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Civilização do medo

 

 O que representam as fotografias escondidas do corpo de Bin Laden? De que realidade se faz a morte do terrorista, permitindo que o espectro avance na sua "missão sagrada" em nosso tempo, como vem de proclamar Al-Zawahiri? Na confirmação da saga que começa, o número 2, forçando uma imagem bíblico-botânica, repete: "Perdeu-se tão só uma uva no cacho exuberante da al-Qaeda."

Deparamos, nos dias anteriores à execução, a pobreza da realidade doméstica do itinerante confinado.Ficamos nós do imaginário irrevogável do horror e da desmesura da queda das torres de Manhattan.

Cresceu-se o rito da vingança por sobre o cumprimento da justiça e foi-se ao excesso de vitimização do terrorista depois da longa hesitação de Obama, entre o abate do homem e a aparição do espectro. A justiça mal se emancipa dos taliões históricos na modernidade. Avançou-se na exigência de julgamento da monstruosidade nazista. Mas agarramo-nos, agora, à justificação da legítima defesa para execução do saudita.

Não há lamentações no que, agora, diz a al-Qaeda, mas o ganho implacável, do estandarte de guerra que pede a jihad. Bin Laden já era o símbolo guardado no cofre, entre os arames farpados dos muros, nos arrabaldes de Abbottabad.

São, pelo menos, dezenove alocuções que Bin laden, neste decênio, dirigiu ao mundo, em diversos cenários, ligando o louvor e a proteção de Alá à tarefa de restaurar o mundo do Islão, inteiriço, e quem sabe, sob um novo califa. O terrorista busca esta mirada multissecular, que refuga cristãos ou judeus," como as turbas de Tamerlão", e proclama os profetas modernos dessa luta, mortos e mutilados pelo imperialismo. Mas o que se depara, hoje, é a obsolescência da al-Qaeda, diante da crueza da descoberta da democracia do mundo árabe, a buscar uma prospectiva, e não mais uma recuperação fundamentalista.

Uma liturgia, aliás, paralela é que depara o Jihad, do lado ocidental, depois do horror de 11 de setembro, na linha sacrifical  e peremptória das execuções, ou do espetáculo, em que os líderes da Casa Branca assistiram a morte de Bin Laden sentados, como nas tribunas da guilhotina da Revolução Francesa, na Praça da Concórdia. A melhor tecnologia criou essa intimidade única com o horror, nesta nova contemporaneidade  com o insuportável, expresso no semblante de Hilary Clinton.O que fica para o futuro, a câmara lenta dos tiros, o acuamento do executado, esse desamparo da morte, a que se referiu Bento XVI? Vamos ao eterno anonimato dos Seals? A dignidade tensa do discurso do presidente Obama, na Casa Branca, exprime a consciência limite, entre o justiçar-se ou o fazer justiça, assumindo a plena irrevogabilidade do seu gesto. Mas a morte de Bin Laden desimpediu de vez o espectro, a tornar irrevogável a nossa "civilização do medo".

O Globo, 18/5/2011