No capítulo das coincidências, Senhor Marques Rebelo...
E lá vem uma coincidência – parcial: a das palavras deste começo com o título do fino conto machadiano “Capítulo dos Chapéus”, que no segundo tomo de vosso diário romanceado O Espelho Partido mencionais (a par de “Uns Braços”, “O Diplomático”, “Uma Senhora”, “Missa do Galo” e “Idéias de Canário”) como um daquele que, ainda pelo entrar de vossa adolescência, requintaram em “alumbramento” a funda impressão dantes suscitada por Brás Cubas, Quincas Borba, e Dom Casmurro, com a sua Capitu de olhos de ressaca, por quem, dizeis, ó apaixonável confrade, ficastes “para toda a vida apaixonado”.
Porém vós mencionastes coincidências de que é cheia a Cadeira 9, na qual, devidamente sacramentado com a solenidade desta noite, vos acabais de empossar para todo o sempre. E delas também falarei.
A última coincidência das que apontastes, a do ano da posse do carioca – duplamente carioca, digo eu, pelo nascimento e pela obra – com o ano de comemorações quadricentenárias da cidade, passara-me pela cabeça bem antes de me dardes a ler o vosso discurso. Honra-me esse encontro de nossos espíritos; mas dói-me haver perdido aquilo que seria a chave de ouro da minha saudação – e devo resignar-me a encerrá-la com um fecho de metal bem mais modesto. Contudo, às que enumerastes acrescentarei algumas outras coincidências,compensadoras desse malogro. Ei-las: Magalhães patrono foi médico,e vós cursastes Medicina até o terceiro ano; e sois bacharel, tal como o outro Magalhães, o fundador.
Morastes, há uns quinze anos, na Praia de Botafogo, 48, Edifício Duque de Caxias, onde continua a residir este vosso companheiro. Quatro acadêmicos, aliás, deu aquele prédio, contagiado, assim, da nossa precária imortalidade: além de nós dois, produziu ele Álvaro Lins, que ao eleger-se ainda o habitava, e Magalhães Júnior, que oito anos antes de aqui entrar vendera o seu apartamento ao mestre do Jornal de Crítica, trocando a sua cívica morada ali por outra em rua não menos cívica: do Edifício Duque de Caxias passou-se para a Rua Marechal Mascarenhas de Morais.
E, por fim, tomais posse em maio: “Em Maio”, nome de um conto vosso de Oscarina, ou melhor, poema-conto, ou poema em prosa; em maio,“maio plácido, ameno, maio das sinetas tocando para a bênção na capela do Asilo”, como escreveis na bela história do “Circo dos Coelhinhos”; em maio,o mês em que nasceu e foi eleito para esta Casa o amigo e confrade que ora,comovidamente, nela vos recebe.
Ora, deu-se que um dia, senhoras e senhores – o dia de Reis do ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1907 –, nasceu no então Distrito Federal, em Vila Isabel, o inocente Eddy, Eddy Dias da Cruz, que aos três anos – e seguramente já por essa altura perdera de todo a inocência – muito se impressionaria com a passagem do cometa Halley. Em anos proximamente seguintes, outros sucessos e coisas lhe deixariam pegadas fundas na memória: o rinque de patinação da Praça Barão de Drummond; a representação de A Tosca, no Teatro Lírico (ainda preso, sem dúvida, à lembrança daquela noite, dirá, mais de quarenta anos depois, à sua guia, em Praga: “– Museu, sim,minha cara amiga, ópera, não. Detesto ópera.”); e a primeira vez que assistiu a um jogo, no campo do América, clube de que é torcedor doente.
Vai pelos nove anos quando se põe a meter o dente nos autores, a maioria clássicos, da biblioteca de seu pai; e entre os dez e os treze dá conta da Bíblia, de Buffon, e Herculano, e Flaubert e Balzac. Já vistes, senhores acadêmicos, que no princípio da adolescência descobriu Machado de Assis; e, lembrando-se dessa fase da vida, escreverá, em O Trapicheiro:
1922. Há tempo de ler e tempo de reler (notai a influência do Eclesíastes: ‘Há tempo de rir e tempo de chorar.’). No quarto com cama de ferro e marulho de ondas, Meu Tio Benjamim, Dominique, Daudet, Dickens, Gil Bias, o Sargento de Milícias, Victor Hugo, Bret Harte e Eugênia Grandet encheram do intenso maravilhoso todo aquele março de calor e mosquitos.
Truncada a carreira médica, trabalhou uns doze anos no comércio, em diferentes ramos; um destes, o de vendedor, que traria ao homem de letras um mundo de fecundas experiências e observações, colhidas ao contato de terras e gentes, pelos recantos de sua terra e pelo Brasil em fora, e que se refletem não só nos contos e romances, senão também nas Cenas da Vida Brasileira.
Outras, e numerosas, observações e experiências lhe ofereceram os anos de 1926 e 1927, quando serviu no Exército; delas está cheia a noveleta“Oscarina”, peça inicial do livro homônimo.
Retomando à vida civil, tocou sete instrumentos: conquistou, com o andar do tempo, o canudo de bacharel; foi nomeado inspetor federal do ensino;dedicando-se à indústria, entrou como sócio de um laboratório de produtos farmacêuticos, do qual só recentemente se desligou; fundou museus de Arte; viajou quase todo o Brasil, andou longes terras americanas e européias; manteve, na Última Hora, seções fixas, uma delas a “Conversa do Dia”, em que deixou excelentes páginas, ainda não enfeixadas em volume.
E, em meio a tudo isso, leu a valer – e entre os autores lidos figuram Gide, Pirandello, Lawrence, Conrad, Henry James, Sinclair Lewis, John dos Passos, Willa Cather, Katherine Mansfield, Jacobsen; leu e escreveu varando as noites. Expressiva, em A Mudança, esta confissão (de 1941):
É madrugada. Vago pelo apartamento na semi-obscuridade, adivinhando os móveis, desviando [-me] deles, contornando-os, cansado da leitura, buscando inspiração, meu pêndulo noturno – ler, escrever, ler, escrever.
Homem sois de língua afiada, Senhor Marques Rebelo, predisposta à franqueza mais rude, à mais dura irreverência, à ironia, ao sarcasmo, à sátira crua por vezes; e ninguém me acusaria de malediência ao proclamá-lo: que a proclamar verdade tão sabida sois vós mesmo o primeiro, antes que o façam os vossos inimigos – que muitos por isso conquistastes – ou os vossos amigos, nem sempre imunes à maledicência rebeliana, oral ou escrita. Por vezes acontece raiarem pelo exagero vaidoso as vossas confissões neste sentido: “A verdade é só esta – sou um rapaz mal-educado.”
Ocorre – ao menos uma vez – quererdes explicar-vos: “Não é fácil ser respeitoso a um garoto que nasceu em Vila Isabel, e na Tijuca e no Estácio foi criado.” Lançais à conta do famoso bairro o vosso gosto inato da irreverência – do vosso bairro, de que dizeis ser um modesto cidadão, mas do qual em verdade muito vos orgulhais, e com justo motivo, a ponto de que poderíeis repetir o vosso querido e admirado cobairrano Noel Rosa: “Modéstia à parte, eu sou da Vila.”
Em dado momento, chamais “sinceridade” a essa face do vosso feitio: “a sinceridade é uma qualidade que nunca atraiçoei.”
Em A Mudança, onde apareceis sob a pele de “Eduardo”, deixastes esta confissão: “Certos confrades entenderam de inventar o assunto Eduardo.É um assunto fácil, porque dou pasto, por uma certa descontinência de língua.” E adiante: “O meu primeiro movimento é sempre de cólera, Chico. Ou de curiosidade.” recordando as palavras de alguém – “A inteligência é a faculdade de compreender aquilo que nos é antipático” –, escreveis que isso vos “doeu como uma pedrada. Senti-me burro”. “Engraçado!” – Luísa vos diz (e naturalmente com ela concordais). – “Com você é preciso agir como se jogássemos o perde-e-ganha. Porque se a gente quer ouvir vitrola, você liga o rádio. E quando a gente quer rádio, você toca vitrola, e sapeca fatalmente um samba se pedimos que ponha um disco clássico...”
Em certo ponto, porém, revelais divergência entre a língua e o coração: “Nunca é possível cortar uma certa rispidez de gestos e respostas, que me põe em estilhaços o pobre coração de vidro sem o hábito da cautela.” Doutra vez: “Caneta pingando fel, que ganhas com isso?” E, nobremente, o pecador faz o ato de contrição, certo, embora, de não poder fugir ao pecado:
A verdade é esta: falta-me grandeza. Falta-me o espírito de tolerar a eterna tolice humana, a irremediável vaidade humana, a estupidez humana. Quantas vezes eu juro a mim mesmo não ferir mais susceptibilidades, sorrir piedoso para todas as tolices, para todas as vaidades, para toda estupidez, para o carneirismo ou para a cupidez – deixar a vida correr suave e sem barulho como máquina azeitada. Inútil! Sou bichinho rasteiro (o espelho me segura) – e na primeira ocasião lá vai agressão sob a forma de franqueza, quando a franqueza é um mito e as minhas fraquezas são muitas, infinitas, Catarina que o diga!
Dizendo à vossa Luísa que tendes horror a confissões – vós que tantas fazeis –, confessais-lhe:
não sei gostar muito. Não sorrias... Sei suportar, apenas, e uma e outra coisa podem se confundir um pouco. Suporto uma infinidade de criaturas, de resto com bastante desfaçatez, súbitas explosões e alguns traços de meiguice, além de toneladas de gratidão em certos casos.
E acrescentais, profundando a auto-análise:
Tenho compaixão de algumas, poucas, pobres almas desarvoradas como Eurico e a nossa perdida Madalena. Estimo Francisco Amaro e Garcia, mas estima indestrutível como se os laços do afeto pudessem ser inoxidáveis como certos aços. Por Vera e Lúcia (os filhos) é amor, mas amor seco, que às vezes nem parece que é amor.Talvez nem seja mesmo amor, pois o amor paternal bem pode ser amor a nós mesmos.
E há um momento em que vos abandonais a esta inquirição psicológica:
que sabemos honestamente de nós mesmos, com que astigmatismo nos
olhamos, infensos às lentes retificadoras?
Mas, pelo geral, não estais para semelhantes indagações, e, como achais que “não há vaidade mais perigosa do que a modéstia”, envaideceis-vos das vossas franquezas e maledicências, e do espírito com que as expressastes:
O que me perguntaram (em Praga) respondi com este jeito que Deus me deu e o Diabo conserva e, por causa de muitas respostas,houve alguns risos. Por causa das perguntas que ousei fazer, certas vezes houve caras fechadas. [...] Desembaraçadamente desatei num rosário de considerações, não distantes muitas da finura e da originalidade,
cheias outras de inocente maldade.
Inocente maldade!
Agora carregais mais vivo no auto-elogio, mesclado a elogio de vossa terra e de autores e amigos da especial admiração vossa, ao registrar uma conferência por vós improvisada em Belo Horizonte:
não me considero um mau conversador, a certas alusões houve risos, a memória não me trai, e me é fácil falar com amor da minha cidade e de Manuel Antônio de Almeida, de Machado de Assis e de Arnaldo Tabaiá, sobre quem vem pesando um cerrado e injusto esquecimento.
“Falar com amor”, dizeis. Amor, ternura, piedade – e eis o reverso da medalha, a outra face da vossa complexa personalidade. No quarto do casal, Luísa estuda para um concurso, e:
De quando em vez, vou até lá como cordão umbilical que nunca se desprendeu da matriz: “– Que é isto?” “– Contabilidade Industrial. Não sabia nada!”
Quando fecha os livros é que eu me instalo na mesinha para as minhas lucubrações. A luz do abajur não a perturba, nunca a perturbou, dorme, cansada, profundamente, e não sinto remorsos. Ao ritmo do seu arfar, vou compondo as minhas coisas.
Depois de a pergunta da praguense Jerolav, vossa guia, sobre se tendes algum verso que vos persiga, responderdes que é o verso (aliás, os versos) de Manuel Bandeira – “E saudava a matéria que passava, / Liberta para sempre da alma extinta”, torna ela:
“– Quer dizer que se você tivesse um ex-libris poria nele esse verso?” “Não” – retrucais –, “poria outro: ‘Perdido é todo o tempo que em amor não se gasta’. É de Tasso.”
E é vosso este conceito, moldado no “Há tempo de rir e tempo de chorar”, do Eclesiastes:
“Há tempo de amar e tempo de amar o que se amou.” Aos cães se estende esse amor, e eis com que afeto – e poética beleza – vos referis à cadelinha Laurinda:
Envolveu-se Laurinda num velho suéter verde, de melancólica história, como se fosse possível aquecê-la, aquecer o seu inestimável coração sem latidos. Pérsio é gentil. Abriu a pequenina cova rente ao muro do seu ateliê. Foi plantada lá como semente de amor, ao sol que ela tanto amava.
Se considerais “Triste espetáculo o de uma criança que chora”, menos piedade do que os seres de carne e osso não vos merecem as vossas personagens.
E com esta breve nota abris os Três Caminhos, explicando a razão do título:
“Vejo a Lua no Céu”, “Circo de Coelhinhos” e “Namorada” representam capítulos imperfeitos de três romances tentados, onde cada pequenino herói estava no seu caminho. Se não os prossegui não foi por negligência ou incapacidade. Falou mais forte a piedade de não lhes dar destinos.
Da vossa dedicação aos amigos uma prova citarei. Em 1942 tomastes conhecimento da remessa do Cascalho, romance de Herberto Sales, então residente em Andaraí, na Bahia, para o concurso Latino-Americano de Romances, aos cuidados, em nosso País, da Revista do Brasil, então dirigida por Otávio Tarqüínio de Sousa, e por mim secretariada. Lestes a obra e escrevestes ao seu autor, com elogios, e sugerindo-lhe modificações, que foram aceitas. Conquanto houvesse ganho, aqui, no certame, Jorge Amado, com Terras do Sem-Fim, o vosso interesse não morreu: conseguistes editor para o romance, e, quando este em provas, telegrafastes a Herberto pedindo-lhe viesse revê-las, e fostes esperá-lo no aeroporto. E porque Herberto – volvidos alguns anos, e depois de, ante situação difícil e perigosa, haver-se deliberado a deixar sua terra e vir para o Rio, cedendo à insistência do vosso convite – desistisse da viagem quando já estava em Salvador, mandastes a sua mãe este telegrama, que foi entregue ao escritor por seu pai quando aquele, de regresso, já se achava em Feira de Sant’Ana: “Obrigue Herberto a vir pt Tudo farei para salvar o amigo pt Abraços”. E pouco depois lhe escrevíeis: “Recebi carta. Quando você quiser vir, é só chegar: o apartamento, com Rebelo ou sem Rebelo, é sempre seu.” O complicado romancista não resistiu, e em vossa casa o hospedastes durante meses, e encaminhastes-lhe os primeiros passos.
E a vossa amizade a Arnaldo Tabaiá, a Francisco Inácio Peixoto a Walter Benevides, a outros daqueles (não muito numerosos, é certo,) a quem concedeis a graça de os poupar ao pelourinho que é a vossa obra cíclica O Espelho Partido, onde tantos desafetos, e até amigos, vêm sendo castigados, por vezes implacavelmente?
Sim, também amigos. Lembrais – só até certo ponto! – o Joaquim Fidélis, do conto machadiano “Galeria Póstuma”. À noite essa estranha criatura retratava, em traços sintéticos, e não raro cruéis, pessoas de sua amizade e convívio, num diário, “confidências do homem a si mesmo”, cujo veneno não poupou o sobrinho sequer, que morava com o tio e só após a morte deste veio a descobrir o precioso documento:
Este meu sobrinho .... ama-me. Eu não o amo menos. Discreto, leal e bom... Tão firme nas afeições como versátil nos pareceres. Superficial, amigo de novidades, amando no Direito o vocabulário e as fórmulas.
Com os outros, então, era muito pior.
Santo não sois, por certo; mas ninguém menos que vós pretendeu vender-se por santo. Pecador confesso e relapso, tendes, contudo, como se viu, momentos de grande virtude.
Quer-me parecer mais um traço de vossa afetividade o hábito e gosto de dedicar a amigos as vossas obras.
Gourmant e gourmet, com ríspidas idiossincrasias alimentares – ao leite, por exemplo, e a quantos lacticínios existem (“não ponho manteiga na boca”; “por mais admiração que. tenha por Metchnikof, troço que não ponho na minha boca é coalhada”), virgulais o habitual trabalho noturno com a ingestão de numerosos acepipes ligeiros, sem dispensardes o café – e, dou o meu testemunho, é excelente o de vossa casa (“Quando que aqui em casa o café não foi decente?” – gritais a um visitante que parecera disto duvidar).
Apaixonado das Artes, Música e Pintura maiormente, sobre elas, como acerca de Letras, gostais de conversar; e creio não perdestes o costume, que tínheis quando meu vizinho, de, querendo impor vosso gosto aos amigos, atacar autores que víeis enfileirados nas bibliotecas, sugerindo, como destino para eles, o lixo, e condenar músicos ou músicas não de vossa preferência, e sugerir a remoção de certos quadros da sala para a cozinha.
Homem de rompantes, língua-de-prata, sois, enfim, como o vosso caro biografado Manuel Antônio de Almeida, um desabusado; e, como somente vós mesmo, e sobretudo em relação aos de vossa estima, um abusado, na acepção bem nordestina de “confiado, intrometido”.
Língua-de-prata, sim; mas não é outro senão vós quem escreve, antes de travar, em Ferney-Voltaire, na França, imaginário e espirituoso diálogo com o forte maldizente do Candide:
“Desconfiem dos homens de má língua, meus amigos – em regra geral têm bom coração.”
Ora haveis de saber que um dia, senhoras e senhores meus, Eddy Dias da Cruz, aquele menino de Vila Isabel, realizou a mais valerosa obra de sua vida: criou Marques Rebelo, que viria a ser um dos grandes de Espanha das nossas Letras, personagem, bem o vistes, de altíssimo teor de personalidade.
Isto ocorreu pela altura de 1926, quando Eddy Dias da Cruz andava pelos seus adolescentes dezenove anos, já semi-empanturrado de leituras e atacado da comichão literária, e querendo de simples leitor passar à condição de autor.
Certo, ao nacionalismo do seu espírito não agradava o estrangeiro nome de batismo; tampouco a seu musical ouvido soaria bem o Eddy Dias, esse didi, feio, tipo de cacofonia que a gramática maltrata com um palavrão – pare-quema. E, ainda por cima, um de seus professores, o escritor Nestor Vítor, sentindo-lhe os pendores, chama-lhe a atenção para a penosa circunstância.
Assim, antes de aventurar-se a criar nome literário, teve o jovem de, fazendo uma autocrisma, criar para si um nome com que firmar os seus trabalhos. E – caso não demasiado freqüente – pela vida fora, pela obra fora, Marques Rebelo chegou a matar Eddy Dias da Cruz: matou-o literariamente, e socialmente; e até no campo das amizades íntimas, e no da família, a bem dizer também o matou: na boca sentimentalmente conservadora de uns raríssimos amigos de infância, e na dos filhos, é que o “Eddy” permaneceu; para todos os demais, “Rebelo”, como lhe chama até sua mulher; ou poucas vezes “Marques”; ou, finalmente, e por inteiro, “Marques Rebelo”.
O jovem Eddy, porém, ficou, no fundo da cena, alimentando, com a sua vivência rica, talvez a maior parte da atividade literária de sua criatura, que a seu turno se fizera criador. Criador, do seu poder demiúrgico viria a brotar toda uma teoria de seres, ora nítidos, vividos, inteiros, ora fugazes, evanescentes, incompletos, e nem por isso menos humanos – ao capricho e sabor das exigências desse universo de características tão próprias que é o universo da ficção.
A argila desse fino escultor, fornecida por Eddy Dias da Cruz, plasmou Seu Azevedo, e Seu João, e Onofre, o mata-mosquitos, e o pequeno Silvino; e mais Rosinha, a professora, doida para casar, e a cujos olhos Santo Antônio “valia muito mais que São Geraldo, razão, mais ou menos, de dois São Geraldos para cada Santo Antônio”; Estela, de olhos que “eram bem o chamado do mar o chamado das ondas de um mar verde, fundamente verde” (“Por onde andará Estela? Em que mares de homens se perdeu?”.) E não terá entrado um pouco dessa argila na composição da capitosa Oscarina, embora a tenhais conhecido, ao que parece, pouco após a fase de transição entre Eddy e Rebelo?
Mas é bom atender à cronologia, pondo as coisas nos devidos lugares e tempos.
Operada a transição, trazido às nossas Letras um novo autor, este não principiou escrevendo prosa. Não. Como tantos e tantos, como a grande maioria, começou poeta. A 5 de fevereiro de 1927 estreava, na Para Todos..., com o poema “Rua indolente”:
Da minha janela, convalescente,
eu vejo a minha rua,
a minha rua indolente de subúrbio,
adormecer ao sol do meio-dia.
Quase silêncio.
Roupas a secar na corda.
O capim, muito verde, cresce na sarjeta
de grandes pedras desiguais.
Um velho tamarineiro enche duma sombra
malandra o botequim da esquina.
Passa um sorveteiro com a sua caixa
mal pintada de verde e de amarelo.
Passa um mascate.
Outros pregões... Os pregões de todos os dias
de vozes cansadas e arrastadas
que ficam muito no ar...
Há um longínquo bater de roupas.
Nas janelas azuis do teu branco chalé,
do teu chalé imperial,
os cortinados de cassa
parecem me chamar...
E de repente,
o teu piano, meio desafinado, enche
o quase silêncio da minha rua indolente,
com uma velha valsa sentimental
que não se toca mais.
Bem se vê: Poesia descritiva, do cotidiano, simples, sem estridências, discretamente filiada ao Modernismo.
Mais uma citarei, publicada na Revista de Antropofagia, número de junho de 1928. Seis versos, apenas:
Eu abri a janela
E respirei fundamente a frialdade
Da manhã.
Sob risadas de sinos
A cidade brincava de esconder
Dentro da névoa.
Outra, igualmente breve, “Quando você foi embora”, saíra um mês antes, na Ilustração Brasileira, vindo no mesmo número um conto seu, “Rita”.
E mais outros poemas, vários, lançou Marques Rebelo, que, além de nas citadas revistas, colaborou, entre 27 e 29, na Revista Sousa Cruz, em Verde, no Leite Crioulo, no Atlântico...
Chegou a pensar em reuni-los todos em livro, com o título daquele primeiro:
Rua indolente.
Desistiu, depois; e deu de mão à Poesia. Atirou-se à Prosa, onde por vezes se realizaria bem mais altamente como poeta. Vede, senhoras e senhores, se tenho razão:
Leniza sentou-se, tímida, na ponta da cadeira, como uma pomba no beiral, exatamente como uma pomba. Uma doce piedade pousou-lhe no coração, como borboleta bondosa que pousasse numa flor morta e sem perfume.
Dois breves e belos poemas. Basta que se lhes dê a disposição tipográfica de versos. São de A Estrela Sobe, seu quarto livro de ficção; e a colheita poderia remontar a época muito anterior.
E este, ainda mais curto, lapidar, prodigioso dístico, uma vez feita a separação na palavra “solitário”:
“O bêbedo solitário faz parte do luar.”
O Espelho Partido nos oferece maravilhas poéticas assim: “E a madrugada vinha desabrochando da linha do horizonte como uma imensa orquídea sangüínea.”
E agora, senhoras e senhores, a dor pela morte do amigo muito querido transfeita em poesia de grave e enternecida beleza:
Que tarde de cristal! Que brilhos arrancava o sol do casario! Que clareza tinha o branco de mármore e cal das sepulturas! Diafaneidade, fulgência, claridade, que os olhos sôfregos de Tabaiá não mais poderiam gozar e fixar. Sob o machucado monte de coroas, ramos e douradas Letras da homenagem e da saudade, deixamo-lo no seu alvéolo perpétuo, partícula do favo imenso horizontalmente estendido, de ventre enchumaçado de inúteis ataduras de algodões antissépticos, operária da beleza, que não fabricaria jamais o mel da alegria e do amor.
Datado “Rio, outubro 931”, chegou-me às mãos, em Maceió, o livro de estréia de Marques Rebelo, Oscarina: a novela de igual título, dantes publicada na Feira Literária, e mais quinze histórias curtas. Outros amigos de lá também o receberam. Foi um rebuliço, na mesmice da província. Ainda me recordo bem de Raul Lima a repetir, deliciado, aquele trecho, que tinha de cor:
Conheceu Oscarina no mafuá de Botafogo, defronte à barraquinha das argolas.
– Duma morena assim é que eu precisava lá em casa...
Oscarina, rebolando, virou de lado, como quem não quer, mas dando
corda:
– Sai, pato!...
Valdemar Cavalcanti quase delirava. E Graciliano Ramos, na Imprensa Oficial, de que era diretor, um dos pontos obrigatórios do nosso bate-papo literário, levantava-se da mesa, mangas arregaçadas, depois de pentear a gramática e estilo de um original, tomava da obra, sempre à mão, e, abrindo-a no conto de sua preferência, “Na Rua D. Emerenciana”, que uns vinte anos depois viria a incluir na sua antologia Contos e Novelas: – “Isto é bom como todos os diabos, não é assim?”
Rematava o louvor com um palavrão cabeludo, e, como prova – “mata a cobra e mostra o pau” –, punha-se a ler:
Seu Azevedo, vizinho, um bom homem, de tardinha, palito nos dentes e paletó de pijama listrado, vinha com a Lúcia e a Ninita, as pequenas, gozar a fresca – digam lá o que disserem, não há como os subúrbios para uma boa fresca! – comentar a Esquerda com Seu Jerome, dar dois dedos de prosa com a comadre, perguntar pela entrevadinha, sempre da mesma maneira: e como vai a titia? – porque era ela uma tia velhinha e paralítica, que Seu Jerome abrigava. Mas se ele era bom, era irredutível a respeito dos políticos, “todos eles uns grandessíssimos piratas”.
– Que desgraçado, não é assim? – comentava Graciliano.
Virava a folha, depois de nos ter consultado os olhos e obtido concordância plena: Vejam isto agora:
Este mundo é uma bola, D. Veva. Este mundo é um circo... D. Veva, esfolando os cotovelos na janela, não ouviu bem (a voz do Seu Azevedo era rouca) e ficou com vergonha de perguntar, sem saber se o mundo era um circo ou se era um círculo. Então mudou de assunto perguntando se D. Maria andava melhor do reumatismo com a receita espírita. Seu Azevedo tinha aquele defeito – gostava de falar em doenças. Pegou no reumatismo da mulher – até agora nada de melhoras, comadre, enfim... – e não parou mais.
Sublinhava bem “pegou no reumatismo da mulher”. Os ouvintes já conhecíamos o conto, mas nenhum se cansava de ouvir. E a figura de Seu Azevedo, e a figura do criador cresciam a nossos olhos. E eu lembrava aquele fim patético, da mais pungente dramaticidade do cotidiano:
Ele se foi, é o nosso destino, comadre, uma vontade suprema a que nada podemos opor, e como era bom com Deus está. Mas não a deixou sozinha, pense bem. E os filhinhos? E... D. Veva espantou os olhos gastos para Seu Azevedo, que emudeceu, e, quando pensou nos seus cinco filhos, aí é que ela viu mesmo que estava sozinha e de mãos para o céu começou a gritar.
A todos nós – em grau bem menor ao mestre de São Bernardo, espírito mais positivo – tocava-nos também, fortemente, o “Em Maio”: sucessão de instantâneos líricos; um “prosoema” (para usar o neologismo com que Osvaldino Marques batiza certas páginas de Guimarães Rosa), com aquele fim, humano e triste na placidez do seu ritmo:
Quando entrar em casa, sentirei a mesma quietude. Minha mãe cosendo, sentada no seu banquinho ao fundo da sala, minha irmã, esquecidas as mãos no teclado amarelecido, num fim de sonata, sonhando – bem o sei!... – com alguém que não está. O retrato do amigo perdido pende da parede, desolado, sozinho. A lâmpada que ilumina o Senhor derrama uma luz tranqüila, que vai suavemente esmaecer os ângulos dos móveis antigos. Minha mãe levantará a cabeça quando eu bater à porta: Boa noite! Responderei: Boa noite! Minha irmã acordará. Perguntarão se estou cansado, se eu passeei muito, se eu quero comer alguma coisa. Nem sei o que responderei. Deveria haver lágrimas na minha voz. Escondo-as. Não se deve turvar uma felicidade e eu sinto que existe uma felicidade inefável dentro daquelas quatro paredes, mas eu sinto também, angustiosamente, que dentro de tanta paz eu sou um homem sem motivo e lá fora, na vida, um tímido que se aterra.
Nada faltava ao escritor, escrevia João Ribeiro, para ser completo e perfeito, ou (o que está mais próximo da verdade) lhe faltaria muito pouco. O livro, a seu sentir, “sem ênfase, sem frases inúteis e pernósticas”, estava entre os melhores do gênero. E Tristão de Ataíde, para quem aqueles contos algo exprimiam “de muito pessoal e de bastante superior ao nível médio de nossa produção literária”, aproximava o autor – embora considerando-o “muito mais romancista que contista” – dos dois contistas que a geração anterior, a dele, revelara: Antônio de Alcântara Machado e Ribeiro Couto.
Aproximava, sem , contudo, expressamente falar de influência, enquanto João Ribeiro identificava a de Machado de Assis, pela sobriedade, singeleza e graça do estilo.
Havia, sim, esta influência, aqui e ali a repontar na construção de uma frase, no fino do humor, mas visibilíssima, palpabilíssima, no estilo e na técnica da “História de Abelha” – no jeito de mitigar ou corrigir a afirmação com o sinuoso da dúvida, ou anulá-la com a negação, de enredar-se num indeciso ir-e-vir, na volúpia de circunloquiar, de abandonar-se um pouco ao fluir lúdico, posto que vigilante, das palavras, e até no gosto de trazer à luz suas pontinhas de erudição:
“Parecia uma abelha.” – assim começa.
Era possível que não fosse, tão complicada e vária é a bicharada do Senhor. A cor, na verdade, não tinha nenhuma semelhança com a das abelhas mais originais que conhecera, um castanho-escuro, carregado, esclarecendo um pouco para o ferrão amarelo, de tom vivo e agressivo. E as listras? Sim, não esqueçamos as listras pretas, grossas,pelo corpo como anéis. Enfim, não é coisa incrível haver abelhas extravagantes. Esta bem o poderia ser. Mas o tamanho? Convenhamos que era do tamanho de um dedo, não digo que um grande dedo rude de trabalhador, mas um dedo pequenino, gentil, digamos logo, um dedo de mulher, o que não deixa de ser porte de sobra para uma abelha. Nada disso importa. Haverá quem negue neste mundo a existência de abelhas descomunais? As da Birmânia, dizem os viajantes que por lá exoticamente andaram, são monstruosas. E não seria porventura esta uma abelha da Birmânia (possivelmente até da Transcaucásia, onde as há também, já ouvi falar), uma abelha-monstro, rara, excepcional, que só aparece por vezes?
Uma abelha, pois, o meu bicho, o dia era domingo, pela manhã,pouco passava das nove horas e eu ia para o banho de mar. [...]
A irmã era loura e estava de bege. A moça era morena. Talvez fosse uma amiguinha. Não – era irmã sim. Vária e complicada é a gente do Senhor.
E assim termina, ainda bem machadianamente, a graciosa narrativa: “A abelha, nunca mais a vi. Era grande, castanha, listrada de preto, notável; talvez nem fosse abelha, um marimbondo, quem sabe?”
Uma das histórias do volume traz o mesmo título de outra de Machado, por sinal, como vimos, figurante entre as prediletas de Rebelo: “Uma Senhora”. De Machado de Assis, sabeis, é o conto “O Espelho”; em Oscarina aparece “Espelho”, apenas sem o artigo.
Com respeito a influências em Marques Rebelo (reveladas não apenas em Oscarina), insistentemente se costuma somar à de Machado de Assis as de Manuel Antônio e Lima Barreto. Repete-se que é ele herdeiro e continuador da interrompida tradição desses três cariocas ilustres. Isto se repete com esquecimento de uma verdade flagrante, que sempre reconheci, e com agrado vejo reconhecida por Manuel Bandeira: o paulista Ribeiro Couto, arraigadamente carioca em muitos dos seus contos de A Casa do Gato Cinzento, em todos os de O Crime do Estudante Batista, e nas crônicas todas de A Cidade do Vício e da Graça (para só falar de livros seus saídos antes de surgir o nosso autor), esse paulista não há dúvida que exerceu influxo na arte refinada e sutil de Marques Rebelo.
Longo e ocioso seria falar de outros influenciadores: já se viu a complexa vastidão de suas leituras. Assim como assim, mencionem-se dois mestres do conto estático, do conto-crônica, presenças também não infreqüentes na tessitura das narrativas curtas desse outro mestre do conto estático, a quem ora estou saudando: Anton Tchekhov e Katherine Mansfield, a quem, registre-se de passagem, Machado de Assis, não menor que eles, grande entre os maiores do mundo, no gênero, se antecipou, com “A Missa do Galo” – para citar um só exemplo.
Dois anos depois de seu livro de estréia lançaria o escritor Três Caminhos: uma novela e dois contos, tudo excelente; destes, um, o “Circo de Coelhinhos”, página de certeira psicologia infantil, terna e desenganada ao mesmo tempo, é obra-prima, o que importa dizer: uma das obras-primas do conto brasileiro.
Aqui, mais do que na obra anterior, porque de ponta a ponta, insinuase a presença do menino Eddy, a fornecer à sua criatura uma constelação de reminiscências de infância.
As qualidades de observação exterior e psicológica, de estilo, de fatura, mantêm aproximadamente o mesmo nível, já elevado, de Oscarina; porém a obra, mais reduzida, é, talvez em parte por isso, muito mais homogênea.
Mais dois anos passam – e eis o nosso autor a ganhar, em chave com três outros, o Grande Prêmio de Romance “Machado de Assis”, em concurso promovido pela Companhia Editora Nacional. Marafa – é o romance laureado.
Pouco me agradara esse livro, ao lê-lo na primeira edição. E era concorde com a minha a opinião do autor: o livro, pelo que se vê nos Escritores Contemporâneos, de Renard Pérez, nunca o satisfez de todo. Mas a releitura, agora feita, na terceira e última edição (refundida, como já o fora a anterior), alterou-me o julgamento.
Progresso revela ele – nos meios expressivos e na fabulação. O diálogo, já dantes excelente, atinge, aqui, acabada mestria. De tão vivo, de tão ágil, recorda a mobilidade da conversa do autor, e a sua própria (sobretudo a antiga) mobilidade física. Falas contrapõem-se a falas, exatas, enxutas, elétricas por vezes, com a vivacidade de um pingue-pongue de jogadores consumados – flagrantes perfeitos de estados de alma; ou derramadamente longas, como as de Baltasar, aquele funcionário público algo incendiário, apelidado “Carne em Açougue” por não saber conversar sem pendurar-se no interlocutor –, mas nem por isso menos expressivamente retratadoras. As almas apresentam-se quase por si sós, em discurso direto, ao longo da narração – processo bem do autor –, e algumas palavras, por vezes uma ou duas, sempre oportunas, com que o ficcionista contraponteia os diálogos –, neles interpoladas, ou acrescentadas a eles, não raro sem a gráfica e esperável solução de continuidade, valem mais que alentadas descrições, conferem prodigiosa vida e verossimilhança à trama da narração, sugerindo intensamente o identificar-se do criador com os problemas e paixões das suas criaturas.
Um vocabulário ricamente matizado e preciso, em que os termos, locuções, ditos e provérbios cultos, usuais ou raros, alternam com os populares, os familiares, os giriais, ou de jargão, os chulos, ou, até, com palavras técnicas, neste quadro da vida carioca, em cujo primeiro plano se patenteia a miséria dos nossos bas-fonds, e a que não faltam outros aspectos: um pouco da vida esnobemente mundana, e o carnaval – o das ruas e o das sociedades carnavalescas – e os esportes o futebol (no qual, Senhor Marques Rebelo, notariamente sois doutor) e o boxe, de que também revelais conhecimento seguro, e algo alarmante.
Só um tipo, de toda a galeria de Marafa, me parece lá o seu tanto artificial: é o “jovem escritor”, muito dado a esnobar, a lançar conceitos, a rir-se da tolice alheia. Artificial, sim: não, está claro, porque assim proceda; mas pela maneira duvidosamente artística por que aparece retratado.
Contudo, a obra é significativa, de forte e generoso teor humano. E, nela, não vos nutris – pelo menos, quase nunca Marques Rebelo se nutre – das vivências de Eddy Dias da Cruz; e sim das próprias, e espantosamente numerosas.
E daqui por diante passareis a desprender-vos mais – nunca, porém, o fareis de todo – do cordão umbilical que a ele vos prende.
Em Estela me Abriu a Porta a vossa ficção se mostra cada vez mais sintética, mais despojada, mais cerebral, no estilo e na estrutura; nem é sem motivo que adotais por epígrafe a palavra de Jacques Chardonne: “O tempo conserva de preferência aquilo que é um pouco seco.”
E neste ponto abrirei um parêntese para lembrar o vosso gosto das epígrafes. Que felicidade no escolhê-las! Vimos a de Chardonne, excelente; vejamos outras.
Em A Estrela Sobe, duas. A primeira, tirada à Bahia: “E o Senhor me disse: ‘Toma um livro grande, e escreve nele em estilo de homem’.” (Isaías, 8-1.) A Os Lusíadas pertence a segunda: “Oh! grandes e gravíssimos perigos!/ Ó caminho da vida, nunca certo!”
Nas Cenas da Vida Brasileira a Bíblia retoma. Agora, é o Livro de Jó: “E disse o Senhor a Satanás: ‘De onde vens tu?’ Ele respondeu: ‘Girei a Terra, e andei-a toda.’”
“Boa romaria faz / quem em casa fica em paz” – a este provérbio recorre pitorescamente o autor em outro livro de viagens, o Correio Europeu.
George Moore, Memórias da Minha Vida Morta, aparece nos dois tomos publicados de O Espelho Partido: “A memória de todo homem é um espelho de mulheres mortas.”
Mas retomemos o fio. De contos (e semicontos e impressões) se compõe Estela me Abriu a Porta. Em um deles, de primeira ordem, “Os Caprichosos da Tijuca”, notabilíssima é a fluidez da narrativa, onde o diálogo atinge perfeição dificilmente igualável. Dos melhores contos do autor. E o “Labirinto” será, no gênero, a obra-prima de suas obras-primas. História estranha, desconcertantemente patética, de uma pobre, apagada vida — uma das tantas vidas pobres e apagadas que povoam a ficção rebeliana — atormentada por males vários, de dinheiro e de saúde, e que termina dispondo-se a consultar um oculista, a quem volta, afinal, por não haver obtido melhora:
– Estou na mesma, doutor! O senhor disse que eu melhoraria
com as lentes novas. Nada!...
O oculista, que estava com o rosto sombrio, não respondeu. Foi consultar primeiro a ficha do cliente. A enfermeira trouxe o papelão azul. Ele leu e releu, balançou a cabeça:
– Custa um pouco, meu amigo. O senhor durante quatro anos não mudou de lentes. Vai pouco a pouco. Calma. Duram muito estas perturbações. Às vezes vão a meses. São perturbações do labirinto.
Seu João riu amargo: – Num labirinto vivo eu, doutor!
O médico abaixou os olhos pequenos que (João reparou bem) pareciam ter chorado:
– Também eu, meu amigo. Também eu. Todos nós andamos num labirinto.
E sentou-se desoladoramente na cadeira de ferro, pintada de branco, com a ficha na mão.
O virtuosismo de técnica e de estilo culmina neste volume, com que o autor proclama haver encerrado sua carreira de contista. Jogos e sutilezas de forma e fantasia alimentam, aqui e ali, a composição dessas historietas, uma delas, muito boa, impregnada daquele tom e jeito machadiano: “Episódio Coreográfico”. É bem de notar, por exemplo, no fim, o dedo do Mefistófeles do Cosme Velho:
Durante uma hora, apesar dos meus bons esforços em contrário ela dançou o que muito bem entendeu como sendo one-step. E se houve um aluno, este fui eu. Aprendi que caridade e cerveja eliminam o ridículo, o que é moralidade e alta moralidade.
A alguém que desejou, na Europa, saber que livro gostaríeis de ter escrito, respondestes, sem exagero de modéstia: – “Já me perguntaram isso uma vez, na minha terra, e dou a mesma resposta: A Estrela Sobe.”
E aqui chegamos ao vosso altíssimo romance. Haveis de recordar-vos da epígrafe bíblica –“Toma um livro grande, e nele escreve em estilo de homem”. Certo, por estilo de homem entendeis a forma lisa, desadornada, nua, que já vinha de Estela me Abriu a Porta. Simples, sem descer à iliterária condição de simplória. Há muito quem, confundindo simplório com simples, julgue aproximar-se, amontoando períodos inocuamente banais, da simplicidadetão complexa de Machado de Assis. Claro, nem de longe é esta a vossa maneira de ser simples. Revelais, neste livro, mais que nos anteriores, aquilo a que eu chamaria um estilo condicionado: perfeitamente condicionado às personagens e às situações. Movido do amor às suas criaturas, o criador mistura-se e identifica-se com elas, com os seus dramas, as suas perplexidades, os seus sonhos e desilusões, inquietações e agonias, a ponto de fundir com os delas os seus meios expressivos. Um exemplo típico? O período inicial do romance:“A primeira filha de D. Manuela morreu aos quatro meses, duma gastroenterite, que zombou tanto da homeopatia e alopatia dos médicos como do empirismo solícito das vizinhas.”
Traço dessa integração na fala de vossa gente é o constante oscilar entre o uso da paragrafação nos diálogos e a ausência deste uso, processo aqui particularmente notável.
Outro recurso, de assinalada economia expressiva: o hábito, que ora começais a manifestar, de, aberto o parágrafo para registro da fala de um personagem, escrever entre parênteses, antes dela, das palavras ditas, as palavras pensadas, a fala interior. Processo de seguro efeito: dispensa o abuso dos verbos dicendi, sozinhos ou seguidos de complemento: “pensou”, “disse consigo mesmo” (ou “com os seus botões”); e funde em um mesmo corpo estilístico o pensamento oculto e o enunciado – o mentado e o expresso.
Oh, as torturas que essa obra-mestra vos custou! Delas ficaram vestígios muitos no primeiro tomo de O Espelho Partido:
É mister relê-la, sofrer em cima de cada linha, mondar, enxertar, enxugar os transbordamentos, polir, repolir, tarefa severa e atenta que tanto pode durar um mês quanto um ano. Vou procurar ser rápido. Cada livro que faço vai me dando mais trabalho.
E, quando pretendíeis levá-la ao editor, ficastes, insatisfeito, a catar “miudezas, vírgulas mal colocadas, reticências tolas, esdruxularias – piolhos de estilo”.“Piolhos de estilo” de que muitos primários zombam, mas que afligiam artistas da categoria de Baudelaire e de Graciliano Ramos. E como nestas páginas pusestes a vossa alma! “Deixo A Estrela” –escreveis antes do período-remate de O Trapicheiro –
como se deixasse um pedaço de mim, pedaço doloroso, arrancado a duras penas, pingando sangue, mais lágrimas que sangue, pranto da indecisões e de impotências, retrato móvel de um ser que é um pouco de todos nós. Deixo-a comovido, sabendo que a perdi, que dela me separava para sempre, como se entregasse a filha amada a um desconhecido.
Por isso tanto vos doeu o desinteresse (que penso exagerais um pouco) por esta vossa obra. Para aceitá-lo – anotareis em A Mudança – era necessário resignação, “a resignação orgulhosa dos mortos”. Aquela desejada contenção de estilo, o propósito de sobriedade, não devora, porém, o lirismo subjacente no poeta:
Foram subindo pela estrada, muito limpa, fresca, quase fria pela sombra das grandes árvores de troncos limosos Enlaçaram-se. Foram andando. Um sentimento de mútua e absoluta compreensão tornava inútil qualquer palavra. Há parasitas, há cipós, avencas, samambaias. E as rolinhas ciscavam na areia vermelha do caminho. E da espessura do mato vinham silvos. Silvos, pios, estalidos. E veio um rumor de fio d’água correndo perto. Veio um bater rápido de asas, um cheiro de flor humilde, um trinado queixoso. E as sombras se adensam.
E o livro termina assim – pungente, de um pungente marcado de preocupação metafísica:
...“tribulação e trevas, desmaio e angústia, e obscuridade”, aqui termino a história de Leniza. Não a abandonei, mas como romancista, perdi-a. Fico, porém, quantas vezes, pensando nessa pobre alma tão fraca e miserável quanto a minha. Tremo: Que será dela, no inevitável balanço da vida, se não descer do Céu uma luz que ilumine o outro lado das suas vaidades?
Álvaro Lins, velho admirador do romance, sabe esse final de cor, e comove-se profundamente com ele. E negando, ao criticá-lo, que vos falte “um maior sentimento d’ humanidade”, ressalta que exprimis “o sarcasmo ao lado da piedade, a ironia ao lado da ternura e simpatia, o desdém ao lado da solidariedade”; e recorda, a esse propósito, um conto pirandelliano, onde o autor fala do seu costume de, todos os domingos, dar audiência aos personagens seus. Depois de ouvir os dramas de cada um, acrescenta Pirandello:
Então eu, que de fato tenho um bom coração, me compadeço deles. Ainda que talvez a compaixão não se ajuste a certas desventurassem a condição de se poder rir a seu respeito. Por isso, os personagens das minhas histórias vão espalhando pelo mundo que sou um escritor cruel e desapiedado.
E reclama “um crítico de boa vontade que fizesse ver quanta compaixão se encontra debaixo do meu riso”.
Escritor viageiro, sois dos mais originais. Tedioso vos parece, decerto, repetir toda uma série de manifestações de êxtase basbaque facilmente copiáveis de outras obras, e até de guias. Não o ignorais: nada mais simples do que fazer Literatura de viagens sem conhecer os lugares descritos. Tem graça Albino Forjaz de Sampaio ao contar de um homem que sempre desejara correr mundo e, a dada altura da vida, mutilado creio que das duas pernas, renunciara por inteiro ao velho sonho e, intensificando as leituras de viajantes, veio a revelar-se fecundo autor de obras do gênero. Vós, muito ao contrário, percorreis “terras de vossa terra” e países alheios, vagamundeando ao longo de “Oropa, França e Bahia”, e observais e registrais aquilo que os outros não viram, por não quererem ou não saberem ver. Não aprofundais: limitais-vos à condição de impressionista. Um impressionista bem fiel ao que sois, de raiz: sóbrio, seco, sarcástico, e de extraordinário humor, e, alguma vez, de forte lirismo; e de concisão não raro lapidar, a ponto de concentrardes as impressões num período de duas linhas, ou de uma, ou até de duas ou três palavras. Ocorre, nalguns casos, ser a impressão tão desnorteante que diríamos andar naquilo o gosto de épater le bourgeois. Será realmente assim? Receio meterme, aprofundando este ponto, na camisa de onze varas de um grave problema: a sinceridade do artista. Sinceridade do artista versus sinceridade do homem. Que cipoal! Vacilo em trazer à baila o verso, tão realejado, de Fernando Pessoa – “O poeta é um fingidor”; rendo-me, porém, à necessidade de o fazer. Nem é descabido aplicá-lo a vós, porquanto, já se viu e verá, sois um poeta: poeta no sentido em que no geral se toma esta palavra, e poeta porque criador – acepção primeira do termo: criador, autor, aquele que faz. Mas, ainda que aceitando a evolução semântica do vocábulo, me afoitaria a modificar o verso de Pessoa, dando-lhe esta forma: O artista é um fingidor. E em particular o artista de ficção; até porque, etimologicamente, ficção prende-se a fingir, donde a felicidade do título do livro de João Pacheco: O Mundo que José Lins do Rego Fingiu. Faltaria deslindar outra face da questão: refiro-me, agora, aos vossos livros de viagens, e não aos vossos contos ou romances. Mas, Senhor Marques Rebelo, sucede que por vossos livros perpassa, de ponta a ponta, o ficcionista – exceto aquele em que tratais de um escritor de ficção: Vida e Obra de Manuel Antônio de Almeida, bem esteado em árduas pesquisas, rigidamente objetivo, preso invariavelmente ao propósito de informar e esclarecer. Tudo o mais – Romance, Novela, Conto, Teatro, Crônicas, viagens, Literatura infantil – tudo ficção, no todo, ou em parte.
Vamos aos textos. Andemos, em vossa companhia, por terras do Brasil: Cenas da Vida Brasileira.
Estamos em Minas – Montes Claros:
A exclamação é de Newton Prates:
– Êta, velho besta!
O velho besta tem sessenta anos curtidos ao sol de Montes Claros, da qual nunca saiu Com cinco contos no bolso, arrumou um passe na Prefeitura e bateu para o Rio de Janeiro. Demorou-se oito dias.
– Que tal? perguntaram quando voltou. – Multo decadente!...
Passemos a Lontras:
Conversinha:
– Morreu Zé Fagundes.
– Quem matou?
E a Vila Brasília:
Conversinha:
– Que tal a estrada?
– Boa para avião.
Cataguases, agora:
A família Peixoto [Francisco Inácio Peixoto] se mostra envergonhadíssima do pobre almoço que pôde oferecer ao visitante ilustre. O cardápio compunha-se dos seguintes pratos: sopa de ervilhas, peixe assado, empadas e pastéis, galinha assada, salada de alface e agrião, carne recheada, lombo de porco com tutu de feijão, arroz de forno, linguiça e farofa de torresmo, couve à mineira, angu à mineira, rosbife. Como sobremesa havia: doce de côco, doce de leite, arroz-doce, gelatina, goiabada de cascão, melado e várias espécies de queijo. Como bebidas: vinhos portugueses, brancos e tintos, champanha francesa, águas minerais e café.
A família estava envergonhadíssima!
Por contraste, uma imagem de sabor poético:
Agora já estou longe da ponte. E as luzes da cidade, nas margens, são como círios que ladeassem um esquife.
Lá vem Itajubá:
O homem nunca tinha visto o mar. Um dia, viu-o.
– Então?
– Muito chique, muito distinto...
Em Pedras Brancas, é um problema social que o toca: Se vós soubésseis quanto ganha uma professora pública, vossas faces cobrir-se-iam de vergonha.
Passemos adiante:
A casa mais colonial de Sabará foi construída no ano passado.
Em Belo Horizonte:
Nos torneios de bilhar, os resultados são sempre hierárquicos.Primeiro lugar – o chefe de polícia; segundo lugar – o chefe de gabinete;terceiro lugar (empatados) – os quatro delegados auxiliares; e assim por diante.
Novo traço lírico:
Ó Primavera! Bailados das crianças na Escola Normal na entrada da Primavera! Ó corações pequeninos que um dia irão amar e sofrer! Ó graça da minha filha no meio das bailarinas que um dia irão chorar, chorar!
Barbacena:
Dizia-me o homem:
– Eu queria era ver inimigos do divórcio casados com D. Zizi!
D. Zizi era a esposa do homem.
Vamos ao Estado do Rio:
Miguel Pereira – 1941
Balancete do festival em benefício da Caixa Escolar:
Renda 110$000
Despesas com pães e mortadela 105$000
Saldo 5$000”
Correias – 1942.
Pensão exclusivamente familiar para convalescentes em geral,diz a tabuleta. Na varanda, de pijama, estão oito convalescentes em geral de tuberculose.
E, agora,
Rio Branco – 1949
Eis um lugar em que ninguém pode atirar pedras no telhado alheio. Não há pedras.
Depois, Belém:
A luz é fraca apesar do extraordinário esforço dos vaga-lumes. E depois de quase um mês de planície amazônica, como sentisse a necessidade premente de ver jacarés e sucuris, fui fazer uma visita ao Museu Goeldi.
Passando de um extremo a outro: Florianópolis:
Foi a única queixa apresentada à policia no último e entusiasmado carnaval – o homem estava muito bem no cordão pulando e cantando quando roubaram-lhe a dentadura.
Abramos o Correio Europeu:
Não me venham dizer que o inglês não é sagaz. Depois de dez dias de recusas sistemáticas, o garçom do pequeno-almoço compreendeu que eu não gostava de aveia, nem de leite.
Guinéu é uma libra com penacho. Vale vinte e um xelins.
Falta-me tempo para dar aqui o excelente diálogo com Voltaire, a que antes me referi, e onde o escritor francês faz terrível crítica à ONU. Vejamos a síntese de suas impressões a respeito da França:
– E como estamos quase na fronteira, diga-me, amigo, o que pensa da França?
– Penso que tem os melhores perfumes do mundo, mas não gosto de perfume engarrafado. Penso que sua cozinha é requintada e ilimitada, mas eu prefiro comidas simples como ovo estalado. Penso que guarda o segredo dos vinhos fabulosos, mas o que eu aprecio mesmo é água. Água somente. Penso que tem costureiros famosos, mas não sou otário. Penso que é ótimo o seu Teatro, mas prefiro o inglês.Penso que são lindas e picantes as canções bulevardianas, mas não há nada no mundo igual ao jazz! Penso que sua vida mundana é um paraíso de elegância, mas meus hábitos são menos fesandês. Penso que sua vida espiritual é intensíssima, mas me acomodo melhor com o asseio corporal. Penso que tem mulheres lindíssimas, mas eis um assunto sobre o qual não admito nenhuma preferência de origem. Penso que seu passado guerreiro é uma apoteose, mas eu sou inimigo dos canhões. Penso que Renard é minha bússola, mas que novos ventos perturbam a minha rota. Penso muita coisa, enfim, mas são segredos que irão comigo para o túmulo.
São Marinho
Realmente existe.
Na Itália:
Pisa
É tudo multo bonito, mas deviam consertar a torre.
Brescia
É bom conhecer, para quando passar por Barra do Piraí poder tirar o chapéu.
Para acabar com tal praga [a das bicicletas em Genebra], lembrei propor à municipalidade a vinda de uns oito lotações cariocas, que numa semana dariam cabo duns oito mil ciclistas e restabeleceriam o prestígio do chofer.
Em Lisboa:
E quando o avião já deixava para longe as curvas serenas do velho rio, peguei um jornal (visado pela censura) e leio o anúncio fúnebre da Sra. Maria Duarte das Fezes Ferreira, que Deus misericordioso lhe reserve melhor nome no reino dos céus.
Em Paris, outra vez:
Conceituosa conversa, numa recepção de embaixada, com uma substância que até agora não sei bem se era mulher ou omelete.
Passemos a folhear a Cortina de Ferro:
Depois de assistir a um balé, na Rússia, à qual, isentamente, ao longo do livro, faz elogios e restrições:
– Gostou? – perguntou-me à saída o simpático Capetovich.
– Não – respondi-lhe com sinceridade.
– Mas nós temos o melhor bailado do mundo!
– Não, Capetovich, vocês têm o melhor bailado russo do mundo, o que é muito diferente.
Satanov fora veraz – o Hotel Nacional [de Moscou] não era o melhor. Tinha esse ar antigo mais antigo que o antigo.
Ao passar por Austerlitz, perguntaram-lhe:
– “Não quer dar uma vista?” E, antes de responder a quem o convida, informa ao leitor: “Eu tenho tão pouco entusiasmo por Napoleão Bonaparte quanto pelo Sr. Napoleão de Alencastro.”
Na Cortina de Ferro, o ficcionista não se contém, e inventa três guias de nomes diabólicos – Demon Satanov, Belzebuv Capetovich e Lucifer Ilitch Diabonov. Os dois primeiros estouram – um quando ouve do visitante um “Cruz credo!”, e outro quando pega num papelucho onde estava uma oração contra os demônios.
Já antecipei comentários à vossa biografia de Manuel Antônio de Almeida, em segunda edição, melhorada. Agora, quero apenas assinalar que nem nessa obra, de pesquisa, deixais de lado a irreverência:
Por diletantismo ou por influência de Manuel Araujo Porto Alegre, que era poeta e pintor, mau poeta e mau pintor, estudou Desenho na Academia de Belas-Artes.
Suspiros Poéticos e Saudades que, entre parênteses, não deixa saudades a ninguém.
Tivemos um punhado de escritores que cultivaram, como José de Alencar e Gonçalves Dias, um indianismo de ópera, aliado a um sentimentalismo convencional e enfeitado, que alguns críticos teimam em considerar como manifestação espontânea da alma brasileira.
Não deixarei de mencionar vossos livros para crianças, em colaboração com Arnaldo Tabaiá. Um deles é Pequena História de Amor, na qual me impressiona vivo a cena em que a Coruja tira a luz dos olhos da Cambaxirra, a mulher de João-de-Barro, em troca de ervas para cura deste, e também o final, quando o marido nota que está cega a companheira:
– Por mim você deu toda a luz dos seus olhos, meu anjo! – exclama o João-de-Barro.
Mas agora ela ria, beijando-o muito, abraçando-o com todo o ardor:
– Não, a verdadeira luz dos meus olhos sempre foi você, meu querido!
Não consegui ver os outros dois: A Casa das Três Rolinhas e Aventuras de Barrigudinho.
Escrevestes, também, A B C de João e Maria e Tabuada de João e Maria, ilustrados por Santa Rosa, e, em colaboração com Herberto Sales e com ilustrações daquele artista, a Cartilha O Cruzeiro.
É cedo, Senhor Marques Rebelo, para falar com inteireza e precisão sobre a mais importante das vossas obras: O Espelho Partido. Dela, que abrangerá, uma vez completa, nada menos de sete tomos, até agora só dois vieram a lume: O Trapicheiro e A Mudança. Duas coleções, somente, de estilhaços desse monumental espelho. As imagens por eles refletidas, embora extraordinariamente numerosas, deixam-nos à espera, para julgamento cabal, das imagens restantes, complementares; e, sobretudo, muitas e muitas outras surgirão, inteiramente novas, com o decorrer do tempo.
Mesmo assim, por enquanto, nesta ainda limitada parte de um todo já se pode entrever o grandioso do conjunto; já é possível ressaltar o imenso poder de observação, o humor, a sátira, o desencanto, a ironia e piedade, o gosto da reflexão madura, e, talvez acima de tudo, a excelência do estilo, apuradamente requintado, amorosa e aturadamente enriquecido, torturadamentetrabalhado.
De Sá de Miranda se conta que trabalhava as suas peças até quatorze vezes, deleitando-se, após o primeiro jato, em “lamber a cria”. De lamber a cria também gostais: já o vimos, antes, quando tratei de A Estrela Sobe. Agora, a tortura parece bem maior. E sucedem-se as confissões a esse respeito.
Uma delas:
Escrever é vencer dificuldades... A mão é fraca, corta, substitui, modifica, pára a cada linha, angustiosamente, o talhe variando como um desafio aos grafólogos. A cinza do cigarro estimulante tomba sobre o papel sem pauta. Um ventinho tépido chega da noite avançada. Baratas aparecem por trás dos dicionários.
O martírio atinge o auge:
“Três horas para escrever uma linha. Acabar não escrevendo nada.”
Que bem conheceis essa peleja com as palavras! Acodem-me os versos de Carlos Drummond de Andrade:
Lutar com palavras
É a luta mais vã.
Entanto lutamos
Mal rompe a manhã
Assombroso o valor humano e documental desta vossa grande obra:pregões, versos populares, lendas e abusões, o futebol; o carnaval, com as suascantigas, os seus blocos, as suas escolas de samba; poesias de Natal dos lixeiros; reminiscências de infância; arbitrariedades policiais; doenças, dores-decotovelo, confissões íntimas, apertos financeiros, contas domésticas mensais; Literatura, Política; tantos aspectos de um Rio já mais antigo, como, por exemplo, a escola com a carta de á-bê-cê.
O Rio... sois o grande cronista desta vossa cidade, de que a princípio retratastes a subpequena e a pequena burguesia, e de que agora estais pintando a classe média – intelectuais pobres, artistas, profissionais. Vossas influências? O Rio de Janeiro será talvez a maior de todas; entre outros tantos, creio ser ele por excelência o vosso autor de cabeceira.
A este Espelho Partido prefiro chamar, em vez de romance, diário romanceado. O que em nada lhe diminui o substancial, embora conte eu com a vossa brilhante defesa:
Oh, isto não é um romance! – dirão alguns técnicos, o que não tem importância e não constitui verdade. Tudo pode ser romance. Mas há sujeitos que se queixam: – Isto não é vida! – E estão vivendo.
Podereis acrescentar, imagino, que “não existe fórmula para o romance; se tomarmos um grande romance do século XVIII e um grande romance deste século, quase nada têm de comum, como se fossem coisas de gênero diverso.”
Em certo trecho, lançais um conceito artístico de viva importância, exprimindo a vossa opinião em face do binômio invenção-observação do real: Inventar, não!” – exclamais. – “O ideal é obter-se um máximo de realidade num máximo de adaptação.”
E confessais:
“Atraem-me vertiginosamente as minudências, os mofinos recantos das almas, os tiques e gestos microscópicos, perturbam-me doentemente os sutis achados lingüísticos.”
E, aqui e ali, a sátira, o senso do humor. Humorista, não invejais e, portanto, não escondeis, o humor alheio:
“O Estado Novo é o estado a que chegamos.” (Barão de Itararé), sem, no entanto, perder a oportunidade de exibir o vosso: “Entre as duas o coração não balança.”
“Seu Valença é quem sabia levar a vida. Primeiro o resto, depois o trabalho.”
“João Herculano – mais um milímetro e seria uma caricatura.”
Alguém vos diz que, tendo gostado muito de A Estrela, pensa haverdes estragado tudo com as dez linhas finais (“tribulação e trevas...”) vos pergunta: “Para que entrar no metafísico, você que nunca foi disso?” E respondeis (“fiel ao princípio de que livro não é assunto para se defender, quando nosso”):“Saiu sem querer... e agora, fica.”
Teria realmente saído sem que o desejásseis?
Em torno dos tipos básicos, fundamentais, agita-se, em vossa obra, larga legião de vidas por assim dizer ancilares – indispensáveis à ficção, porque tudo é vida.
Sois um homem do vosso tempo. A problemática dos dias atuais palpita singularmente nesta vossa obra, sem estar ausente nas anteriores. Toda a inquietação, as ânsias todas, as dúvidas e perplexidades, e atormentados sonhos, e duras injustiças, os roteiros cruzados da vida moderna, do mundo desesperado de hoje – tudo se reflete, a fremir, neste amplo calidoscópio, neste painel imenso do Espelho Partido – partido, como partidos são os nossos destinos.
Eduardo, quero crer, é a personagem mais rica, mais significativa, mais numerosa, do afresco enorme que estais a elaborar. E Eduardo sois vós. Criatura de Eddy Dias da Cruz, sois autocriador: criastes-vos a vós mesmo, juntamente com a multidão de seres que trouxestes ao mundo – esse poderoso e misterioso cosmo da ficção.
Assim, pois, Senhor Presidente, senhores acadêmicos, minhas senhoras e meus senhores, esta Casa ora recebe, com orgulho, as três figuras – Eddy Dias da Cruz, Marques Rebelo escritor, Marques Rebelo personagem: como no mistério da Santíssima Trindade – só por comparação, é certo –, três pessoas distintas e um (e grande) escritor verdadeiro.
28/5/1965