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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Félix Pacheco

RESPOSTA DO SR. FÉLIX PACHECO

SENHOR Constâncio Alves:

Quarenta vezes justas a asa da morte roçou e feriu estas cadeiras. O nosso número, portanto, já se acha igualmente completo no país ainda não descoberto, onde a simpatia intelectual dos fundadores entendeu escolher os patronos que devia dar-nos.

Só restam hoje, aqui, poltronas sem crepe, quinze, em cujos espaldares de glória fulgem, lado a lado, os nomes de Teófilo Dias e Afonso Celso, Cláudio Manuel e Alberto de Oliveira, Porto-Alegre e Carlos de Laet, Franklin Távora e Clóvis Beviláqua, Álvares de Azevedo e Coelho Neto, Raul Pompéia e Domício da Gama, Artur de Oliveira e Filinto de Almeida, Tobias Barreto e Graça Aranha, Adelino Fontoura e Luís Murat, Domingos de Magalhães e Magalhães de Azeredo, José Bonifácio, o Moço, e Medeiros e Albuquerque, Varnhagen e Oliveira Lima, Tavares Bastos e Rodrigo Octavio, Evaristo da Veiga e Rui Barbosa, Tomás Gonzaga e Silva Ramos.

Ainda não vencemos a terceira década, e, sem embargo, que extensa a teoria dos que se foram: Alcindo, Aluísio, Araripe, Artur Azevedo, Loreto, Artur Orlando, Eduardo Prado, Arinos, Garcia Redondo, Guimarães Passos, Paulo Barreto, Inglês de Sousa, Nabuco, Patrocínio, Veríssimo, Homem de Melo, Lúcio, Pedro Lessa, Luís Guimarães pai, Machado de Assis, Lafayette, Bilac, Pedro Rabelo, Heráclito Graça, Pereira da Silva, Barão do Rio Branco, Raimundo Correia, Osvaldo Cruz, Salvador de Mendonça, Emílio de Menezes, Sílvio Romero, Teixeira de Melo, Jaceguai, Urbano Duarte, Valentim, Euclides, Taunay, Francisco de Castro, Martim Júnior e Sousa Bandeira...

Quatro desses nem tiveram a honra de ser recebidos: o tempo, no acelerado de sua marcha de cego, carregou-os antes da posse.
A curul mais flagelada, a de Francisco Octaviano, já sentiu passarem por ela nada menos de quatro ocupantes.

Duas vezes o véu sinistro desdobrou seu luto em cada um dos lugares em que inscrevêramos os nomes de Junqueira Freire, Rio Branco, Laurindo Rabelo, Alencar, Pardal Mallet, Sousa Caldas, Bernardo Guimarães, Manuel de Macedo, Casimiro de Abreu, Castro Alves, Fagundes Varela e João Francisco Lisboa.
Choram da mesma sorte a perda de seus primeiros dignitários outros sítios da companhia, marcados pela eterna lembrança de Joaquim Caetano, Basílio da Gama, Gregório de Matos, Martins Pena, Júlio Ribeiro, Manuel de Almeida, Maciel Monteiro, Joaquim Serra, Pedro Luiz, Gonçalves Dias e Hipólito da Costa.

É como vedes, Sr. Constâncio Alves, todo um mundo de sombras, enchendo de ufana tristeza a nossa saudade orgulhosa!

Nous ne pouvons plus faire un pas sans nous heurter contre un cercueil. Il faut marcher pourtant, serrer les rangs, combler les vides et continuer sa route en voyant tomber à côté de soi ceux avec qui on avait commencé et l’on espérait finir sa carrière. Dure loi, mais sans laquelle la vie fléchirait devant la mort et lui céderait l’empire de ce monde. L’Académie ne peut pas périr. Plus ses pertes sont nombreuses, plus importe qu’elle se hâte de les réparer. Ses obligations se multiplient sous les coups mêmes que la frappent et ne lui permettent pas de donner à la manifestation de ses deuils tout le loisir qu’elle voudrait. Le temps nous presse.

Vós devíeis estar entre aqueles quinze privilegiados, que citei no princípio, quero dizer, entre os sobreviventes egrégios que, por felicidade nossa, ainda nos restam de primeira hora. Entretanto, quanta gente, senão na verdade menos velha do que vós, em todo caso provavelmente mais moça do que sois, acorreu, insofrida, a estas portas e logrou entrá-las!

Não raro, a ironia do destino se compraz de castigar-nos com a obrigação de confissões da ordem desta. Quando fui admitido, como simples repórter, no Jornal do Commercio, em janeiro de 99, já ali vos encontrei, enchendo com a graça leve e os espinhos cor de rosa do Dia a Dia o fim das Várias. Vinte e três anos são passados e desde 913 aqui me encontro, freqüentando este recinto, que tenta gente a esse tempo evitava, e, hoje, seguramente o décuplo, com direito, cobiça ferozmente.
O Dia a Dia passou a ser A Semana dia a dia, não sem protesto do Ministro japonês de então, que se habituara a ler-vos todas as manhãs em Petrópolis, gratíssimo pelas vossas farpas atiradas contra a Rússia.

Nesse entretanto, morreu anônimo, ou voltou para Cuba, de onde era filho, e eclipsou-se, o Garcia, o vosso Mercúrio, um velhinho baixo, teso e seco, que nos aparecia sempre na redação das onze para a meia-noite, trazendo as tiras do costume, chovesse pedra, como algumas vezes aconteceu em dias de barulho na cidade, ou chovesse água, como era mais freqüente suceder. A Biblioteca Nacional, já então vosso pouso definitivo, transferiu-se de defronte do Passeio Público para o palácio que ela própria divide hoje solidária e irmãmente com a falta de assento da Câmara. Morreu Machado. Acabou-se Veríssimo. Até a Academia, para danação da inveja alheia, de pobre que era, dizem que ficou rica...
E continuastes teimosamente durante todo esse longo período, antes da herança, depois da herança também, fora desta instituição, que, aliás, tanto vos requestara para seu membro fundador, e havia passado a ter constantemente em vós, no rodapé das quintas, o seu melhor e mais afetuoso e assíduo cronista.

Posso declarar, porém, que, no que me toca, me absolvo do pecado com o distribuí-lo um bocadinho pelos demais colegas, que, neste momento de fausto e de alegria, nos escutam a nós ambos. Os que, em rigor, não são réus da preterição a que aludo, ao menos o foram pelo não insistir, como Nabuco insistiu, no reclamar a vossa presença entre nós.

Consolemo-nos reciprocamente dessas injustiças todas, com o íntimo contentamento desta hora de recreação e de amizade, que, para ser completa, necessita, do mesmo passo, não se alongar em esquecimentos e despiques, por mais que uma cousa e outra costumem fazer a delícia dos discursos de recepção, quando não estamos em estado de sítio benigno como agora, e quando a censura da mesa é, então, como deve ser, cuidadosa e severíssima...
Copiando com carinho as boas práticas da Academia Francesa, devemos rejeitar o modelo, quando não servir e não for bem o caso.

Formigão insaciável de biblioteca, conheceis naturalmente o que se passou com o desventurado Augusto Barbier, que, eleito em 1868, na vaga de Empis, teve a desgraça de ser recebido no ano imediato, quando ainda ninguém esquecera a absurda vitória de Conde de Carné contra Littré, e quando a ilustre companhia acabava de perder nada menos de sete sóis gloriosos, desaparecidos na sombra: Mantalembert, Berrier, Viennet, o Duque de Broglie, Sainte-Beuve, Pongerville e Villemain.
Temos aqui na nossa Academia, enviados por Domício da Gama, e possuo também eu lá em casa, oferecidos por Veiga Miranda, os dezoito grandes e preciosos volumes do Récueil des Discours. Mas não preciso ir à fonte oficial, e valho-me da Chronique Parisiense des six derniers mois d’Empire, de Paul Ginisty e Quatrelles l’Épine, embora estes houvessem confundido um pouco as datas e carregado bastante as tintas no resumo.
Barbier começa o seu discurso, fazendo alusão a um poema da Legenda dos Séculos, o “Sátiro”:

L’auteur, Messieurs, y raconte que le grand Hercule prit plaisir, un jour, à mener Pan dans l’Olympe. Cette fantaisie mythologique m’a paru avoir quelque analogie avec ma situation actuelle. En effet, tant d’hommes de génie ont brillé sous la voûte de ce temple, tant d’esprits supérieurs, tant de maîtres en l’art d’écrire et de bien dire y ont fait resonner leurs voix, que l’on peut bien, sans trop d’exagération flatteuse, reconnaître en ces lieux une sorte d’Olympe de la littérature française. Quant à moi, tout en étant loin d’appartenir à la race de l’agile coureur des champs et des bois, il serait facile de me trouver un trait de ressemblance avec cet enfant de la nature: ce serait la façon dont j’ai souvent rendu mes idées...

Era demais. Sylvestre de Sacy não se conteve e escandalizou com a sua resposta o auditório, apesar deste já familiarizado com a malícia acadêmica: “C’est que, cette fois, la malice a fait place à une manière d’impertinence” – explicam os autores que citei.
Aqui está como os referidos autores resumem os termos do discurso acadêmico que recebeu o pobre Barbier:

Vous êtes ici, Monsieur, c’est un fait, mais je ne comprends pas trop pourquoi vous y êtes.... Vous avez fait un livre, où il y a une pièce intitulé La Curée... Tenez, je vais essayer d’en lire une strophe... Mais non, vous voyez qu’il n’y a pas moyen; c’est malséant... Et puis, je vous croyais mort depuis 1832. De quel droit n’êtes-vous pas mort? J’ai été fort étonné d’entendre parler de vous pour le fauteuil de ce pauvre Empis... L’Impératrice me fait l’honneur de converser avec moi sur la littérature: il est question de Mlle. Aïssé, de Mme. Krudner, de Mme. Récamier, mais jamais de vous.

Narro o episódio somente para pôr alguma cousa da vida da nossa gloriosa co-irmã francesa na história ainda quase virgem da Academia Brasileira, perante a qual todos sabemos não teríeis o mau gosto de entrar começando por uma alegoria de sátiro, roubada a Victor Hugo e sumida entre as banalidades do exórdio infeliz de Barbier, que Sylvestre de Sacy castigou tão duramente. Não há, aqui, este perigo, mesmo quando o novo acadêmico não seja estritamente um homem de letras, hipótese tantas vezes anunciada antes da posse, entre os remoques dos literatelhos lá de fora, e brilhantemente desmentida pelos recipiendários, logo no primeiro discurso de cada um.

A diversos temos realmente recebido nesta sala com justa efusão, sem ao menos lhe perguntar se não vinham mais propriamente da política, da medicina, do jornalismo, do direito, da militância, da igreja, da diplomacia, ou de outra procedência qualquer, que não as letras. As letras, ao cabo, no fundo, são tudo isso junto, e se nós, ao invés de imitar neste particular a nossa congênere de França, limitássemos aqui o ingresso exclusivamente aos bardos e novelistas e gramáticos, teríamos feito apenas um truncamento de cultura, incompatível com a expressão geral de inteligência, de autoridade, de patriotismo e de bom gosto, que desejamos que a Academia apresente sempre, no seu obstinado fervor pelas tradições da língua portuguesa enriquecida no Brasil, e pela beleza renovada que simultaneamente nos cumpre animar.

Mas, quanto a vós, pela multiplicidade dos títulos que na vossa pessoa concorrem, devemos desde já declarar que a nossa acolhida necessariamente não será a que de ordinário se faz às pessoas estranhas nas residências particulares.

Aqueles três bustos, que ornamentam o lugar de nossas sessões, amplamente o confirmariam, com o sorriso afetuoso, que a eternidade da justiça fixou no bronze.
A nossa troca de discursos é, pois, uma formalidade inexpressiva, tratando-se, como se trata, de um velho e estimado companheiro e amigo, que, embora tantos anos ausente de nós, viveu sempre fraternalmente a nossa vida, participando, com a mesma sinceridade, dos júbilos e tristezas que vamos tendo na sucessão dos dias, e erigindo-se, voluntariamente, no jornalismo cotidiano do Rio, em um permanente comentário simpático da ação da Academia.

Penso que já passou definitivamente o tempo em que o público não cria em nós. Não culpemos ninguém por essa antiga opinião. Convenhamos antes que isso era, naqueles primórdios longínquos, um conceito natural e muito generalizado.

Na minha idade de arremetidas demolidoras, que não recordo senão para assinalar o inútil e o ridículo desses golpes, com que cada um o que faz é apenas pagar o prêmio de sua juventude, derramando-se em irreflexões e injustiças, de que um dia haverá de penitenciar-se; na minha idade de arremetidas demolidoras, que tiveram a virtude magnífica de não poder deitar nada abaixo, como há de estar acontecendo a uma porção de jovens depois de mim, falei, certa vez, em “alfândegas intelectuais, com as suas tarifas protecionistas muito úteis para os efeitos da publicidade e da glória”.

Era a primeira apreciação publicada no Rio sobre o grande romance da lavra de eminente acadêmico, que, apesar de acadêmico e eminente, ainda constituía, até então, um autor ineditado e inédito. Eu visava diretamente, com a minha prosápia, nessa crítica, a Academia, com os seus quarentas imortais por voto próprio; e, embora elogiando sem reservas, como devia, a fulgurante estréia, salientava a circunstância, para mostrar a independência dos novos e aversão a esses processos.

Estou, entretanto, que foi exatamente esse rabisco de ocasião que mais me aproximou desta Casa. O acadêmico louvado retrucou-me galantemente de Londres, agradecendo os gabos ao seu livro, obra de verdadeiro artista, trabalho de pensador autêntico, concluindo por ajuntar textualmente, com oportuno bom humor, que era quase um conselho, que, anos depois, não deixei de seguir: “Quanto à Academia... Está entendido. Serei eu o seu paraninfo. Vou escrever ao Machado de Assis. É fatal. A Academia é inofensiva. Quem é que acredita nela?”

As últimas expansões de nosso brilhante confrade, nos recentes e pitorescos desconformes futuristas de São Paulo, autorizam talvez a supor que ele, sempre novo e sempre trabalhador, depois de mais de dez anos de Europa, ainda pensa do mesmo modo a respeito da Academia, de que é, aliás, uma das maiores e das mais lídimas figuras.

Mas quem não pode de modo nenhum continuar a pensar como antigamente sou eu, pois a Academia de fato existe, quero dizer, não é mais assim tão inofensiva como outrora se supunha, por isto mesmo que, hoje, realmente todos acreditam nela.
Não foi isso milagre do livreiro benemérito, que prestou às nossas letras o mais assinalado serviço que elas até então receberam no Brasil, mas fruto natural, conseqüência lógica da evolução mesma da nossa vida, desabrochando com o tempo e criando a bela força e o inegável prestígio, com que temos sabido crescer e nos impor, sem afetações e sem particularismos.

Não refiro a passagem senão para acentuar, por honra vossa e em vosso louvor, que se alguém uma vez supôs que a Academia não existia, e por isso não acreditava nela, esse alguém podia ser todo mundo, menos vós.
Que melhor bilhete de recomendação do que esse voto apreço ininterrupto pela Instituição que hoje vos acolhe com tanto prazer em seu seio?

Ainda quando escrevíeis para nos censurar, a vossa atenção para conosco era sempre carinhosa e alta. O eminente escritor militar, que sucedeu a Joaquim Nabuco na cadeira de Maciel Monteiro, não guardou, decerto, nenhum ressentimento de vossa veemente sortida em defensão de nosso primeiro e glorioso Secretário-Geral. Era, no fim de contas e sempre, a Academia, que enaltecíeis e louváveis numa de suas mais radiantes e fascinadoras figuras, que vos pareceu, como a outros, um pouco diminuída na bela fala do padrinho do acadêmico. Veríssimo acudiu prontamente com uma carta, inocentando da culpa dessa irreverência a ilustre companhia, tal qual fez mais tarde o pensamento irredutivelmente honesto de Mário de Alencar, defendendo de argüição idêntica, porém muito mais injusta, um artigo de Domício da Gama aparecido na Revista Americana.

A polêmica derivou de Nabuco para o preclaro paraninfo que serviu na famosa sessão, e, de um lado e de outro, os floretes ágeis da sátira, manejados com absoluta perícia epigramática pelos dois consumados mestres do gênero, foram tirando chispas de fogo.

Esses suculentos torneios da graça travessa e belicosa têm sobre todas as outras guerras e combates uma vantagem evidente: nunca produzem mortos nem feridos. O que fica de tudo é só uma vibração de beleza e de independência, patente na justeza ferina dos golpes e na segurança invencível das paradas, logo reciprocamente alongadas em outras tantas rispostas, para gáudio unânime da platéia educada, como creio piamente que é, em geral, a que aprecia essas deliciosas pugnas. Vai-se ver no fim, e o duelo se reduziu a uma sucessão de fintas, com que os esgrimistas se divertiram a valer à nossa custa, um contra o outro, e nos lograram sarcasticamente a todos que estávamos apreciando de palanque a briga. Arranhões, se os houve, apaga-os o tempo, que seria deveras um pouco insípido, sem o intermezzo barulhento desses encontros corpo a corpo, em que só há louvar o desperdício do talento, e uma vez que da intrepidez verbal estadeada com tanto brilho, tanto garbo e tanto estrépito, jamais resultam conseqüências que determinem a intervenção da polícia e a chamada do automóvel branco da assistência com a bandeirinha solícita da Cruz Vermelha tremelicando em cima.

A polícia e a assistência, aqui, no caso, somos nós, e a ordem que expediríamos, se para tanto tivéssemos autoridade e não receássemos também uma daquelas sovas, que quebram com fúria, mas felizmente recompõem logo sem novidade as costelas da gente, seria para que os bravos campeões se dessem novamente as mãos, como é ou, pelo menos, deve ser, de boa regra nesta Casa conservadora, abastada e pacatona.
Reparo, sem malícia, que todos, até mesmo, se me dão licença, a memória, naquela ocasião tão discutida, de Joaquim Nabuco, continuaram a passar muito bem e permanecer perfeitamente íntegros nos seus foros.

E é introduzido pela sombra augusta do admirável político, tribuno, filósofo, historiador e diplomata, que penetrais neste recinto, Sr. Constâncio Alves. Vós mesmos o dissestes com propriedade e formosura, no vosso discurso, aludindo àquela outra Academia Suplementar, onde Paulo Barreto e Pedro Lessa inauguraram exatamente a trigésima nona e quadragésima cadeira, o que significa, como eu próprio igualmente afirmei no começo, que também lá o nosso número já se acha completo, razão de sobra para tranqüilidade vossa e de todos nós, que ainda estamos vivos e não temos de viajar para o undiscovered country, esperando, ao contrário, e muito confiadamente, que aquele a quem de coração desejaríeis para paraninfo e desde muito habita a glória, não se lembre, onde se encontra, de propor nenhuma ampliação do quadro paralelo...

Se o metal inerte pudesse falar, haveríeis de ver, neste momento, como a face do homem elegantíssimo, que foi aquele admirável orador e escritor, tomaria de improviso uma acentuada expressão de júbilo. Tudo pelo chegardes finalmente aonde ele quisera ver-vos desde o primeiro dia, quando esta agremiação só guardava no bojo desejos e esperanças, e era talvez ainda um simples simulacro, ou apenas vaga promessa de nosso atual e opulento chá das quintas-feiras.
E, ao sorriso satisfeito desse busto da direita, responderia decerto com alegria não menor o seu companheiro daquela outra herma do lado esquerdo, com o qual já fizemos carinhosamente as pazes, depois de ele morrer, e cujo perfil vindes de traçar, com o de Nabuco – o Moço – com tanto brilho e tanta precisão encomiástica de linhas.

Lá mais ao fundo, Machado de Assis, sempre igual nas delicadezas de sua grande alma, completaria com o seu afetuoso recato, cheio de orgulho tolerante, e com a sua esquisita sensibilidade, feita de gentileza sem esparramos e cristalizada em pérolas de humour e de sonho, o coro de boas-vindas e louvores, com que vos saúda aqui, na linguagem tranqüila, prestigiosa e duradoura da saudade, a memória dos três conspícuos fundadores, a que também podemos naturalmente associar a solidariedade póstuma de José Veríssimo, quando não ao mesmo tempo a de todo o seletíssimo grupo que colaborava na segunda fase da Revista Brasileira, de que ainda, por nossa fortuna, tanta gente ilustre resta viva.

Com essas credenciais, com que batestes à nossa porta, Sr. Constâncio Alves, a vossa eleição passava a ser uma simples questão de ocasião.
Lá fora, muita gente, cuja pressa e insofrimento contrastam veemente com o vosso vagar de burocrata zeloso, com a vossa paciência de erudito sem vaidades e com a vossa graça calma e demorada de ironista fino e arguto, não entenderá provavelmente o que eu quero dizer, por mim e talvez também pela Academia, quando aludo a eleições que são ou devem ser uma simples questão de ocasião.
É quase certo que, na política, o senador que de mim fizeram contra minha vontade, pense que as coisas nem sempre devam ser assim. Mas, nos nossos pleitos da Academia, mais sérios, mais espaçados, mais graves pelas responsabilidades morais e mentais do mandato, assim como pela extensão perpétua da investidura, convém medirmos melhor todas as circunstâncias ocorrentes nos diversos méritos que pleiteiem uma cadeira vaga. Isso ocasiona, às vezes, incidentes e dilações, e determina segundo pleito e novas candidaturas; mas ninguém tem o direito de se queixar, porque tudo, como disse, se reduz a uma simples questão de ocasião, de que somente nós somos os juízes, e não constitui menosprezo ou gravame para pessoa alguma.

Não imagineis que é uma explicação que vos dou, ou a qualquer outro.
A Academia se sente bastante ciosa de suas prerrogativas, para não ter que baratear escusas, ou se justificar de demoras havidas. É apenas um aviso que deixo e uma advertência que formulo aos candidatos de amanhã, quando já fordes também membro efetivo e acadêmico votante.
Na nossa vida literária, como na nossa vida política e social, o defeito brasileiro principal está na relativa ausência daquelas qualidades de discrição que formam a própria essência da polidez, no que a polidez significa o sentido das conveniências pessoais mais íntimas e a compreensão do interesse geral mais legítimo.

Sobram tais predicados na vossa modéstia cultíssima, Sr. Constâncio Alves, e tanto basta para marcar do bom selo a vossa personalidade por tantos títulos ilustres.
Acredito que só a circunstância de sermos ambos jornalistas, como o foi também o inesquecível João do Rio, influiu para que o nosso eminente Presidente fosse levado a incumbir-me da missão que estou desajeitadamente desempenhando.

Eu era, entretanto, o menos indicado para isso, pela pouca prática que tenho de arrumar os alfinetes e as fitas indispensáveis ao bom arranjo dos açafates olentes, próprios destas recepções.
Não pensou também a indicação no grave perigo e na evidente imprudência de ajuntar assim, numa quadra como esta, apesar de ser tal quadra a de um governo eminentemente intelectual e de vontade, de fé e ordem e patriotismo, três homens de imprensa, dous vivos e ambos um pouquinho frondeiros no seu conservadorismo, a carregarem outro, que não morreu senão da efêmera morte física, e cujo feitio novo, movimentado, literário e perquiridor cintilava demais para ser aceito sem desconfiança e sem reserva.

O momento, por obra e graça do Senado, de que aqui, como o meu prezado colega Sr. Lauro Müller, não faço parte, é sumamente delicado para a profissão, mesmo quando quem dela vem, para chegar até nós pelo atalho decente das letras, é magro como vós, com o vosso fardão de aparato, o único que conheço aberto na frente, fora do uniforme oficial fechado e quente que me abotoa, e quando o duplo confrade, que vos está a receber, anda a lutar, sem esperança, para ver se não engorda mais, já tendo necessitado mandar desapertar a sua casaca verde-garrafa e ouro, como decerto precisou igualmente fazer, depois da posse, o nosso querido e saudoso Paulo Barreto, cujos bordados, ainda relativamente novos, talqualmente os meus, se vexariam do brilho um pouco mais escuro, o que vale dizer um pouco mais antigo e um pouco mais autêntico da fé de ofício que os vossos representam, podendo, aliás, isso mesmo acontecer também com o espadim que trago e me pertence deveras, mas me foi dado de presente, em troca ou substituição de outro, que voltou ao seu dono, sem que eu saiba até agora aonde foi parar.

Confessemos logo despejadamente que essas trapalhadas todas de indumentária compõem muito mal a nossa modéstia, e tão sem jeito cobriram a vossa que só tivestes desculpa recorrendo a uma tirada de Rostand nas primeiras linhas de seu discurso de recepção na Academia Francesa.
Conversa fiada de poeta, para excusar jactanciosamente perante si mesmo de haver desistido de falar em verso naquela ocasião, como o Cirano embaixo do balcão da Roxane, Chantecler no terreiro no dia da Pintada, ou o Filhote da Águia no aposento melancólico do castelo de Schoenbrunn...

Messieurs, j’ai feuilleté ces vertes brochures sur lesquelles Minerve rejette son casque en derrière; j’ai colligé les exordes de tous les récipiendaires passés; et j’ai connu que, si j’arrive à l’Académie trop tôt pour pouvoir abréger les humilités préliminaires, j’y arrive trop tard pour espérer trouver une façon originale d’être confus. Tout est dit... depuis deux cent cinquante ans qu’il y a des académiciens, et qui sont modestes.

Tudo isso, é claro, o espavento de glória enunciava para blasonar – o galicismo abonado por tanta gente cabe como uma luva – de nunca ter sido tão tentado de “ne pas parler en prose”. A sua fingida modéstia o que queria era apenas “doubler les émotions”, “débuter ensemble sous la coupole et dans la prose”.
Eu acredito muito mais na vossa timidez, confessando com simplicidade e com franqueza o seu orgulho, Sr. Constâncio Alves, do que na modéstia emproada de Edmond, simulando apregoá-la.
Para um tímido passar de tímido a outra coisa pior ou melhor, basta a simples troca de uma letra no vocábulo. Qualquer dos dois qualificativos estaria certo e seria verdade na definição de vossa pessoa.
Quem vos encontrar na cidade, meio encolhido e meio curvo, os ombros estreitos metidos em fraque talvez preto e coberto invariavelmente do capote, se o termômetro está abaixo de 30o, à cabeça um coco também quase preto, a expressão geral sem nenhum traço deselegante de descuido ou de boêmia antiga, balanceando um bocadinho o andar vagaroso, com jornais amassados ou brochuras e livros apertados no braço esquerdo, o direito empunhando um indefectível guarda-chuva, que não previne nada contra o seu contemporâneo o dilúvio, dirá logo: ali vai um tímido!

E não errará na suposição. Um homem que, ao contrário de João do Rio, que conheceu todos os recantos da cidade e todas as camadas sociais, de Botafogo à Gamboa, e foi o cronista de todas as festas, se limita a ir de casa à Biblioteca e da Biblioteca ao “Jornal”; um homem que não vai a teatros, que só entra num cinema por acaso, que nunca viu Carnaval, nem assistiu a uma só corrida de cavalos, regata, partida de “foot-ball”, ou tourada e que só conhece o Municipal por ter ido ali ouvir conferências de Anatole France, Jaurès e Clemenceau; um homem cuja vida se passa entre os livros, e que, entretanto, até quando se entra numa livraria, parece que entra com medo, não pode ser senão um tímido. Um tímido e um triste, pois, além do mais, considera como verdade profunda o dito do ironista: a vida seria muito agradável se não fossem os divertimentos.

Os tímidos, porém, nem sempre são só o que mostram. Convém examiná-los bem, e noutras ocasiões, que não assim de passagem, na rua. Vendo-vos, como agora vos estou vendo, de farda e espadim, acho, não sei por quê, que toda essa imponência marcial e decorativa vai a matar na vossa timidez. É que podeis provavelmente ser, e sois, além de tímido, temido, com perdão do mau gosto do trocadilho.
Não há, aliás, incompatibilidade nenhuma entre essas duas feições.
Todos nós, neste mundo, uma vez somos isto e outra vez somos aquilo.

A incoerência dessa variedade de aspectos é puramente ilusória. Ou a vida não seria então o misterioso complexo que realmente é e que, a todo instante, nos obriga aos mais diferentes papéis.
Dos vossos, Sr. Constâncio Alves, me contento de dizer que os representastes sempre e ainda agora muito bem.

Não há, que eu saiba, outra forma de ser sincero no jogo de cena dessa grande comédia, que o Dante, a quem estudastes tão superiormente, o ano passado, nas três maravilhosas conferências da Biblioteca, estilizou em símbolos no trágico e no lírico, para poder depois chamá-la de divina, mas que basta ser humana e diária, para admitir logo não importa que paradoxos ou inverossimilhanças.
Não sou, aliás, eu só quem diz. Disse-o mais curtamente e muito melhor, três décadas antes de mim, o nosso venerando e respeitado Presidente, quando escreveu, em março de 1891, na sua secção Escrínio, do jornal O Brasil, que então se publicava no Rio de Janeiro:

“C. A., macio dizedor de verdades ásperas”...
“Macio dizedor de verdades ásperas”... Muito bem achado juízo! Aí estão, nem mais nem menos do que o tímido e o temido de que há pouco vos falava. A maciez permanece com o primeiro, e as asperezas passaram ao segundo, primeiro e segundo iguais ao terceiro, o da verdade, não querendo isso dizer que aqueles dois sejam rigorosamente iguais entre si, ao contrário do que reza o velho axioma ou teorema.
Ocupando embora a Cadeira que tem o nome de Gregório de Matos, sou pouco versado em matéria se sátira, nem sei aonde ela acaba para dar começo ao humorismo. Mas como já vi definida, e logo por Auguste Comte, que é mesmo para a gente não duvidar, como a “sistematização do instinto destruidor”, cedo me persuadi de que há muitas cousas erradas neste mundo, que estão positivamente certas, e outras historicamente certa, mas que parecem, de fato, erradíssimas.

Prescindo de exumar, nesta última categoria, as vossas rusgas passageiras com o nosso prezado colega e eminente mestre, a propósito de Eufêmia Camacho, ou de Joaquim Nabuco, com repercussão sobre Pedro II, através da lira antiga abandonada e cheia de um radicalismo que passou com o verdor dos anos, embora na pessoa de quem se trata essa permanente mocidade pelejadora continue abrindo-se em magníficas cintilações depois dos setenta, para encanto e aprazimento de todos nós, que lhe queremos e o respeitamos como patriarca da Casa, e capaz, ainda hoje, de reduzir qualquer ao silêncio com um simples piparote de sua graça cheia de imprevistos e de brilho.

Não me furto, entretanto, de remontar mais para trás no tempo, na esperança de religar agora o passado ao presente, com esquecimento do meio-termo, sempre desaconselhável, até mesmo nas Academias como a nossa.
Que animação vos não dava o autorizado Professor com as repetidas referências ao vosso nome! E que prazer não sentirão hoje todos aqui, podendo assistir à velha cordialidade renovar-se entre os dois!
O namoro começou sintomaticamente a propósito do encontro de duas locomotivas na Sapopemba, uma chamada General Deodoro e outra D. Pedro II. Deveis concordar que não é mau princípio para um segundo casamento, passados trinta e um anos, quando não se deve mais fazer grande cabedal da idade para a conservação dos pontos de vista de afastamento.

Escreve a 4 de junho de 91 o fulgurante dono de Escrínio:

“Recomendamos o assunto ao conceituoso C. A.”

Não vos fizestes de rogado. E pagou-vos fartamente em benevolência o grande mestre, nestas palavras de 7 do mesmo mês:

O escritor do Dia-a-Dia fez-nos a vontade, interpretando analogicamente o encontro de Pedro II e Deodoro (na estação de Sapopemba); porém não quis dizer tudo o que pensa quanto às avarias do último trem. Explica o seu retraimento pelo receio de dar com os ossos na estação de Maxambomba. Fundado receio. Por muito menos o Joffily ficou sem jornal. Em todo caso, felizes nos consideramos por ter bolido com o C. A.: lucramos mais um de seus chistosos artigos.

Dez dias depois, ainda ele vos destacava noutra alusão elogiosa:

O espirituoso C. A., do Jornal do Brasil, comentou a substituição do busto de gesso da República, no Congresso, por outro maior, porém ainda de matéria quebradiça. Aludindo à lembrança de se transladar o Congresso para o Museu, diz que – ainda é cedo. Por estas e outras é que a República fecha jornais. (Seção Escrínio, de O Brasil, de 17 de junho.)

E continuava na manhã seguinte:

C. A. do Jornal do Brasil celebrou o Fico do Sr. Hermes com citações de tragédias gregas e reminiscências de opereta francesa.
Se o Sr. Hermes tem espírito, como parece pela gracinha da renúncia, deve, a bandeiras despregadas, ter-se rido com duas coisas: com o debique do C. A. e com a inalterável seriedade do Sr. Portella. (18 de junho de 91.)

Não é pouco, mais tem mais ainda:

Emmanuel pediu aos espectadores que ao teatro não levassem crianças de colo. Sobre o caso fez o C. A do Jornal do Brasil algumas variações com a costumada perícia. (Escrínio, 22-23 de junho.)
Na mesma secção, a 20 de setembro:

Em Campinas, uma companhia lírica suspendeu as cadeiras à redação de um jornal que lhe chamou de feias e velhas as cantoras. Deste engraçado incidente tira o C. A. do Jornal do Brasil algumas variações no violino em que é mestre.

Veja-se esta com endereço ao Sr. Aristides Lobo:

Falo por experiência: há dias chamei de velho um ilustre cidadão que não quer que lhe falem na idade. Custou-me uma descompostura. E se não perdi o bilhete da entrada é porque o teatro em que trabalha só é freqüentado pela companhia.

A relativa solidariedade política entre o jovem jornalista republicano em oposição a Floriano e o velho escritor liberal, monarquista irredutível, explica razoavelmente essas simpatias que eu tenho a obrigação cordial de recordar para reavivar.
Não era só no jornal O Brasil que o brilhante mestre abundava em tais encômios. Copio também textualmente um pedaço do quinto artigo da série A Providência na Revolução, publicado no Comércio de S. Paulo, onde esplendia o sebastianismo intransigente, porém mais literário do que político, de Eduardo Prado:

Tudo lhe servia (a Aristides Lobo) de pretexto para acusar de conspiração os monarquistas. Se ousavam manifestar convicções, eram díscolos perigosos e urgia fossem reduzidos ao mutismo. Se permaneciam silenciosos, é que tramavam coisa... “Calam-se, logo conspiram”, era o estribilho do inclemente jacobino. Não vale negar que, ao cabo de algum tempo, essas repetidas inventivas começaram a tornar-se ridículas, e com delicioso aticismo foram pelo C. A. (Constâncio Alves, do Jornal do Brasil) reduzidas ao número das mais irrisórias celebreiras desta república...

*  *  *
Eu devo ter, Sr. Constâncio Alves, pela longa prática da datiloscopia, algum jeito para descobrir também a identidade intelectual exata das pessoas. Se se lê claro em dois milímetros de superfície palmar, não sei por que não se haverá de recompor, por indicação apanhada num simples trecho de dez ou doze linhas, a marca menos ostensiva que cada escritor porventura esconda e guarde. E não falhei em relação a vós, na minha pesquisa, meu caro folhetinista e meu brilhante... poeta!
Meu brilhante poeta, digo bem. O indício lá estava patente na evocação de Rostand, no começo do formoso discurso, que vindes de pronunciar. A suspeita foi confirmada na alusão, que fizestes, de passagem, aos belos versos de Théophile, Le Pin des landes. Vi logo claro no escuro, a poesia resinando de vosso tronco robusto e sentimental plantado fundo, tal qual o outro, nas dunas ingratas da vida.

E, de vossa dissertação sobre a boêmia, a propósito do poeta Lagartixa e do Guima d’A Casa Branca da Serra, concluí, sem esforço, que já devíeis ter igualmente poetado um dia.
Anotastes, com estranheza, a ausência dessa aptidão em Paulo Barreto, só para me despistar. Mas a um antigo interpretador de manchas e desenhos papilares ninguém ilude assim tão facilmente. Armei-me de lentes, abri de novo o Galton e o Vucetich, esmiucei whorls e loops, e aqui vos tenho, seguro pela gola, para vos mostrar a todos com o vosso nome certo no Parnaso e a filiação completa entre as musas, de cujo reino encantado vos fingis egresso, como se ainda hoje, com todo esse ar santarrão de prosaísmo e esse aspecto mofado de erudito e de irônico, não continuásseis a freqüentá-lo.
Comuniquei a alguns amigos o meu propósito descobridor, e de um deles, Artur de Cerqueira Mendes, meu querido irmão de letras, residentes em São Paulo, recebi preciosa ajuda e confirmação definitiva do que imaginara.

Tínheis ali um contemporâneo de Academia recentemente falecido, o Sr. Deolindo Galvão. É esse vosso dedicado e afetuoso colega, que tão grande lugar ocupou sempre na vossa estima, quem agora vem assistir à vossa posse, na leitura dos versos por seu intermédio comunicados àquele brilhante escritor, que ainda me adianta outro apontamento precioso, dizendo:
Contava-me o Dr. Deolindo Galvão, falecido há dias, terem sido escritos de improviso, sob a influência de uma impressão forte, quando o Constâncio estudante...

Preparai-vos, que o caso é grave e podeis ser chamado a contas, pois não tendes mais, hoje, “o estoicismo de celibatário sistemático”, como dizíeis numa carta de 5 de novembro, felicitando aquele vosso amigo, que ia casar:

À SOMBRA DE UM LEQUE

Braços dados, seguíamos. Na rua,
De casa mudas e cerradas portas,
Pousava a paz claustral das horas mortas,
O silêncio do céu, o alvor da lua.

E calados nós dois, da noite em face,
Temendo que do amor a correnteza,
Desesperada por se ver represa,
Alucinadamente transbordasse...

Por atração secreta, de repente,
Nossas mãos encontraram-se geladas,
Como quem faz um crime, e alvoroçadas
Entrelaçaram-se amorosamente...

Doce torpor, divina letargia!
Para que a noite não pudesse vê-las,
A indiscreta que incessante espia
Com as claras pupilas das estrelas,

Cobriste-as com teu leque rendilhado,
Qual asa de ave, que protege o ninho.
E ficou a tremer, no ar dourado,
A plumagem puríssima de arminho.
Sob a asa da noite, as nossas almas,
Sob a asa do leque, as nossas mãos...
Que vivo ardor naquelas horas calmas,
Incendiando corações irmãos!

E arfava sempre o leque, a branca vela,
Dessa invisível nau da fantasia,
Que, unidas, nossas almas conduzia
Numa viagem loucamente bela.

E o fino arminho, de beleza rara,
Dir-se-ia a espuma da salgada esteira,
Que o vento em níveos flocos atirara
Na extática vertigem da carreira.

Tudo passou. Quem sabe se o teu seio
Mais tarde palpitou ao meigo encanto
Desse poema de amor em um só canto,
Ou, antes, canto que ficou em meio?

Quando o presente é mão que me constringe,
E o pranto arranca e fibras dilacera,
E o futuro desenha-se em esfinge
Que, taciturna, ao longe nos espera,

A saudade, a divina evocadora,
Reproduz, traço a traço, aquela cena,
E minh’alma se abriga, já serena,
Do teu leque à penumbra protetora.

        Bahia – 1884.

Claro que, achado assim o fio da vossa meada azul, e intimado vós mesmo do processo e da devassa, o resto não foi mais tão difícil, pois tivestes de capitular, como se vê desta carta que vou ler:
Prezado paraninfo. – Agora que não posso esconder os crimes, digo-lhe que o poeta que os cometeu já pagou o que devia às musas ofendidas. Arrependeu-se, pediu-lhes perdão e enforcou-se, aos 20 anos, numa das cordas da lira ultrajada. Queira V., poeta de verdade, perdoá-lo, como Apolo já o perdoou. – C. A.

Mentirosos sempre os poetas! Mentiroso vós, jurando que o cujo que em vós havia o enforcastes aos vinte anos, em respeito às musas e para merecer o perdão de Apolo. Não reparastes que, na pequena coletânea que vos arranquei a pulso, há um soneto, por sinal lindíssimo, com um fecho que bastaria para fazer a reputação de um grande burilador, e datado de julho de 1922, isto é, de apenas um mês atrás. Vou jurar que o compusestes, quando fostes eleito, associando filial e carinhosamente o nome saudoso de uma santa às justas alegrias de vosso triunfo tardio e preguiçoso.
Ouça a Academia e diga-me, depois, se este primor de quatorze linhas não vale tanto como o volume suculento das Figuras:

MATER

(A Jackson de Figueiredo)

Eras em plena mocidade, quando
Da nossa casa, um dia, te partiste;
E eu, coitado, sem mãe, pequeno e triste,
Fiquei por esta vida caminhando.

Assim – no meu amor – teu rosto brando
Do tempo à ação maléfica resiste;
E o meu é, hoje, como nunca o viste,
Tanto o passar da idade o foi mudando.

Tão velho estou, que já me não conheces;
Nem poderias ver no que te chora
Esse a quem ensinaste tantas preces.
E tão moça ainda estás que (se memora
A saudade o teu vulto) – me apareces
Como se fosses minha filha agora.

     Julho – 1922.

Retrocedamos trinta e oito anos para apreciar o chiste do rapazola enamorado, que hoje se faz de tão esquecido:

À VIZINHA QUE NÃO ME QUER VER

Ajoelhada, ante os altares,
Ouviste missa, outro dia,
E eu te mirava, com ares
De pobre de portaria.

Ah! nem a esmola furtiva
De um olhar – rápida aurora –
Que as esperanças aviva
E os desalentos minora!

Botaste esmola no cofre
Das almas do Purgatório.
Que compaixão por quem sofre
Um tormento transitório!

E eu, que no Inferno vivo,
Eternamente a pensar,
Que não tenha o lenitivo
De um piedoso olhar!

Olhas os santos chagados
Com branda expressão de dó,
E dos meus tristes cuidados
Não queres ver nem um só!
“Ama teu próximo”... Entendo
Que isto é ordem que Deus deu,
Ora, teu vizinho eu sendo,
Quem mais próximo que eu?

Atenta, por vida minha,
Nesse ditame de amor,
Sê como os santos, vizinha,
Escuta este pecador.

De um teu olhar só, ao toque,
Verás que o meu coração
É cachorro de São Roque,
Ovelha de São João.

         Bahia – 1884.

Curioso fora que o humorista que sois não repontasse um dia nas folhas com o guizo da sátira a sacolejar na arlequinada maldosa.
Quando o Emílio, tão mal julgado até hoje, talvez ainda não fizesse os epitáfios, que deviam depois imortalizá-lo juntamente com a sua outra grande poesia, um pouco superficial na aparência, é certo, mas, no fundo, tão cheia de comoção e de beleza interior, como da sonoridade exagerada e da opulenta pompa externa de que se vestia, já a vossa musa brincalhona liquidava sumariamente muita gente por meio de quadrinhos irreverentes, conceituosa e terrivelmente assassinas. E obráveis nisso tudo com a mesma calma de esculápio incréu, com que, em setembro de 85, na vossa tese de doutoramento Da cremação e inumação perante a higiene, defendíeis, lá na Bahia, o processo novo, “por julgar” – são palavras vossas e não minhas – “mais prudente e mais humano cuidar dos mortos do que dos vivos”.
Essas trinta e sete páginas, várias de proposições e aforismos, devem ser, na ordem cronológica, a vossa primeira pilhéria séria.

As troças menos graves principiaram muito antes no Cri-cri, jornalzinho manuscrito e clandestino, que redigistes no colégio e é voz corrente que mais de uma vez produziu sarilho grosso. Como a Biblioteca da Faculdade da Bahia pegou fogo, tal qual aconteceu depois com outra ali mesmo, por efeito do bombardeio, que eu não queria lembrar para não vos envergonhar como baiano, imaginastes que a vossa famosa tese tinha desaparecido na voragem do incêndio. Isso mesmo mo dissestes, aliviado do susto de que eu pudesse encontrá-la. Não vos lembrastes, entretanto, de que tendes colegas pérfidos, que igualmente são médicos, e são literatos, e são baianos, e que a tese havia de aparecer, ao menos num exemplar, para remédio. Também não há por aí quem dê, e eu, entretanto, posso dar notícias certas da Rosa Mística e do Manual de Tanatoscopia Judiciária, do grande herdeiro e legítimo sucessor das glórias de Nina Rodrigues na Medicina Legal...

Não há novidade maior no vosso trabalho. Apenas, à página três, um indiscreto bispou isto que só não vos reconcilia com o Apostolado da Rua Benjamin Constant porque, para tal Igreja, os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos, de onde se segue que estes não devem ser queimados, como queríeis:

“Augusto Comte, na bela teoria que apresentou de fetichismo...” etc.
Bela teoria e fresco fetichismo! Alguém me escreveu a esse propósito: “O autor disse-me, escusando-se: ‘como sabia que os seus doentes haviam todos de morrer, queria logo queimá-los’...”
Aqui vão, é claro que sem os nomes por cima, duas amostras do gênero cremação, com a vossa firma embaixo:

Quando ele exalou sua alma,
Quem estava perto, se quis
Levar aos olhos o lenço,
Levou o lenço ao nariz.

A cova – cujo apetite
Dos chacais excede a gula –
É possível que o engula,
Mas é de crer que o vomite.
Digamos, para desorientar, que a data dessas duas perversíssimas quadrinhas é de 1887.
Ainda andava eu, então, nas calças curtas de meus nove anos, e já a fama de vosso sarcasmo irradiava da Bahia para o Rio. E foi exatamente Lúcio de Mendonça. o grande intelectual acolhedor e sem inveja, com o qual viemos mais tarde a pelejar os dois juntos, quem teve, em relação a vós, como antes e depois disso repetiu em relação a tantos outros, a generosa e simpática iniciativa de chamar a atenção dos especialistas daqui para o nome do jovem colega estreante na província. Eis o que, textualmente, copiei dele mesmo em A Semana de 25 de junho daquele ano:

Um humorista baiano. – Entre nós onde os humoristas são tão raros, mormente na poesia; onde a soturna melancolia indígena se estende também às letras, em que tanto falta a alegrar-nos uma frase que cante ou um verso que assobie, é verdadeiro achado o que nos mostram num número do Diário da Bahia do ano passado. Vê-se que são versos feitos despreocupadamente, ao correr da pena, mas com faiscante jovialidade, a propósito da medida, tomada por um delegado de polícia da Bahia, chamado Fortunato de Freitas, proibindo a briga de galo. O autor, que tomo a indiscreta liberdade de apresentar aos nossos dois notáveis humoristas da prosa e do verso, José Telha – ci-devant Lulu Senior e Artur Azevedo, – se é que ainda o não conhecem – é o médico baiano Dr. Constâncio Antônio Alves, segundo ouço a um bem informado leitor do Diário da Bahia.

Pagastes bem, com o vosso discurso, a dívida contraída para com o primeiro saudador de vossos méritos literários. Ainda ficou da vossa gratidão um bom saldo dos juros da mora, para as custas devidas em pagamento pelas despesas da ruidosa contenda de 98 entre ele e nós dous, por causa do Luciano de Mendazza (leia-se Francisco de Castro).
Antes da vossa chegada, porém, já eu havia rezado o ano passado, aqui nesta sala, o penitet me diante dessa memória tão cara à Academia. Fizestes agora o mesmo. Muito bem. Fechemos o balanço dessa conta de amizade, de arrependimento e de admiração, e passemos adiante.
Não resisto, entretanto, antes disso, em dar a conhecer aos vossos confrades um outro mimo em verso de vosso humorismo:

AO MEU ESPELHO

Não esqueci, meu espelho,
A tua sábia lição.
Não foi regra, nem conselho,
Foi apenas reflexão.
Lembro-me bem desse dia.
Soluçava de paixão
E no meu quarto gemia
De cortar o coração.
Felizmente ninguém via.
Andando daqui pra ali,
Num dos meus passos te vi
E o meu choroso carão.
Ah! que vergonha senti
Por fazer tal figurão...
E logo, ao pensar naquela
Grotesca situação
(Nunca vira coisa assim)
Deixei de chorar por ela,
Passei a rir-me de mim.
Curou-me o riso a paixão.
Caso te vejas assim,
Pio leitor, meu irmão,
Nalgum momento nefando,
O papel representando
Do amor barbado e chorão,
Anda, aceita o meu conselho:
Na tua melancolia,
Vai consultar o espelho,
Pois tinha toda razão
O sujeito que dizia:
Ele reflete e nós não.

Bahia.
Agora esta ajuizada sentença escrita sobre

O CRÂNIO DE UM LOUCO

Poeta, dizes bem, o céu é um crânio.
E eu digo: mas de um doido genial:
As nuvens – são as cismas preguiçosas,
As estrelas – idéias luminosas
E este mundo – uma asneira colossal.

188...

A vossa musa ignorada, só agora despida em público por mim com esta sem-cerimônia toda, não se contentava da própria inspiração, e, como Raimundo, empreendia versões, uma das quais – Le Pin des landes, de Gautier, sonsamente referida por vós no título original em francês, no vosso discurso de há pouco, vou ler com indicação da data, que é também um magnífico sinal de vossa precocidade, segundo creio, mas não posso afirmar com segurança, pois não houve meio de apurar a vossa idade, por mais diligências que fizesse nesse sentido, e embora uma indiscreta Vária de hoje vos atire lá para as alturas remotas de 62, sem especificar se antes ou se depois de Cristo...

LE PIN DES LANDES
(Th. Gautier)

Quem das Dunas percorre o deserto inclemente,
No Saara francês, dentre o polvilho branco
Da areia, dentre relva e charcos, vê, somente,
O pinheiro surgir com uma chaga no flanco.

Porque, por lhe roubar o pranto de resina,
O homem, o grande avaro algoz da criação,
Que vive à custa só daqueles que assassina,
No seu dorido tronco abre larga incisão.
Não chora o sangue seu, que goteja, o pinheiro,
Verte o bálsamo todo e toda a seiva até,
E à margem do caminho eleva-se altaneiro,
Qual soldado a sangrar, que quer morrer de pé.

Também o poeta é assim, nas dunas deste mundo:
Se o não ferem, conserva, inteiro, o seu tesouro,
Mas, se lhe rasga o seio algum golpe profundo,
Derrama os versos seus, divino pranto de ouro.

23 – abril – 1888

São ainda desta fase, mas quatro anos mais moço do que a tradução daquela poesia do parfait magicien des lettres françaises, uns tercetos condoreiros recitados em 1 de outubro de 1884 em honra de Pedro Luís, patrono da Cadeira em que o nosso preclaro João Ribeiro substituiu ao delicado e glorioso poeta dos Sonetos e Rimas.
Deixo de ler esses tercetos, para não alongar ainda mais o meu discurso, em cuja publicação, aliás, farei incluí-los na íntegra.

A PEDRO LUIZ

Ele era moço, porém, grande e forte,
Nunca manchou su’alma e seu país.

PEDRO LUÍS

........................................................................
Subia mais e mais a treva funerária...
No crânio do poeta – estético modelo,
Lembrando as criações da antiga estatuária –

Onde o moderno ideal gravou eterno selo,
A vida anseia e vibra e treme e se aniquila,
E estende-se do nada o vasto pesadelo,
Da lívida agonia a lágrima cintila:
Cerra-se sobre o bardo a funda treva informe,
No nevoento céu da mádida pupila

A pálpebra caiu como um crepúsc’lo. Dorme
Na torva eternidade – essa floresta hirsuta –
Mas inda os rubros tons do seu clarim enorme

Listram de tom de sangue o espaço que os escuta,
Túmido está o ar de cânticos de guerra
Quando o venceu a morte, em traiçoeira luta,

Fez um rumor igual – seu corpo ao vir em terra –
Ao da queda de ipê, de atlética estatura,
Cujo fragor revolve os côncavos da serra.

Este tremendo baque abriu a cava escura,
O leito onde repousa o campeador da idéia,
Na glória marcial da fúlgida armadura,

Mas não pode quebra-lhe a alma giganteia,
A “deusa varonil” que altiva dominava,
Desde os vergéis do idílio as grimpas da epopéia.

No punho do poeta o verso era uma clava.
Quando o incandescia um grande pensamento
A púrpura caudal da rugidora lava

Penetra o porvir no seu transbordamento,
Abalara ao impulso ingente do seu ombro
A “Mentira de bronze”, um triste monumento.

E em frente ao pedestal – da tirania um combro –
Seu estro desgranhara a juba flamejante,
Bramindo imprecações de cólera e de assombro.
Da mísera Polônio a angústia cruciante
Cristalizou num canto, e os cárceres transpondo
Da história, tendo n’alma a indignação de Dante,

Amostra então o vil patíbulo hediondo
De Silva Xavier – o grande visionário –
Como o globo ocular – “carbúnculo redondo” –

Fixo eternamente à vista do sicário
Caim, como sonhara Hugo, do Inconfidente
O olhar – ensangüentando a neve do sudário –

Rubro, sinistro, longo, implacável e ardente
Flagela do país a pávida consciência
Como um remorso austero – inexoravelmente.

Salve, bardo imortal da nobre resistência
Contra o crime! Da morte aos pálidos luares
Que te mandam por entre a dúbia transparência

Das brumas do sepulcro – uns raios singulares,
Tomaste as proporções fantásticas de um vulto
Perdido na mudez das regiões polares.

Eu vejo-te na história esplêndido, insepulto,
– Como as aparições errantes das baladas –
Exigindo da pátria a dívida de um culto.

Sinto-te palpitar nas ondas agitadas
Das estrofes viris, indômitas, guerreiras,
Donde emergem, passando em largas revoadas,

Como numa batalha – acima das fileiras –
Sonoridades de aço e músicas bizarras,
Clamores de canhões e sombras de bandeiras
E o épico estrugir das rútilas fanfarras;
Na ode, águia real, altívola, indomável,
Com asas de procela e sanguinárias garras:

E no seio da pátria – a Déa incomparável –
Cujo amor lhe agitou a mente luminosa
E as cordas lhes vibrou da lira formidável.

Salve, sombra imortal! E que a arte poderosa,
De Fídias glorifique à de Manzoni. É justo.
Levantem-lhe perene estátua gloriosa;

Mas podem dispensar o mármore robusto
Pois, ó cantor dos sons enérgicos e tersos,
Basta para te erguer o monumento augusto
O bronze perenal dos teus soberbos versos.

Foi esse o primeiro rebate de vosso espírito de combatividade política, tantas vezes posto em prova mais tarde na imprensa independente.
Idêntica marca de nobre liberalismo ressumbra com eloqüência e virilidade da extensa produção em oitavas, que também divulgarei com esta fala de saudação, À Pátria Livre, recitada a 13 de maio de 1888, na redação do Diário da Bahia, da qual fizestes parte, com o Dr. Manuel Victorino, de 1883 a 1890.

À PÁTRIA LIVRE

Foi há pouco... Enorme, escura
Arrojou-se a multidão,
Tomada dessa loucura
Sagrada da redenção.
Uivam sinistros pesares,
Rugem raivas seculares...
É a alma de Palmares
Palpitando em Cubatão...
E o poder, impenitente,
Treme na sua curul:
Trevosa ameaça ingente
Desenha a sombra no azul,
Rebrama a negra coorte,
E vê-se o heroísmo forte
Da “Tróia negra” do norte
Nas “Termópilas do sul”.

São os tristes foragidos
De um degredo secular;
Foram outrora vencidos
Vêm a desforra tirar.
E que a negreira fereza
Não oponha uma represa
À raiva da correnteza,
Ao desvario do mar.

Mas ai! a luta se trava,
O sangue corre inda mais;
E o brio da raça escrava
Vence os negreiros chacais.
Vibram cóleras tigrinas,
Trocam frases assassinas
A boca das carabinas
E a língua eril dos punhais.

Mas os “Leônidas novos”
Rudes leões a bramir,
Que mostram do mundo aos povos
Como sabem resistir;
A legião que não se abate,
Inda a sangrar do combate,
Canta o hino do resgate,
Marselhesa do porvir.
Venceu, enfim, essa onda
Que se espraia e hoje é mar;
A negra bastilha hedionda,
Que manchava a terra e o ar,
De repente se esboroa;
Cavo baque o mundo atroa...
Obedeceu a coroa
À vontade popular.

Porém no deslumbramento
Da pátria paira um negror;
Sombrio pressentimento
De que se misturem dor
E delírio alvissareiro,
O riso e o luto agoureiro;
Exéquias do cativeiro,
Funerais do imperador.

A que sentimentos fundos,
Não verga a princesa!... Eu sei
Que oscilava entre dois mundos
Ao firmar a grande lei
Que as algemas despedaça:
Prevendo a glória e a desgraça,
Ante a aurora de uma raça,
Ante a agonia de um rei.

Quando em seus olhos magoados
O pranto fulgindo vai,
Pergunta o povo, em cuidados,
Se esta lágrima que cai,
Tal qual um diamante vivo,
É angústia ou lenitivo;
Se é bênção por um cativo,
Ou se é prece por um pai.
A morte... sempre funesta...
Se a ceifa sinistra faz.
A pátria em prantos protesta
Contra sanha tão voraz.
Ela que a Castro prostrava,
Essa alma feita de lava,
O gênio da raça escrava,
“Musa libérrima, audaz”.

A Luís Gama, temerário
Náufrago desse escarcéu,
Que vê, mas só do sudário
Da pátria rasgar-se o véu,
Alma que mais brilho assume
Da pele sob o negrume,
Como dos astros o lume
No cavo ônix do céu.

E o bardo-tribuno, Andrada,
O Demóstenes do Bem,
Arauto dessa alvorada
Quando vinha muito além;
Fusão de Hugo e Virgílio,
Cantando a ode e o idílio...
Hoje perdido no exílio
Donde não volta ninguém.

Mas se estes vultos se somem
Da morte nos turbilhões,
Avulta um gigante, um homem
Da glória aos loucos clarões.
Herói não vencido – Dantas,
Que entre emoções as mais santas,
Vê quebrarem-se-lhe às plantas
Os bravos das multidões.
E tu, pátria redimida,
Não nutras temores vãos,
Abre o seio estremecida,
A todos que são irmãos.
Do entusiasmo aos rumores
Sagra com palmas e flores
Os velhos batalhadores,
E os novos concidadãos.

Não podia ser de outro modo, sabendo-se terdes estado no Recife e obtido matrícula na Faculdade de Direito em 1880. Obrigado, por motivo de grave moléstia, a desistir do curso jurídico e a regressar à Bahia, devíeis, contudo, haver bebido fartamente ali todas as auras da liberdade.
Pernambuco foi sempre um vulcão da idéia nova, e a propaganda abolicionista corria naquela província, berço e palco da oratória apolínea e convincente de Nabuco, muito mais intensamente do que nas outras do Império.

Entretanto, em vossa terra, panejavam também bandeiras de legenda. Debaixo de uma delas, a do Senador Dantas, alinhastes a vossa metralha, e, no cursar a velha Faculdade, não vos esquecestes de ir simultaneamente estudando cá fora as outras doenças do povo propriamente dito, doenças mais sérias, porque mais difíceis de curar, e só se curam com muita higiene que é, aliás, a única medicina em que se deve crer, segundo ouvi de Afrânio Peixoto, que, para isso afirmar, possui, tal qual vós, uma tríplice autoridade: a baiana, a hipocrática e a acadêmica.

Como quer que seja, o fato é, que saístes de lá um médico inútil para a clínica, mas, em compensação, um batalhador perfeito para o ideal.
É disso prova exuberante o discurso que pronunciastes como orador oficial de vossa turma. Tenho sob os olhos o Diário da Bahia de 25 de dezembro de 85, que o publicou na íntegra. Deveis amar profundamente essa peça, porque ela vos definiu com inteira precisão, logo de entrada na vida pública. Na vibração calorosa dessa fala, com a qual vos despedistes da velha escola, onde andastes a aprender com tanto afã uma arte que não haveríeis nunca de praticar, vejo nitidamente os germes de vossa escrita de combate, anos depois, na primeira fase do Jornal do Brasil.

Rodolfo Dantas, não havendo talvez logrado preferência para a compra do Jornal do Commercio ao Conde de Villeneuve e aos seus sócios Picot e Leonardo, os quais, com toda razão, optaram em favor do antigo, dedicado e capacíssimo servidor de casa Dr. J.C. Rodrigues, desistiu do velho e lançou os alicerces do novo órgão, com a colaboração valiosa do digno sobrinho daquele titular na administração da folha.
Aí, sem demora, marcastes com brilho e honra um lugar de destaque ao pé de Nabuco, Sancho de Barros e Gusmão Lobo.
Aliás, não precisastes para esse efeito senão continuar a oração da formatura, proferida seis anos lá na vossa Bahia.

Não vos perdoarei de modo nenhum se não incluirdes essa admirável peça no vosso segundo livro, que, para aparecer, pode bem prescindir de esperar que passeis à Academia Suplementar, cuja existência denunciastes e eu imediatamente confirmei, como me cumpria, sem saber, porém, se ela estará mesmo todinha no céu, ou se não andará também um pouco dispersa no outro mundo, parte pelo Inferno e parte pelo Purgatório, como acontece com a Academia efetiva, com a sua sede no Rio e gente em São Paulo, Montevidéu, Londres, Washington, Nova York, Roma e não sei mais onde...
Bastaria a peroração, calcada sobre uma linda imagem colhida em Renan, para vos mostrar desde logo como um escritor de raça.

Mas, muito mais do que isso, o que me espanta, em todo correr desse discurso, é a profunda nota de análise e de crítica social do momento brasileiro de então. Vergastes corajosamente da tribuna a vergonheira inominável da escravidão, cujo desaparecimento a ironia dos destinos e dos rótulos ia reservar daí a três anos aos conservadores. E erguestes, naquele meio e naquela ocasião, palavras de fé, que deviam ter escandalizado um pouco o auditório oficial e merecem ser recordadas:

Meus Senhores! Não sou daqueles que, por uma falsa compreensão de patriotismo, encaram com desprezo a nossa vida social, desconhecem em nós os impulsos civilizadores e pronunciam-se com este violento pessimismo que cada vez mais vai conquistando adesões.
Mas também, por maior que seja a tolerância de que se revista o nosso espírito não poderemos estudar, sem uma espécie de inquietação, o resultado dos vícios constitucionais que atrofiaram em nós a suprema energia com que os povos fortes realizam as suas aspirações de grandeza e de progresso.
O Brasil, por um conjunto de circunstâncias que não podemos estudar aqui, apresenta-se a nossos olhos tão depauperado que, a fim de tornar-se apto para a luta pela vida, necessita de uma medicação poderosamente enérgica.

Para serem debelados estes males, uns que vêm dos tempos coloniais, e outros de mais perto, é indispensável que todas as nossas energias, devidamente utilizadas, contribuam para a obra de demolição e transformação nacionais.
Grande parte dessa missão gloriosa nos está reservada; à geração moderna compete esta reconstrução urgentíssima e a vanguarda precisa ser o nosso posto nesse brilhante movimento de rebelião contra as coisas que devem perecer.

Havia uma bela palpitação de mocidade nessas palavras, verdadeiro ardor patriótico e singular destemor de moço.
Valeu-vos, porém, essa fé? Lograstes acaso conservá-la? Sentistes porventura que ela não diminuía?
Ignoro. O que sei é que a República vos trouxe para o Rio, com a impressão de que o vosso programa sadio e novo estava naturalmente vitorioso.
Acontecia, entretanto, que a aludida República não tinha propriamente sido feita como se fizera a Abolição.

Di-lo, pelo menos, o grande Rui, no prefácio da obra do nosso buliçoso e bem informado confrade Osório Duque-Estrada, e com a autoridade de propulsor maior tanto de um movimento como de outro. A Abolição, a seu ver, realizou-se “por obra do sentimento nacional na plenitude de sua natureza”. Das revoluções que temos tido, opina ainda o incomparável mestre, a Abolição “é a que mais honra a nação, de cuja vontade emanou, e a que traduz a mais bela, a mais límpida, a mais santa, a mais profunda, a mais útil de todas as nossas conquistas morais, de todas as nossas transformações econômicas, de todas as nossas renovações sociais nos quatro séculos de existência deste ramo do gênero humano”.
E a República? Esta, contrasta Rui Barbosa, “originou-se de um incidente gerado pelas desordens de um organismo predisposto pelas suas condições de irresistência e inércia a não lhe resistir”.
Será preciso pôr mais na carta, para adivinhar o desencanto que aguardava aqui no Rio ao autor dos versos candentes a Pedro Luís e ao 13 de Maio, e ao veemente orador da turma dos médicos baianos de 85?

Não tive tempo de consultar as coleções do Jornal do Brasil do ano de 91. Mas sei, pelos aplausos generosos que Laet vos tributava em outra folha, que bulistes com bastante gente e destes muito que fazer e que falar.
Caminhávamos, então, cegamente e loucamente, da Constituição para o golpe de Estado, e a vossa bonita plataforma de jovem, lida seis anos antes no berço natal, por ocasião da colação de grau, pelo que agora vos estava sendo dado assistir aqui, era apenas uma bandeira rota, ultrajada pelos falsos democratas, simples acólitos do militarismo triunfador.

Dessa convicção para a oposição não havia senão um pulo a dar, e estou que destes. No fundo, as grandes figuras da patrulha intelectual do Jornal do Brasil não fizeram outra coisa.
 Mas a vossa oposição, como a das referidas figuras, era mais propriamente literária do que política. Muita gente, ainda hoje, se engana, supondo que esta é pior do que aquela. Não é tal. Pode ser que assim realmente seja, quando a literatura política só pode descompor e escreve mal. Mas quando escreve bem e não descompõe e apenas ironiza, é o diabo, e não haverá quem lhe resista, a não ser um Floriano, que não foi medroso nem tolo, e enfrentou em nome da ordem aquilo que Napoleão, no seu tempo, costumava chamar ideólogos, quando topava um Chateaubriand ou uma Staël.

Mas não cheguemos assim tão depressa à segunda fase do Jornal do Brasil, com Rui Barbosa e à vossa ida forçada para a fazenda de Rodolfo Dantas, em São Paulo, onde creio que passastes, como outros confrades nossos em Minas Gerais, todo o tempo da revolta de 93, de medo de ser preso ou então fuzilado, receio injusto, como poderá provar o nosso grande Luís Murat que aqui está vivo e são, para dizer com imparcialidade que o marechal, ao qual também combatia apaixonadamente, não era tal um sanguinário sem entranhas.

Joaquim Nabuco, com quem tivestes a mais íntima convivência naquela folha e de quem pintastes, como de Rodolfo Dantas, um admirável retrato no vosso recente e primoroso livro Figuras, não quis deixar a outrem o encargo de louvar a vossa preciosa colaboração no início daquele diário, que pretendeu copiar entre nós os modelos clássicos da imprensa francesa, o Temps e o Journal des Débats. Aqui está a carta que ele próprio vos dirigiu, ao retirar-se da redação do Jornal do Brasil:

Rio 29 de dezembro de 1891. – Meu caro amigo. – Deixe-me dizer-lhe adeus, acrescentando que de nada levo tão agradável impressão da minha presente estada no Rio como da nossa convivência no Jornal do Brasil. Creia que de longe continuarei a acompanhá-lo com a simpatia que me inspira um talento de que se pode dizer que é a pérola de um caráter. Guarde sempre um pouco de sua afeição para o seu – Amigo e colega admirador – Joaquim Nabuco.

No artigo XI da série – A minha formação política (Comércio de S. Paulo, de 2 de junho de 1896), depois de se referir a Rui Barbosa e José do Patrocínio, escreveu ainda Joaquim Nabuco estas frases, que caem como um honrosíssima comenda sobre o vosso fardão de acadêmico e podiam ser pregadas aí com o alfinete de ouro da justiça num passador de grande oficial:

Ainda outro, ao acaso. Haverá quem não sinta a música inata de Constâncio Alves? Este é bem da ordem dos pássaros, tem o canto, a prosa dele gorjeia, sobe, trina como a voz de um rouxinol; no entanto se quisesse reduzir a verso a ironia melodiosa que tem em si, que restaria dela?

O mestre não sabia do poeta, só agora descoberto por mim. E achou, por isso, de alterar de algum modo o que disse, e que ficou assim copiado com retoque no livro A Minha Formação: “Agora outro, muito diverso. Haverá quem não sinta a música inata de Constâncio Alves? Este é bem da ordem dos pássaros, tem o canto; a prosa dele gorjeia, sobe, trina; no entanto, se quisesse reduzir a uma obra d’arte a ironia melodiosa que tem em si, que restaria dela?”

Muito melhor elogio é, porém, aquele que o ainda então vosso colega vos consagrou, no seu artigo a respeito do Jornal de Brasil, intitulado: “Um perfil de jornal”. Acredito que tereis gosto em reouvi-lo:
O traço característico do Jornal do Brasil é ser um jornal saído de um gabinete de estudo. Não era preciso a contribuição dos mestres (Emile de Laveleye, Paul Leroy-Beaulieu) para se ver que ele representa antigas simpatias pelas ciências sociais. A colaboração de tantos especialistas (cartas militares, cartas navais, H. de Gorceix, Barbosa Rodrigues) revela a hábito de buscar informações nas melhores fontes. A crítica literária (Teófilo Braga, José Veríssimo) alia-se à literatura pura (de Amicis, Fialho de Almeida), à crítica de ciência e d’arte (Schimper, Camarate), enquanto a vibração da nota efêmera do dia (C.A., um pseudônimo que em outro tempo eu leria Joaquim Serra) sai fácil, matinal e sonoro como um gorjeio de pássaro.

Com esse intelectualismo requintado está-se a ver que o jornal, como jornal, não podia deixar de dar com os burros n’água.
Mas ficou através do tempo e da distância a união e a comunhão de tão belos e finos espíritos.
Muitos anos depois, tendo de viajar, rumo à Europa, a fim de tratar da questão de limites do Brasil com a Guiana Inglesa, não quis Nabuco fazê-lo sem um afetuoso adeus ao antigo companheiro:

Rio, 29 de abril de 1890. – Aceite, meu querido Constâncio, com o meu abraço de despedida, a certeza de que seu nome terá sempre o dom de evocar para mim as mais gratas impressões e o mais intenso interesse, qualquer que seja o intervalo. Seu muito admirador e amigo Joaquim Nabuco.

A Rodolfo Dantas sucedeu, tempos depois, na direção do Jornal do Brasil, a pena sem rival de Rui Barbosa. A este também bem vos tem ligado sempre até hoje a mais fervorosa admiração, correspondia com um apreço cordialíssimo, que é, como a estima de Nabuco e de Rodolfo Dantas, um título de grande honra para vós. Fostes o orador oficial por ocasião da festa do jubileu do glorioso brasileiro e fixastes numa cálida oração o vosso entusiasmo por ele.

Em 93, no mais aceso da luta do formidável atleta contra Aristides Lobo, o vosso riso sardônico auxiliava poderosamente a campanha. O próprio e grande Rui referia de público e entre gabos essa vossa preciosa ajuda.
No Jornal do Brasil de 9 de agosto daquele ano escrevia o Mestre:

Quando o Sr. Aristides estiver disposto a produzir outra vez primores, não se constranja: é mandá-los diretamente a esta casa. Na ausência do redator principal, o nosso eminente companheiro da seção vizinha, o receberá com as devidas reverências.

O “companheiro da seção vizinha” éreis vós. “As devidas reverências”, já se imagina quais podiam ser, num homem como vós, que se jacta de não freqüentar salões, do que vos veio, talvez, o hábito dessas curvaturas às avessas, cumprimentos difíceis de ser aceitos de boa cara.
“O Inimitável”, que era como Rui titulara aquele artigo contra Aristides Lobo, não morria de caretas, e respondeu ou mandou responder com sete pedras.
Retruca-lhe Rui Barbosa com um terrível editorial – O Almocreve de Petas, em 22 de agosto de 1893, e ainda aí se alude aos vossos dardos:

Na sua monomania insaciável de trincar vítimas, assesta-nos agora as mandíbulas irrequietas, e, depois de supor que nos intimidava com a ameaça de liquidar em nossa pessoa as suas iras enfuriadas pelo espírito sutil do nosso ilustre colaborador do Dia-a-Dia, como se aqui por casa não houvesse também todas as armas da repulsa, desde os dedos da mão até à bala do revólver, vem saltear-nos agora com uma denúncia de morte.

Um antigo florianista poderá por aí tirar da candura de vossa intervenção cheia de graça no debate político conclusões a que não me aventuro, porque vos sei pacatão por índole. Registro apenas que o tempo continuou a esquentar depois de 27 de agosto.
A 6 de setembro seguinte rebenta a revolta da esquadra. Não tenho notícias certas de vossa valentia panfletária, desde então até setembro de 1896, quando reaparecestes, com o mesmo apreciado e perigoso Dia-a-Dia, no Jornal do Commercio. Apenas sei, e isto mesmo vagamente, que andastes espairecendo um pouco na propriedade agrícola de Rodolfo Dantas, o que me basta como informação, porque o resto dizem logo as primeiras linhas de vossa colaboração no velho órgão, as quais passo a ler: “Há três anos o Governo suspendeu no gancho do estado de sítio, que não é um estado satisfatório, as garantias constitucionais e eu para imitá-lo, suspendendo também qualquer cousa, suspendi a pena.”
A história se repete, mas vós tivestes o bom gosto de não vos repetir. Felicito-vos cordialmente por esse progresso, como acadêmico, que tem a obrigação de ser conservador.

Na Academia Francesa, que Anatole vive a escandalizar com o comunismo ultra-revolucionário do grupo de La Clarté, pode, hoje, haver o risco de não ser assim; mas lá mesmo, sous la coupole, a totalidade, menos ele, prefere ficar com Richelieu e Napoleão, o que é mais razoável, e permite a cada imortal escrever melhormente os seus livros e tratar sem susto das coisas da vida e dos problemas sedutores da arte.

A melhor prova de exatidão dos conceitos que estou emitindo está justamente na vossa eleição, que pode ser feita sem estorvo na própria tarde e na hora mesma em que se trocavam os últimos tiros de fuzil em Copacabana.
Benefícios da ordem, Sr. Constâncio Alves, vantagens da calmaria que nem sempre era o que havia no zinir de vossas hervadas flechas de antanho...
Floriano quebrou-lhe as pontas galhardamente, e hoje tem estátua.

Nessas cousas, o melhor é fazer como ele fez para triunfar: nada de palavras. Quando se fala demais, como quando se escreve em excesso, perde-se pela língua e perde-se pela pena.
O silêncio, sim, é uma arma formidável e irrita muito mais. Eu não aconselharia recurso diferente desse, que está sempre nas nossas mãos e ninguém nos pode tirar, para que a lei de imprensa, ora em discussão no Senado, seja um código de honra e de moral e não um assalto à liberdade de pensamento e ao direito de livre crítica.

O Jornal do Commercio, com o seu eminente diretor foragido, não precisou de outro canhão para combater o Marechal de Ferro. Não podendo, como folha tradicionalmente conservadora, apoiar o movimento subversivo encabeçado pelos almirantes Custódio e Saldanha, mas não querendo também defender o Presidente, fechou-se em copas e nunca deu a menor notícia do que se estava passando. Quem percorrer as coleções do velho órgão, voltará convencido de que a revolta da esquadra em 93 foi uma formidável peta.

Poderíeis talvez ter colaborado com muito mais eficiência nessa grande mentira com o vosso mutismo do que com as vossas farpas. O humorismo tem desses desastres. É da vida e é do humour...
Não definirei uma cousa nem outra. Não há nada mais difícil de se definir do que sejam estas duas cousas a um tempo grandes e pequenas: a vida e o humour.

A primeira é o que é; o segundo naturalmente será o que entender que deve ser. Foi um em Rabelais e outro em Laurence Sterne; foi mesmo dois em Montaigne, a crer no que diz aquele admirável Paulo Stapfer, de quem nos destes uma fotografia tão pitoresca nas Figuras: ...“le merveilleux pouvoir qu’il eut de se dédoubler, pour donner la moitié de sa personne en spectacle à l’autre moitié: faculté rare et singulière où réside, à mes yeux, le secret le plus profond, l’essence même de l’humour.”
Não sei como vos arranjareis nesse pitoresco desdobramento de personalidade. Será bem o caso de uma consulta àquele espelho que contastes em tão risonhos e belos versos: “ele reflete e nós não”.
Falo como absoluto desconhecedor do gênero. Quem vos devia receber era o nosso Afrânio Peixoto, que dissertou tão magistralmente sobre o humour na sua conferência da biblioteca. Eu nunca entendi aquelas páginas de reticências do Brás Cubas, o que não me impede de ter a Machado de Assis na mais alta conta e veneração. Entendo, porém, Renan e Anatole, “humoristes excellents, parce qu’ils furent ou sont encore, pour notre instruction et pour notre plaisir, des connaisseurs malins et souriants de l’homme et de leur propre moi”.

Creio que, com esta frase tomada de empréstimo, vos enquadrei com justeza dentro de vossa família literária própria e adequada. E completo a gravura, ainda com o traço alheio de Paul Stapfer:

Ce genre d’esprit est, en effet, aux antipodes de l’art classique, étant objectif et personnel avec frénésie, raillant toutes les règles, niant la mesure, l’ordre et la proportion, détruisant à cœur joie la beauté de la forme. Mais comme il se delecte au paradoxe il est capable aussi, par une contradiction, très heureuse, de s’allier au style le plus parfait, au goût le plus exquis, à l’atticisme le plus pur...
Fostes tido muito tempo como um anticlerical. Que escritor o não terá sido e o não é, na apreciação estrita do fenômeno religioso, através de argumento de ocasião? O que se precisa ver é o que está no fundo do sentimento de cada um. E, aí, só vos poderá chamar de herege quem não tiver mergulhado um pouco na vossa obra, ou não conheça de vossas predileções pela vida dos santos, sobretudo de São Francisco de Assis, que aconselhava a alegria e via o mundo como poeta.

Pôde por isso mesmo louvar bastante o vosso último livro o maior escritor católico da nova geração brasileira, o Sr. Jackson de Figueiredo, a quem as correntes espiritualistas de nossa terra devem já os mais assinalados serviços. Ele negou um pouco o vosso humorismo, porque acredita mais na vossa piedade. Nós, porém, não temos necessidade de entrar nesses pormenores e nos limitaremos a dizer que vos elegemos porque acreditamos em vós e na vossa capacidade de ação literária. O resto não é conosco. É convosco e com os outros.

À vontade! Estais em vossa casa. Sede bem-vindo, Sr. Constâncio Alves!