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Por uma Federação de fato

 

Malgrado o Estado brasileiro ser, como é notório, uma República Federativa, ainda sofre de grande centralismo em torno da União e elevado grau de competitividade entre os Estados, Distrito Federal e municípios.


Sem querer penetrar, nanja, no DNA de nossa Federação, poderia afirmar que ela padece de "debilidade congênita". Diversamente do que ocorreu nos Estados Unidos da América, cuja Constituição inspirou, e muito, aos homens públicos brasileiros, nossa Federação não é filha de um genuíno "pacto federativo", para usar expressão tão em voga. Fácil é concluir: possuímos uma Federação legal, não uma Federação real. Dela se poderá dizer, parafraseando o itabirano Carlos Drummond de Andrade, que "é apenas uma fotografia na parede". Nada mais!


Convém não deslembrar, talvez por constituirmos país de grande expressão territorial, que a descentralização -leia-se a organização do Brasil sob a forma federativa- foi aspiração que permeou muitos dos movimentos significativos de nossa história, da qual são exemplos a Inconfidência Mineira e os de 1817 e 1824, ocorridos no Estado de Pernambuco.


"No Brasil, antes ainda da idéia democrática, encarregou-se a natureza de estabelecer o princípio federativo", dizia o Manifesto Republicano, de 1870. Rui Barbosa foi federalista antes de se transformar em pró-homem da causa republicana. Joaquim Nabuco, conquanto monarquista, não queria o Império organizado como Estado unitário.


Ao longo de nossa vida republicana, tisnada por tensos períodos de instabilidade política, todas as nossas Constituições prescreveram ser a Federação cláusula pétrea -insuscetível de alteração, portanto-, embora a Carta de 1937, outorgada por Getúlio Vargas no bojo do golpe por ele desfechado, haja limitado a autonomia político-administrativa dos Estados.


É evidente, pois, existir no Brasil um denso e profundo sentimento federativo. Todavia a sociedade percebe agora a erupção de novo ciclo concentrador da União, aluindo as bases do Estado federal, apesar de a Constituição de 1988 haver buscado robustecer os Estados e haver erigido os municípios à condição de entes federados -algo inédito em nosso constitucionalismo-, instituindo um "federalismo trino", como batizou mestre Miguel Reale.


Portanto promover a reengenharia do Estado federal é contribuir para consolidar as práticas democráticas, vez que a descentralização é mecanismo essencial para assegurar a plena cidadania. Precisamos construir no Brasil um modelo federativo que seja compatível ao mesmo tempo com a igualdade jurídica dos Estados, a superação das assimetrias econômicas e desigualdades sociais e a preservação da diversidade cultural.


Falta ao Estado brasileiro um embasamento político, uma doutrina estabilizadora dos interesses sobre a qual possa se assentar o edifício de instituições que reflitam o equilíbrio federativo reclamado pelas exigências dos avanços já alcançados a partir da consolidação da democracia (Constituição de 1988) e da higidez da economia (Plano Real).


As modernas definições de democracia preocupam-se com os mecanismos decisórios da política. Daí se afirmar, em nossos dias, que a democracia é o regime político caracterizado pela contínua capacidade de resposta do governo às preferências dos cidadãos, considerados politicamente iguais. Enfim, o exercício da política não pode ser um instrumento de manutenção, mas de transformação que a nação reclama, há séculos, em busca de uma sociedade mais solidária e justa.


As chamadas "reformas políticas", pelas quais luto há décadas, não se limitam ao importante território do sistema eleitoral e à estruturação de partidos sólidos. Elas pressupõem, de igual sorte, o aperfeiçoamento do sistema de governo, inclusive removendo áreas de atrito entre os Três Poderes; o revigoramento dos valores republicanos; e, obviamente, o redesenho do modelo federativo. Este impõe, entre outras ações, reforçar a desconcentração e a descentralização, por intermédio do fortalecimento dos Estados e municípios e o exercício de uma democracia participativa.


Assim, no momento em que o Congresso Nacional retoma os trabalhos legislativos, considero ser necessário estabelecer como prioridade o debate da questão institucional brasileira, que passa necessariamente por vertebrar uma autêntica Federação. Ao Senado, que, segundo Pimenta Bueno, no Império foi "conservador do princípio da nacionalidade", cumpre na República -e esta agora talvez seja a sua mais importante tarefa- ser a "Casa da Federação". A ele cabe a ingente tarefa de aprimorá-la e desenvolvê-la em parceria com os demais Poderes da República e entes federados.


 


 


Folha de São Paulo (São Paulo) 04/03/2005

Folha de São Paulo (São Paulo), 04/03/2005