Aceleram-se, nestes dias, fenômenos inéditos no quadro da nossa tradição democrática, que apontam à ruptura, talvez sem volta, em muitas das premissas sobre a ordem social e o Estado de Direito. Deparamos, de saída, essa inédita cooperação popular para a paga das multas dos condenados pelo mensalão. Entra em causa a quebra do consenso sobre a justiça do castigo e da indenização pública imposta aos réus, senão, já, num confronto com o decidido na justiça. O tamanho dessas arrecadações depõe em favor do possível teor político dessas sentenças, e entremostra uma inconformidade da opinião pública com o acerto dos pronunciamentos judiciais. O paradoxo leva o Ministro Gilmar Mendes a sugerir o carreio desses enormes montantes para uma compensação nacional de todos os desvios financeiros imputados ao dito esquema. Não há como subestimar o que há de rebeldia com a desmesura das penas impostas a Dirceu e a seu grupo.
Interroga-se, também, até onde essa democracia da praça e do protesto, por outro lado, perdeu a sua espontaneidade e entra no profissionalismo da baderna paga. Desapareceria a voluntariedade do cidadão dos primeiros dias de protestos, sendo substituída por esta habitualização do tumulto, com desordeiros pagos à hora, no jogo manipulado de choques com o aparelho da ordem e sua escalada. Estaria em causa um empenho de desestabilização do sistema num quadro de campanha eleitoral. É nessa mesma linha que o país se interroga sobre o teor político a avançar sobre o teor legal nas manifestações do judiciário, no timbre da mantença das atuais condenações dos protagonistas do mensalão, na quase impaciência nos descartes dos recursos. Configurar-se-ia um risco ao Estado de Direito, nestas passagens sôfregas à coisa julgada, numa satisfação do presente moralismo das classes médias do país.
E é, também, o que agora se pergunta diante desse mesmo avanço democrático, e em função da conquista das votações a descoberto das cassações de mandato pela Câmara. O fim do voto secreto, nesse caso, não eliminou a possibilidade do dissenso, fugindo à presunção de apoio aos culpados que representaria, às claras, o voto em seu favor. Aí está, ao lado das taxas normais de ausência justificada ao voto, o número de parlamentares que, estando na casa, não compareceram ao pleito.
As novas medidas da votação ostensiva não vão eliminar o compadrio, e a ameaça de um crescendo de ausências pode, no futuro, colocar em risco o reconhecimento das evidências de culpabilidade. Mantêm-se as solidariedades parlamentares e o jogo das suas alianças, independentemente do peso da opinião pública e de suas expectativas.
De toda forma, só se põe mais à prova, nestes dias, o avanço da nossa democracia, a ecoar o repúdio à corrupção, ínsita ao velho status quo e à máquina das clientelas. O processo do mensalão vacinou o petismo emergente, num progresso de sua toma de consciência para além de uma estrita e mera sobrevivência política para a próxima eleição.
Jornal do Commercio(RJ), 25/2/2014