as balsas dos vigilantes e o barco dos regatões, a canoa das ladainhas e os saveiros de mar fora...
Língua de evocações e murmúrios, de rezas e de repiques, de descantes e pregões, vem de longe, no perfume das cepas caseiras e das vinhas fartas, das latadas florindo ao luar e das caçoilas de cravos rubros; na presença dos painéis de azulejo, evocando o santo dos bisavós; na saúde das lavadeiras alegres e pastoras ribeirinhas; na sombra lilá dos santos e no traço forte dos pinheirais. Vem de longe, nas botonas de um Portugal emigrante e cavaleiro, que traz no seu alforje a poeira das giestas, no ombro, “o pampilho ferrado e longo do comando” e na alma enamorada o lenço das cachopas, a cantiga dos outeiros e o estandarte das procissões. Vem de longe, dos píncaros alpinos, das cidadezinhas transtaganas, das leirinhas e lameirinhos, das quintas “que cabem na palma da mão”, para o mundo que não se acaba, para o mundo que descobriu com a vista dos seus gajeiros e onde rezou a primeira missa cristã, fazendo-nos ajoelhar para o Senhor.
Língua que se familiarizou, que se misturou, que chamou ao plantio das primeiras roças e depois se foi aclimando e colorindo de foz em fora, trocando a tinta das cercas e paliçadas pelo tom das caiçaras e das ocas.
Língua que reuniu e democratizou no memo tejupar os curumins e pequenos reinóis, sob o olhar vigilante do sacerdote.
Língua que viajou e aprendeu todos os mistérios, ouviu as vozes da floresta, enfrentou os demônios da mata e se curvou aos deuses das maloca; que remoçou nos terreiros e nos engenhos, no ranger da moenda e no moer da cana; que ergueu fortins de madeira e edificou as ermidas que convocaram os primeiros fiéis.
Língua que batizou as capelinhas dos arraiais missionários: Nossa Senhora do Rosário de Itaparica, Nossa Senhora da Conceição de Pambú, Santa Ana dos Tucanos, S. Francisco de Aracapá, semeando a cruz, desfiando o rosário, cantando a ladainha, movendo a romaria.
Língua que trocou os zurames do burel e os gorros de veludo, as samarras campônias e os coletes minhotos pelas roupas de couro com que a vaqueirama formou um Brasil rústico e forte, estremecendo a paisagem no arranco da boiada.
Instrumento que conquistou as suas novas cordas, não como aquele Alcman, da Lídia antiga, que aprendera o compasso dos versos “no passinho lesto das perdizes dos montes de Sardis”, mas no frêmito, na música, no encontro dos dialetos regionais, que lhe dilataram as fronteiras da expressão – o vocábulo e a sintaxe – e lhe deram outra frescura, outra liberdade, batizando uma nova civilização ao mesmo tempo que rejuvenesciam um idioma antigo.
Essa a língua que não criamos, mas engrandecemos, que é nossa não só pelo batismo, mas pela identificação e pelo renovo. Esse o galho que refloriu no pastoreio dos campos, no ciclo do gado, da cana e das bandeiras, mas guarda nas suas transformações o aceno do tronco – a seiva que vela pela unidade de herança3 –, dando-nos o ritmo, o sentimento e a graça para cantar na “língua de ouro velho a terra de ouro novo”.