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Democracia e maratona na praça

 

O que foi que levou à renúncia de Mubarak, após a maratona do vaivém entre as cheias e o quase cansaço do povo, da Praça Tahirir? A queda do regime não nasceu de nenhuma arquiconspiração, nem de um trabalho missionário de elites, nem de uma catequese que chegasse ao seu ponto de ignição. Funcionou, sim, o exemplo tunisiano, num quadro mimético, mas que acendeu uma profunda exaustão com o regime. Os protagonistas decisivos da mudança vieram a ser essas forças armadas, profundamente coesas, com um treinamento de elite, e que, desde a saída, com o assentimento presidencial, negaram-se a coibir, pela violência, a manifestação popular, Esta se fazia com toda a espontaneidade de um primeiro protesto, que encontrava, também, em outra experiência virgem, nestes trinta anos de governo, a ausência de repressão. A Praça Tahrir tornava-se o local de um plebiscito vivo e continuado. Ou, até mesmo, em estratégias de mobilização, do que fosse a massa, no contra ou pró-Mubarak. Esta, indiscutivelmente, nascida de organizações governamentais, apostando, inclusive, num primeiro cansaço do povo na Praça. O estopim recrudesceu, pela retórica de novos protagonistas, liberado das prisões iniciais, pelo jogo continuado do não-intervencionismo das forças armadas. Deixou-se à perseverança da presença popular o desfecho final, do que fosse o sustento do regime para a mantença da ordem.

Na tarefa, os militares foram à preservação estatal da estabilidade, em nada similar a um golpe, ou à sua gestação oportunista dentro do confronto. Defrontam, agora, o desfecho absolutamente incerto de decantação de maiorias, diante do caos assentado pelo inopino da queda autoritária, a desfigurar toda a segura implantação democrática. Abre-se toda a chance imediata para o radicalismo na atitude política, tão própria da afirmação identitária, fora da prática do respeito ao outro, e na dureza das convicções desreprimidas. Não é outro o quadro em que desaparece toda moderação, num sentimento de superar-se um tempo perdido, ou de transigência com a dita corrupção de um status quo.   

Inquieta mais esse quadro no Egito, que viveu o anti-colonialismo, no estágio, apenas, da conquista de sua independência. A ruptura com o Império britânico, nos anos setenta, não chegou ao legítimo sentimento nacional, reprimido pelos governos herdeiros do primeiro continuísmo, após a queda do Rei Farouk. E não é outro o pasto de todos os radicalismos islâmicos, nesta chegada ao poder atrasada frente os governos, de Nasser a Mubarak, que fizeram do laicismo condição sine qua non de sua afirmação política. A piorar as coisas, esta visão antirreligiosa se identificou, hoje, à autoritária, abrindo todo o caminho aos fundamentalismos religiosos temporões. O povo de Tahrir não exprime uma revolução, nem os opositores de Mubarak, um anteprojeto de poder. Nem, sobretudo, a estrita defesa da democracia garante sinergias, assentadas na reivindicação do Estado de Direito, ou dos Direitos Humanos.

Trazendo os tanques à rua, o exército de Mubarak viu-se prisioneiro da sua neutralidade arbitral. E quem sabe, condenado, indefinidamente, à hegemonia, diante de um inconsciente coletivo por demais cauterizado pela repressão autoritária.

 
 Jornal do Commercio (RJ), 18/2/2011