(Colaboraram Karine Rodrigues e Roberta Pennafort)
O Estado de São Paulo (05.11.2003)
RIO - A escritora Rachel de Queiroz, morreu dormindo, vítima de enfarte, ontem, aos 92 anos, em seu apartamento, no Leblon, zona sul do Rio.
A irmã dela, Maria Luiza de Queiroz Salek, contou que Rachel passou a segunda-feira bem, conversando. Ela foi encontrada morta às 6 horas.
O velório seria realizado na Academia Brasileira de Letras (ABL), casa que a recebeu no dia 4 de novembro de 1977. Foi a primeira mulher a ocupar um lugar entre os imortais. O enterro estava marcado para hoje, às 9 horas, no cemitério São João Baptista,em Botafogo, na zona sul. Maria Luiza disse, pela manhã, que o corpo não seria sepultado no mausoléu da ABL, mas sim ao lado do marido de Rachel, o médico Oyama de Macedo, morto em 1982.
A escritora completaria 93 anos no dia 17. Cearense de Fortaleza, ela vivia no Rio desde 1939.
Maria Luiza acredita que a morte da irmã tenha ocorrido de forma serena. "Foi melhor assim, porque ela não sofreu. Perguntei na segunda-feira como ela se sentia e Rachel respondeu que só não estava melhor porque não estava no Ceará", contou. A irmã lembrou que Rachel queria voltar à terra natal, à sua fazenda, perto do município de Quixadá, no sertão do Ceará, antes de morrer. A última visita foi há um ano e meio. "Nunca me divorciei do Ceará", dizia Rachel.
A escritora sofreu uma isquemia em 2000 e, há dois meses, levou um tombo, mas, segundo Maria Luiza, o quadro clínico dela era bom. Até o fim de março, a escritora publicava crônicas semanalmente no Estado de São Paulo - ela ditava os textos e Maria Luiza digitava no computador. A irmã, que mora na Barra da Tijuca, na zona oeste da cidade, ia diariamente ver Rachel.
A ligação entre as duas era muito forte: Rachel só teve uma filha, que morreu ainda bebê. Mais velha de cinco irmãos, ajudou a criar Maria Luiza, 17 anos mais nova. "Rachel adorava crianças. Dizia que eu era sua filha, tratava meus dois filhos como netos e meus três netos como bisnetos. Ficava irritada quando diziam que não era verdade. Gostava de fazer todas as vontades deles e estava ansiosa pelo nascimento do quarto 'bisneto.'" Rachel chegou a escrever crônicas sobre "a artede ser avó". Certa vez, a escritora comentou, entre risos:"Quis ter uma porção de filhos e de netos, mas nunca tive. Tenho de me contentar com os filhos da Maria Luiza."
A irmã acha que ela nunca sentiu falta de ter uma família própria. "Rachel tinha sua família improvisada, muito completa."
Rachel de Queiroz estreou na literatura aos 19 anos,em1930. Retratou no romance O Quinze a terrível seca que levou seus pais a deixarem o Ceará por um período de dois anos (1917-1919). O livro foi publicado com recursos próprios, numa edição de apenas mil exemplares. Mas suficiente para chamar a atenção da crítica e ganhar o primeiro prêmio da Fundação Graça Aranha,em 1931.
Três anos antes da publicação do livro, começou a escrever em jornais. Primeiro sob o pseudônimo Rita de Queluz, no jornal O Ceará, no qual o editor acreditou que a crônica tivesse sido escrita por um homem. Depois, colaborou com o Diário de Notícias, O Cruzeiro,O Jornal, Diário de Pernambuco e o Estado de São Paulo. Certa vez, indagada se se considerava uma jornalista, Rachel respondeu:"É o que sou, é a minha profissão."
Após O Quinze, teve editado os romances João Miguel (1932), Caminho das Pedras (1937), As Três Marias (1939) e O Galo de Ouro (1950), publicado em capítulos na revista O Cruzeiro. Depois disso, dedicou-se às crônicas - escreveu mais de 2 mil -, reunidas em seis livros, e ao teatro, com as peças Lampião (1953)e A Beata Maria do Egito (1958). Somente em 1975, Rachel voltou ao romance com Dora Doralina.
Em 1992, após mais umlongo intervalo, publicou o livro considerado sua obra-prima, Memorial de Maria Moura. "Eu não gosto de escrever. Escrevo porque esse é o meu ganha-pão. (...) Sou muito preguiçosa", chegou a declarar. Embora tenha ajudado a fundar o Partido Comunista, acabou se desentendendo com os companheiros e deixou a sigla. Dizia que queriam interferirnoconteúdode seus livros. Desafeta de Getúlio Vargas, Rachel de Queiroz participou da conspiração intelectual para a derrubada do então presidente João Goulart. Por diversas vezes, a casa dela serviu para reuniões do grupo que ajudou na queda de Goulart, como diz no livro biográfico Tantos Anos.
Grato, o marechal Humberto Castello Branco, que veio a ocupar a Presidência, acabou se tornando um grande amigoe a visitava no Rio e no Ceará. Quando morreu, em um desastre de avião,em18 de julho de 1967, havia acabado de sair da fazenda de Rachel em Quixadá. Rachel viajaria com ele, mas desistiu, na última hora. Rachel não tinha religião e dizia não ter medo da morte. "Não acredito em Deus nem na imortalidade da alma."
06/06/2006 - Atualizada em 05/06/2006