O horror do crime de Anders Behring Breivik põe em causa drasticamente a diferença dos níveis de civilização atingidos pelos povos nórdicos diante do mundo contemporâneo. A repressão à criminalidade e o castigo das penas não passam normalmente de 20 anos, para não falar da abolição, já há mais de século, da pena de morte. Os tribunais recorrerão a expedientes protelatórios para manter na cadeia o facínora por mais de duas décadas, se já não beneficiado pela soma generosa de indultos que prevê a lei, por bom comportamento na cadeia. A solitária é uma exceção que, via de regra, não pode durar mais de vinte dias. E o confinamento não exclui a televisão mais moderna, o banheiro privado e os passeios diários no pátio da penitenciária. Estão também abertos a detidos como Breivik cursos de culinária e artesanato, bem como de estímulos à leitura e à criatividade. A Noruega se orgulha de uma taxa de recuperação de 70% dos prisioneiros após o cativeiro.
Não temos precedente dessas 73 mortes, em responsabilidade individual, fora dos morticínios por bomba ou explosão, em catástrofes como a de Lockerbie pelo terrorista líbio no céu da Escócia.
O inacreditável se soma ao absoluto calculismo da empreitada, na pregação do novo templário, e no extremismo reverso das guerras de religião começadas pelo 11 de setembro. Não se pense no excludente da loucura. Tratar-se-ia, como justificativa, de uma legítima defesa do Ocidente ameaçado pelo multiculturalismo. E é dentro de um script rigoroso que Breivik apostou na sua captura e não na morte pela polícia norueguesa, no que via como a gloriosa aparição mediática nos interrogatórios da justiça.
As 1.500 páginas de seu manifesto são o recado de quem se vê como profeta em repouso, nos próximos anos, certo do impacto de seu anúncio. E aí estão as primeiras reações, em que um sentimento comum de uma Europa exclusivista e fundamentalista juntou várias vozes numa alarmante indicação de um inconsciente coletivo de repulsa radical ao mundo das diferenças do nosso tempo. É esta mesma Noruega do primeiro-ministro Stoltenberg que dá, também, o passo adiante, no mais difícil dos desarmes, que só possibilita a mais profunda das democracias, mantendo a extrema liberdade de expressão e eliminando de todo radicalismo o pretexto do emudecimento ou da repressão.
Esperará em vão pelos seus desígnios o novo templário na prisão de ar-condicionado. Só mais democracia mata, de morte morrida, intentos monstruosos como o de Breivik: condena-os implacavelmente à irrelevância. Mas é já um clamor universal dos direitos humanos, o de que o assassino seja remetido à corte de Haia, para responder ao crime, inimaginável pela civilização escandinava, sofisticada em excesso para puni-lo.
O Globo, 17/8/2011