Bush, no discurso de posse, levou à abstração máxima a referência à liberdade, como convém à fala da hegemonia, legitimamente consagrada, afinal, pelo aluvião eleitoral. Não fez por menos, no direito à arrogância tranqüila que lhe dá a instituição democrática. O recorte do perfil na escadaria do Capitólio era já de pretendente aos talhes na pedra do Monte Rushmore, dos pais da república, como conviria ao presidente da nação chegada ao extremo de seu fastígio. É um virar natural de página, quando não há mais que pedir desculpas pelo erro confesso da busca do arsenal nuclear de Saddam, nem dar novas justificações ao fato consumado da guerra permanente para o extermínio do terrorismo.
O que não é refrão nem bordão, na fala do trono, que se repete em todo discurso de posse, consistiu no novo teor dado à cruzada universal, irrompida pela agressão do Al-Qaeda. Tremam os ditadores, pois que os Estados Unidos imporão - em todo o sentido bélico da palavra - a democracia como o regime exigido pela liberdade, como a pense ou a queira um poder hegemônico. Não se invoque a ditadura ou a opressão na Arábia Saudita ou no Paquistão, mas se as combata, no Irã ou na Venezuela, não obstante a constância de suas eleições.
O 11 de setembro é referido uma só vez como um dia de fogo. Mas para partir para um desígnio definitivamente atemporal da presença americana no mundo. Sai-se da mera exigência defensiva, diante do perigo de Bin Laden para, como manda a hegemonia, garantir a vigência dos regimes políticos que só se reconhecerão na forma de simulacros do sistema de Washington. Nenhuma referência, no discurso, às guerras do Afeganistão ou do Iraque, nem pedido de novos sacrifícios aos cidadãos, pois que passou à rotina a empreitada militar como nova condição de vida e supremacia da nação imensa. Nenhuma promessa de volta das tropas mas, sim, uma habituação do país à nova era que não desdenha, inclusive, de perpetuar uma dinastia, já que o sobrinho de Bush, indagado pela mídia mais prestigiosa se candidatará à Casa Branca, responde que não fixou ainda o seu desígnio.
O presidente levará a cabo o que pretende fazer com a atual opulência orçamentária. Bastam-lhe os recursos garantidos pelo Patriot Act. Baixou impostos e na onda do neoprivatismo vai abrir os últimos fundos públicos da previdência ao pleno risco do seu jogo na bolsa e nas vantagens da aplicação particular. Completa-se a meia-volta do New Deal público e intervencionista de Roosevelt pela nova ''sociedade proprietária'' ou da ownership, e da esperança dos só muitos ricos de se transformarem em muito, muito ricos. A hegemonia pede, além da retórica, o visual do deslumbre, e na noite da eleição o espaço aberto ao figurinista de Laura Bush, Oscar De La Renta, tomou conta das manchetes, competindo com os recados do presidente. A dominação extrema refina-se com a elegância da nova corte de Versailles na Casa Branca. Não nos interessa o que disseram - repetiam os populares - mas o que vestiram os donos da hora, e os rebrilhos do baile após baile, no rodopio acabado entre os violinos e as sanfonas texanas.
Mas este extraordinário país, dos seus founding fathers e da vocação democrática medular, contrapunha à parada Bushiana, na mesma hora, a inundação dos abaixo-assinados, no New York Times, continuada pela internet, de denúncia dos perigos iminentes da nova presidência, e da conscrição implícita à guerra perpétua, saída das escadarias do Capitólio. Sobretudo o grande dissenso de um país efetivamente partido nas últimas eleições não demorava em mostrar que, desta vez, não se voltava ao tudo bem, mas à busca democraticíssima de uma visão crítica e aberta da responsabilidade internacional dos Estados Unidos. Condoleezza Rice enfrentou - e, aliás, com indiscutível brio e competência - a carga mais corajosa, e desapiedada, de oponentes até do próprio partido, ao lado das vozes dos senadores Lehay ou Bárbara Boxer, expondo as ostensivas contradições do pensamento da própria nova secretária de Estado, na construção da doutrina Bush. No fio da nova franqueza do governo, ganha pela ratificação eleitoral, Rice nomeou seis países que via como na alça de mira do novo regime, ao somar à guerra antiterrorista a imposição da democracia.
O novo, na nação democraticamente hegemônica, é a recuperação do dissenso e da volta à tona já, da liderança democrática que passa a encarnar John Kerry retornando à tribuna, inquirindo Condoleezza e negando-lhe o voto e, sobretudo, saindo da tradição de apagamento de seus antecessores como Al Gore, ou Michael Dukarkis, ou mesmo Jimmy Carter, perdedores de pleito ou da reeleição.
Não há trégua para o baile hegemônico, em ambos os lados. Nem período de graça para o novo mandato. E as eleições de Bagdá antecipam a armadilha dos simulacros democráticos: a efetiva ida às urnas, com a abstenção sunita, inverteu o jogo das maiorias reais e abre o caminho à guerra civil, a partir do poder só com os xiitas e curdos. É tempo para que John Kerry e o dissenso americano mostrem, de logo, que contaram, afinal, com 56 milhões de votos de seus concidadãos.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 09/02/2005