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Os Pensadores

Sobre: 

Quando se entra na classificação de Os Pensadores, o primeiro problema é evidentemente a definição do conceito, sobretudo o que vou deixar de dizer diante do que representa o norte ou a marca desta exposição. Estou deixando com todos um ‘libreto da ópera’, de maneira a que possam, mais ou menos, acompanhar o que está sendo exposto.

A primeira caracterização ou exigência desta conferência é, exatamente, saber o que é que se entende por Pensadores. E nós aqui, dentro do esquema, fizemos uma distinção fundamental dos pensadores e, dentro desta Casa, estamos excluindo, em primeiro lugar, todo aquele conjunto de atividades do pensamento, da imaginação, onde se incorpora a realidade ao mundo, à natureza. A realidade objetiva vem, de fato, ao mundo interior – e aí estamos diante de todo o universo da poesia, da literatura e até mesmo da memorialística, no sentido que Nava lhe deu, continuando a meditação, necessariamente, de Proust.

Esse conjunto, onde a Academia se excede, meu Presidente, está fora evidentemente da forma ou da maneira na qual estou considerando o que é o pensador. Porque este é aquele que, ao contrário, vai se debruçar sobre a realidade. E dentro dela, se fosse explicá-la, estaríamos diante do cientista; mas se fosse para interpretá-la, se fosse para tentar levá-la a este compreender maior do homem diante da realidade feita processo, a realidade social que tem que ser integrada a partir desta interpretação, nós aí temos, realmente, o pensador na linha a que quero me referir.

O pensador, portanto, é primeiro quem pode gerar uma idéia-força, o pensador é quem pode cunhar, e aí vem a sua marca de genialidade, e aí vem a sua marca de revelação. A idéia-força é a sua primeira marca. Muitas vezes, ele pode chegar, com a sua idéia e a sua interpretação de mundo, ao sistema completo, e por aí normalmente vamos assimilá-lo, nessa interpretação do mundo, àquilo que Miguel Reale já avançou tanto aqui. Quero me referir, necessariamente, ao filósofo. E, de outro lado, neste pensador que gera idéias-força, neste pensador que interpreta o mundo e que o compreende, onde, portanto, temos a fundação de um pensar, eu distinguiria uma outra grande grei, de tribunos, de pregadores, de defensores de princípio através do qual toda a sua capacidade intelectual vai à pregação, à sedução, à capacidade de se transformar num verdadeiro apóstolo da idéia que os encarna. Mas não há nenhuma interpretação, não há nenhum pensar no sentido a que estou aqui me referindo. É aí que uma enorme progênie de membros da Academia se apresenta, e no que estou aqui justificando, fica fora também desta indagação.

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Aqui estão os propugnadores, Presidente, e os grandes definidores. Que propugnador maior do que Rui Barbosa, na defesa do Estado de Direito, no desenvolvimento da estrutura formal do Estado brasileiro, que seria tão veemente e criticamente e criativamente combatida por Oliveira Viana, até as suas construções, todas formais, de um Brasil ideal e abstrato, mas vinculado à vis da Justiça e do Estado de Direito? Sem dúvida nenhuma, por todos os lados, foi a maior cultura brasileira; sem dúvida, a enciclopédia viva do que seja a normatividade nacional, construtor da República e, depois, o defensor dos direitos do indivíduo, através da sua teoria do habeas corpus, no que era sempre, de qualquer maneira, o pensamento para justificar, o pensamento para seduzir, ousando Oliveira Viana comentar: “o pensamento para esmagar, naquilo que é a defesa de um princípio”.

É a mesma coisa que se dá com um dos mais admiráveis escritores brasileiros, alguém que escrevia em francês desde o nascimento e tinha dificuldade, dificuldade não, mas era uma deuxième nature ele escrever em português, alguém que, na tradição mais racée e aristocrática do pensamento brasileiro, inventou a grande biografia; porém, na verdade, na tarefa do pensamento, não é Minha formação que fica, mas essencialmente a batalha do paladino da Abolição, na mesma linha em que Rui o foi do Estado de Direito. Nenhuma interpretação, todo o convencimento e a sedução de Quincas, o Belo – Joaquim Nabuco.

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Na mesma linha e na mesma parentela – e isto eu gostaria, depois, de discutir com  Venancio – nós teríamos Afonso Arinos de Melo Franco, vivendo da mesma aristocracia do espírito; tanto Nabuco falou do Estadista do Império, tanto ele veio para o Estadista da República, todos a naristocracia da gens brasileira. E dentro dele, manejando essa variedade de línguas, encontrando realmente o conhecimento mais rico do que fosse a cultura européia, e essencialmente francesa, deu-nos uma interpretação admirável do tratamento do indígena dentro da Revolução Francesa e suas conseqüências, mas vindo cada vez mais para a Ciência Política, para o Direito Público, para a cadeira de Direito Constitucional. Depois, vejo Alberto Venancio, Evaristo de Moraes e o Pe. Ávila constituindo, na Comissão Afonso Arinos, a grande cátedra da defesa tribunícia do Parlamentarismo no Brasil, como Joaquim Nabuco defendeu o Abolicionismo.

Qual é a maior peça de Afonso Arinos, se não o seu admirável discurso – talvez um dos três únicos discursos “romanos” que registram o fórum político brasileiro – na queda de Getúlio Vargas? Mas ali está o tribuno, ali está o grande orador, ali está o grande causeur, como o era Nabuco; mas ali estava sobretudo quem abandona... Não há nenhuma idéia-força em Afonso Arinos, não há nenhuma interpretação. Há a defesa extraordinária e olímpica de uma convicção, que ele leva à frente como uma estratégia única e ímpar, sobretudo sendo um convertido, depois de presidencialista extraordinário, à luta pelo Parlamentarismo brasileiro. É outro tribuno e é outro propugnador, da linha de Nabuco, da linha de Rui.

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Nós poderíamos dizer que, ao mesmo tempo e em idêntica posição de princípio, que lhe levou – meus amigos e companheiros – a ter o seu livro literalmente confiscado pela República (em ato da República que começava a aparecer), quem surge, exatamente na contrapartida (veremos daqui a pouco) do profundo americanismo de Tavares Bastos, meu patrono, mas que tem em Evaristo outro dos seus estudiosos exemplares), é Eduardo Prado, que nos dá o texto extraordinário da maior vindicta anti-Estados Unidos e que coletou a história pensante do Brasil: A ilusão americana, o livro que em primeiro lugar definiu a nobreza de um intelectual, onde há a condenação completa deste país, dos seus intentos imperialistas, da definição completa do que era a hegemonia americana, que Eduardo Prado não chegou a denunciar por inteiro, porque morre antes da invasão americana nas Filipinas. O que importa é a força, que é idêntica, no estro, à de Rui, à de Nabuco, à de Arinos, na condenação do imperialismo norte-americano em nosso continente.

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Denúncias, ao mesmo tempo que propugnações, e na mesma linha eu colocaria, neste pensamento compendiado, defensivo? – não, no caso –, ilustrado, ampliado, trazido ao grande esboço do painel e da pantografia.

Eu diria que, na mesma linha, está o monumental trabalho de Fernando de Azevedo sobre a cultura brasileira. Nenhuma descoberta, nenhuma inovação, mas uma extraordinária capacidade de nos dar um livro que em si mesmo é uma certidão, se eu pudesse assim dizer, de cidadania civil da cultura brasileira. O importante nesse mineiro que fez toda a sua carreira em São Paulo foi a capacidade que teve de organizar este pensamento com uma palheta cujas cores não tinham sido, até então, realmente descobertas.

É impossível se encontrar, na monumentalidade, obra, afresco, painel da Sestina, eu diria, igual à que Fernando constrói na definição da cultura brasileira. E naquele momento, isto é que é impressionante, ele retira ainda para dentro do texto a obra de Marcel Moss, a obra, naquele momento, dos principais sociólogos europeus, que estavam avançando a teoria da sociologia da cultura. O livro, que é dos primeiros anos 30, já tem, inclusive, a incorporação das primeiras linhas abertas de descoberta que a própria missão francesa, Lévi-Strauss à frente, estava realizando naquele momento na sua São Paulo. Um monumento, como são monumentos todas as obras que eu referi, na explicação de porque que todos eles não se enquadram na categoria dos Pensadores.

Cherchez la femme! Vamos ver como iremos, então, do outro lado, situar esta raça esquiva, difícil, às vezes fantasiada em outras profissões, mas que traduz o sal da Terra, naquilo que seja a criatividade de uma cultura. Eu diria que nesse plano, inclusive, a Academia é hoje, no seu centenário, mais bem dotada.

Nós vamos ver, daqui a pouco, que em toda a tradição dos anos 10 e, sobretudo, dos 20, dos 30, os grandes pensadores brasileiros estiveram completamente à margem da Academia. Eles não a reconheceram, e se o fizeram, não o manifestaram; é um trabalho que corre a latere e à margem do pensamento brasileiro. Se pegarmos, na sua tradição, a área mais pobre da Academia, neste seu centenário, é a área de seus pensadores, conforme aqui, efetivamente, definido. A Academia tem o poeta, o crítico, a Academia tem o grande romancista, a Academia tem o filósofo, a Academia tem o historiador, o filólogo, porém a Academia não tem, na mesma messe e na mesma proporção, nesses cem anos, os pensadores que fizeram a cultura brasileira.

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Há exceção? Agora, a Academia de hoje é a Academia de Miguel Reale, o criador da Teoria Tridimensional do Direito, quem conseguiu trabalhar, de uma maneira extremamente criativa, a relação entre experiência e cultura, quem conseguiu, no campo da Filosofia Social, nos dar o Social Liberalismo, e consegue, na sua mente renascentista, instalar inclusive esta capacidade de criar, fundar e perseguir a sua própria utopia.

Filósofo, pensador, também o é hoje, na linha quase que antípoda, Sergio Paulo Rouanet, que nos trouxe como ninguém a noção do Iluminismo contemporâneo, e que se transforma num extraordinário crítico do Pós-Moderno. Veremos que, talvez, só tenhamos três deles aqui, mas o vigor e a importância do pensamento de nosso colega Rouanet são de quem funda, também, uma meditação essencial sobre a própria razão operante na História, a aventura do cogito dentro da ilustração para, Josué Montello, sair dela e nos dar essa meditação sobre a ética contemporânea, que ressuma de originalidade e de pensamento criador.

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A Academia de hoje é a de Evaristo de Moraes Filho, que na tradição mais bela, exatamente a de um Oliveira Viana, vai recuperar a noção de um Direito de Trabalho, para ir muito mais adiante e nos dar a extraordinária Filosofia Social, com que ele é um dos pais deste humanismo, também, da contemporaneidade. Entre o Evaristo memorialista, entre o Evaristo grande cientista político, fica o Evaristo também desta Filosofia que realizou aquilo que tinha ficado inconspecto na cabeça de Oliveira Viana.

Não nos esqueçamos que Alceu Amoroso Lima considerou Oliveira Viana o maior pensador brasileiro, e assim o veremos, daqui a pouco, dentro desta linha. Mas o importante é que, dentro daquele triunvirato dos fluminenses a que nos referimos, Presidente, formado por Euclides da Cunha, Alberto Torres e Oliveira Viana, forma-se um quadriunvirato com a presença, deste lado da baía, pela primeira vez, de Evaristo de Moraes Filho, dentro dessa perspectiva.

É claro que, identicamente, temos dois outros – dois acadêmicos recentíssimos – porém em ambos nós temos uma aventura do pensamento que, nos dois casos, vindo da filosofia católica, vai além, efetivamente, de mero ou insosso neotomismo. Um indo à própria história de Marx, e não é fazendo o anti-Durkheim nem o anti-Marx, mas exatamente pé a pé, dando a este Brasil católico a compreensão e a gênese do que era a idéia social cristã, nascida ao mesmo tempo, no mesmo hausto, no mesmo desiderato, e ele não precisa passar por Lacordaire nem por Ozanam, agora canonizado, para nos dar este pensamento, em que a visão do padre Ávila, hoje, é comparável, no plano do personalismo de Mounier, ao que ele nos deu com o seu Solidarismo. Aqui está um pensamento com uma idéia-força, original, aberta e capaz de assumir os riscos da sua originalidade.

E também a Academia tem hoje quem, vivendo o mesmo pensamento confessional, vai encontrar, através de Louis Lavelle, a outra linha de um Brasil com saturação maritainiana, de um Brasil quase morto pela férula deste formalismo, para pôr no seu lugar o pensamento riquíssimo de Louis Lavelle. Eu me lembro, quando fomos colegas de Universidade, do padre Franca dizendo: Quem vai falar de Louis Lavelle nesta geração? E aqui está ele, Tarcísio Padilha, hoje na Academia. Digo isso porque aqui está um outro desses pensadores, e pensador que nos está dando agora a obra dele: está aí na linfa dos dias, respirando, como ele produz, a Filosofia da Esperança, que nós todos vamos cobrar deste colega e confrade.

Da mesma maneira é um pensador – e que sorte neste ano do centenário! – quem transformou a Economia numa ciência do homem, quem, dentro dela, pôde criar um dos dez livros seminais da cultura brasileira, onde eu diria que a Economia brasileira é só uma metáfora do que efetivamente pôde ser a emergência de um Brasil capaz de superar todo o entendimento pegajoso, viscoso, largado do que fosse a dependência colonial, que cria, nesse livro, não só – antes que outros aventureiros lançassem mão dessa idéia – a verdadeira teoria da dependência, para, em função disso, nos dar o Brasil-Nação, pela afirmação vigorosa da nação para si: Celso Furtado.

É evidente que, nesse quadro, nós vemos que é a prata da Casa, aos cem anos, que vai apresentar esse tipo de entendimento ou de compreensão, que nos permita agora, e esta é minha tese – qual é a minha tese? É a de que este é o pensar, como nós aqui o estamos considerando. Este pensar, como a sua fundação, aqui estão os seus degraus fundamentais nas seguintes idéias:

Primeiro, “Oh, les pays coloniaux, toujours en reflet, jamais en réflexion”: o primeiro problema de um país colonial é dar-se conta da inércia da sua produção intelectual. Um pensador é quem rompe com a inércia desse pensamento, e vamos ver como é que isso se coloca.

Em segundo lugar: um pensador, por que o pensador? Vou usar a palavra difícil, ela é quase que uma centopéia, mas não posso evitá-la, a palavra epistemologia, mas a verdade é que o pensamento surge e é criativo a partir de quando se reflete sobre a própria condição do pensar, a epistéme grega, e a partir dela nós sabermos como é que podemos pensar, a partir da nossa própria visão da realidade, do que ela alcança, e não aquilo que vem no sonambulismo de um pensamento feito, com as suas idéias definidas e com a morte da sua originalidade.

Os pensadores, neste meu entender, são alguns homens excepcionais desta Academia, que enfrentaram esse repto e conseguiram fugir da baleia de Jonas, ou seja, conseguiram ser, por efeito próprio, mais do que vomitados, capazes de pensar dentro de um outro arcano, quebrar a consciência crítica, impor-se uma verdadeira inserção crítica, nesta inserção crítica repensar estrutura e sociedade, dentro delas procurarem o país real, o país nos antípodas do país de Rui Barbosa e, evidentemente, a partir do país real, conseguir chegar às compreensões de um processo e à sua fundação.

Caminho das pedras. Quem são os pensadores que, nesta linha, eu vou tentar formular no trabalho? Esses pensadores são: Euclides da Cunha, Oliveira Viana, Gilberto Amado, Alceu Amoroso Lima, Graça Aranha, Afrânio Peixoto, José Honório Rodrigues, Darcy Ribeiro, José Guilherme Merquior. Cada um com a sua definição e a sua perspectiva, todas elas de criação. Não estamos mais na paixão das idéias, como não estamos mais na construção do mito da literatura. É curioso, ninguém como Josué Montello, numa obra extraordinária como é o livro Memórias póstumas de Machado de Assis, nos dá essa definição final: “Nada de Rui, nada de Afonso, nada de Nabuco, nada da paixão de Eduardo Prado na visão da realidade do maior dos escritores brasileiros, Machado de Assis.”

Nós ali temos o quê? O retrato. Foi preciso retrato de uma sociedade, traduzido a buril, sem nenhum tremor de paixão, a paixão de Eduardo Prado ou a paixão de Nabuco; tivemos que ir ao fundo da pesquisa de Josué Montello para ver que em nenhum momento o Abolicionismo emocionou Machado de Assis. Em nenhum momento a questão do elemento servil da escravatura apaixonou Machado de Assis. Nenhum dos problemas que os pensadores enfrentam jamais foi buscado ou foi objeto de sensibilidade de Machado de Assis. Por isso ele fica aqui fora, fica no sentido do retrato, fica num sentido de uma vinheta, mesmo que genial, da época, mas não fica na construção do pensamento com a paixão de um destino nacional.

É neste sentido e nesta linha que teríamos que começar, exatamente, compreendendo a crítica das representações brasileiras. Nós esquecemos, muitas vezes, e devo isso também a Josué Montello, a análise da mentalidade e da representação do Segundo Império, do que era nessa cultura de elite, que Oliveira Viana tão bem soube retratar a partir do Brasil dos mil, a cultura aristocrática por excelência, o panteão que seguia, ou que caía ao lado, em debruns da própria visão do Imperador.

Eu espero que a gente possa, na revisão extraordinária da verdade e da impostura da cultura de Pedro II, compreender ou entender a maneira pela qual a sociedade do Império se organizava, a partir de um elemento muito importante: a influência do Conde de Gobineau na cabeça e na mentalidade de Pedro II. Este não agüentava mais ser imperador do Brasil. A partir da última década de sua vida, Pedro II queria era sair com o amigo Gobineau, tomar o seu navio, ir não só às grandes antigüidades do Mediterrâneo, mas, sobretudo, aquilo de que ele gostava, que era se sentar na sede do Quai Conti, da Academia Francesa. E ali viver a idéia de Gobineau, que lhe trouxe a visão mais demolidora, mais devastadora, mais aristocraticamente – vou ter de usar a expressão inglesa – despondent (melancólica) que se pode ter de uma cultura.

O grande preceptor dos áulicos de Pedro II, criando a noção do país que não ia chegar lá, do país da raça mestiça, do país realmente podre, historicamente, do país em que – volto a Oliveira Viana – só a capacidade dos seus homens de areté, ou seja, só os seus homens dessa aristocracia poderiam tirar o Brasil dessa pobreza, não, dessa indigência histórica, que era quase que a nossa fatalidade. Nós vamos ver, daqui a pouco, como o primeiro grande pensador, justamente Euclides da Cunha, é quem vai, por um lado, resistir a isso, e por outro ainda, conceder nesta perspectiva.

Este Pedro II que ia à sala da Academia Francesa, ia às visitas, e um dia viu Victor Hugo negar-lhe o cumprimento, e por quê? Parce que vous maintenez l’esclavage chez vous, Monsieur Alcântara. O que ele queria lhe dizer era o seguinte: Não dou a mão a um imperador que mantém a escravidão no seu país. Isso se deu um ano antes da pressão que Pedro II, então, faz sobre a Princesa Isabel, no sentido de, efetivamente, entrarmos na Abolição. Não por uma pressão interna da situação brasileira, não pela pressão de todas as teorias (volto a esta matéria), mas, essencialmente, pelo ar de absoluta queda de prestígio, queda de fulguração, tiro na alma, porque o Imperador – que sabia sânscrito, até certo ponto, que sabia hebreu, um pouquinho, que sabia grego, nem tanto, mas que tinha o seu latim – de repente se vê como um imperador negreiro.

É evidente que ali se está diante do reverso da medalha que Gobineau lhe tinha dado, de que efetivamente a escravidão não tinha importância, que se estava diante de povos até sem alma, e que, neste sentido, o esplendor internacional do Brasil dependia muito mais da multilíngua morta e viva do Imperador do que, efetivamente, de sua capacidade de criar um Estado ao alcance da modernidade. O que quero salientar com isto é o fato desta tradição da representação brasileira, onde, a partir desses preceptores, se cria uma noção anti-representativa nacional, e os da elite, tanto mais se sânscrito sabem, são excetuados da punição geral, que é a de um país realmente sem cultura.

Vamos ver, daqui a pouco, como Darcy Ribeiro reage a esta perspectiva. Mas o importante é salientar, frisar esta linha básica: a de que estávamos vivendo num mundo em que o Brasil real tinha pouco a ver com o Brasil ideal. Este, por um lado, estava ligado a teses da predominância final da raça branca, do Brasil europeu e literato, empolgados por Gobineau, e de outro lado, pela tradição da fatalidade, da evidência ou da necessidade do progressismo que viria, como viria a civilização americana.

Devemos a Evaristo de Moraes Filho algumas das melhores páginas sobre esta ilusão do progressismo no patrono da minha Cadeira, Tavares Bastos, que é um dos grandes pensadores dessa idéia do progressismo desenraizado da sua circunstância histórica, e defendendo a mesma visão, sempre ideal, do panteão de um progressismo tecnicista e fatalizado na condição real da mudança. Este Tavares Bastos que se transformou no maior americanista da tradição brasileira; eu diria até que, nesse aspecto, podemos depois discutir o contraponto entre ele e Eduardo Prado.

Mas a verdade é que, nessa perspectiva, o que se tem diante de nós é um Brasil quase que marcado para a regressão, para a pestiferação, não fosse o esforço desesperado e definido de determinadas elites dentro do seu conjunto. Este o Brasil que é recebido como idéia feita, que estabelece a quase que mediocridade das nossas elites tradicionais, “jamais en rang, toujours en reflet, jamais en réflexion”.

E aí eu digo: como é que, nesse quadro, sacramentado pela última contradição entre a cultura e o pensar, que é a da própria figura de Pedro II, como é que, efetivamente, se pode encontrar o começo deste pensar com as nossas idéias-força, com a nossa denúncia do pensar para outrem, e a formulação, pouco a pouco, do que seja a busca do país real? Eu diria que, em primeiro lugar, isto surge rompendo com a tradição de Gobineau e com a tradição do progressismo, as duas absolutamente acríticas, e as duas comandando a organização intelectual do Segundo Reinado, e é aí que se verifica, num primeiro momento ainda, uma espécie de compensação intelectual. O Brasil da desgraça da escravidão precisaria, através não dos seus pensadores, mas de uma intelligentsia da época, encontrar o seu revide. E qual é o revide ao Brasil desgraçado de Gobineau? É o Brasil ufanista do Conde Afonso Celso.

É curioso se verificar como é que as duas perspectivas se definem e entre elas está, pouco a pouco, o começo da busca do país real. E aí se diz, imediatamente, do papel e da importância de Euclides da Cunha, nesse entendimento e nessa perspectiva. Mas, atenção, quando se diz “O sertanejo é antes de tudo um forte”, aqui está uma idéia-força, uma primeira idéia-força. Mas o que se pergunta, na sua seqüência, é não só o que vai aí neste desdobramento, quer dizer, onde realmente ele continua a frase. Se eu fosse aqui perguntar – normalmente, uma boa parte da platéia não responde –ficaríamos diante do primeiro ponto magnífico.

“O sertanejo é antes de tudo um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.” É por aí que começa a visão, absolutamente, de uma idéia criadora que fervilha, mas que ainda morre na inércia da visão tradicional do Brasil condenado, do Brasil leproso. Há um texto admirável, que abre a sua nota:

“Sob o olhar dos laços atuais mais expressivos, há que ver as sub-raças sertanejas do Brasil. E fazemo-lo porque a sua instabilidade de complexos de fatores múltiplos, diversamente combinados, aliando as vicissitudes históricas à deplorável situação mental em que jazem, às combinações talvez efêmeras, destinadas a próximo desaparecimento, ante as exigências da civilização e a concorrência material intensiva das correntes migratórias, que comecem a trabalhar profundamente a nossa terra. E aí o jagunço destemeroso, o tabaréu ingênuo e o caipira simplório serão, em breve, tipos relegados às tradições evanescentes ou extintas. A civilização avançará nos sertões, impelida por essa implacável força motriz da História.”

Euclides entre as duas posições. Euclides ainda está dominado por Gobineau e Tavares Bastos numa ponta, mas ele vai, ao mesmo tempo, reconhecer, já no caminho que levaria à reação compensatória – basta ler este texto de Euclides, que na época causou esta importância fundamental de emergência de uma idéia-força, para se compreender como o seu efeito compensatório foi o ufanismo do Conde Afonso Celso. Mas, de qualquer maneira, ali estava, entre esses dois acadêmicos, o que representava já essa ruptura de uma representação inercial. O sucesso de Canudos não vem, inclusive, da própria caracterização, grosseiramente errada, de Antônio Conselheiro, quando Euclides o define como um psicopata mental, e Josué Montello diz: “Conselheiro, este gnóstico bronco!”

A partir daí, a sub-avaliação completa dessa perspectiva, não fosse já o caso de estarmos na definitiva destruição do arraial de Canudos, a compreensão daquela etapa como anti-história, muito mais do que como capacidade efetiva de, naquele momento, começar a organizar um Brasil de dentro, a partir de uma consciência de despojamento e da busca, não tivessem tanto as suas leituras de diversas encarnações de uma autonomia histórica a presença de uma mobilização que, exatamente, à falta de outros valores, tinha que encontrar – não nos esqueçamos que eram os sem-terra da época – a defesa da monarquia como a sua capacidade de resistir à situação objetiva e direta, monarquia que levou, inclusive, à brutalidade única da última destruição do arraial, depois do fracasso da expedição Moreira César.

O que quero dizer é que, em Euclides, de qualquer maneira, começa a idéia-força e dentro dela, podemos dizer, quebra-se uma consciência ingênua, ainda que, de fato, não há nada de maior antípoda do que, diante de Afonso Celso, Euclides da Cunha. Mas o importante é que, numa etapa subseqüente, toda aquela elite do pensamento vai começar a ser processada; é quando surge, numa nova etapa, o pensamento de Oliveira Viana. Estou aqui me orientando por plexos da organização do pensamento que, necessariamente, não segue uma pauta cronológica.

O que desejo dizer é que esse Brasil real, que começa descrito por Euclides da Cunha, leva ao pensamento seguinte de Oliveira Viana. Que tipo de pensamento é este que criou a contraposição entre o Brasil das instituições, o Brasil da Federação, o Brasil da Constituição americana, o Brasil do Executivo forte, o Brasil dos possíveis freios e contrapesos, o Brasil de um começo de definição dos direitos humanos? E o Brasil real estava ali, diante das políticas da República, continuando as feitorias eleitorais do Segundo Reinado.

Na figura esplendorosa de Oliveira Viana encontramos os dois pólos. A meu ver o seu livro-chave de idéia-força é O idealismo na Constituição de 91, porque aí é a primeira vez que ele faz a denúncia de como uma elite pensa errado, como uma elite em que o protagonista e o vilão é Rui Barbosa, efetivamente, nos aplicam um modelo ideal, sem nenhuma condição, sem nenhuma perspectiva de trazê-lo, de fato, ao que era a realidade do país.

Oliveira Viana tem a intuição luminosa de que é preciso denunciar um pensamento e desmascará-lo, naquilo que é uma palavra que viria depois, historicamente, a secundar o Oliveira Viana da nossa Academia, que é, efetivamente, a da alienação das classes dirigentes num quadro como o nosso. Oliveira Viana dava mais importância às Populações meridionais, livro que ele começa apenas por Minas, São Paulo, Rio, não chega a esboçar o Rio Grande do Sul, mas era a sua tentativa, ao modo de Le Play, de ir à busca, e esta é outra idéia-força, do país real dentro desse conjunto de aproximações monográficas. E é daí que ele nos deixa diante seu livro extraordinário, Instituições políticas brasileiras, onde denuncia o clientelismo, o patronato, a eleição a bico-de-pena, o país formal, completamente afastado do país real.

Mas há o Oliveira Viana racista, o Oliveira Viana que, ao mesmo tempo, sustenta a tese de arianização do Brasil, e não vai deixar, dentro da velha especulação de Gobineau, ao contrário, de efetivamente encontrar – e Alceu Amoroso Lima situa isso admiravelmente – tantas e tantas explicações, eu não diria de quem se considerava um cientista social, e diria que, nesse momento, Alberto Torres seria apenas um cientista político, e ele, um cientista social, a nos trazer, de fato, não mais para aquele Brasil real de Euclides, mas um Brasil da ciência das regularidades, e não mais apenas da apresentação dessas diversas linhas normativas.

É difícil se encontrar outro pensador brasileiro (e aí é que Alceu de Amoroso Lima tem, a meu ver, toda a razão) com a capacidade, no seu tempo, de criar um corte epistemológico dentro dessa realidade, propor uma denúncia de ficção da realidade brasileira e lhe trazer um sucedâneo. Só que esse sucedâneo viria também transplantado, em toda a reflexão que Oliveira Viana nos faz, apenas do evolucionismo naturalista spenceriano, de que ele seria, mais do que Sílvio Romero, a grande presença ordenadora da realidade brasileira, enquanto, vamos dizer, a grande contribuição sistêmica de Sílvio, dentro do seu livro seminal e colossal, está muito mais na história da literatura do que, de fato, efetivamente, dentro dessas realidades.

Mesmo porque – e é preciso que continuemos – esta é a posição essencial de Oliveira Viana, que é quem nos dá a crítica e propõe o sucedâneo, acerta no primeiro alvo e, no segundo, nos dá ainda uma teoria transplantada, na mesma índole com que, num outro momento, se faria no Brasil o grande contraponto entre os três filósofos do fim do século passado: Tobias Barreto, Sílvio Romero e na outra ponta, na ponta espiritualista – e Alceu diria numa ponta quase que de uma filosofia naïve –, pela força do seu misticismo, Farias Brito. Nós não temos aqui a condição de poder discutir os dois lados, mas a verdade é que, na originalidade de Farias Brito, existe uma transposição acrítica, quase que de um naturalismo das últimas causas, como fica muito claro no seu livro A base física do espírito e o mundo interior.

A identificação, afinal de contas, de Deus e o mundo, a luz, é algo que, efetivamente, nos traduz aquilo que Sérgio Buarque de Holanda nos disse muito bem: “O filosofar parece uma inadequação basilar do brasileiro, um defeito de constituição.” Na verdade, ali surge isso, dentro dessa etapa, e seria fascinante se ver como, contra os caudalosos filósofos do sistema -Tobias, Sílvio -, do outro lado, encontramos quase que um primitivismo de intuições que não deixa de ter uma base cultural importante, mas que afirma nas suas conclusões - continuo com Sérgio - como exatamente “alguém que nunca teria enfrentado a crítica do establishment cultural ou de uma verdadeira universidade”.

Existem, vamos dizer assim, cruezas no pensamento de Farias Brito que só podem surgir ou ser resultantes dessa falta do establishment cultural brasileiro nesse conjunto. Aí está, dando o passo seguinte de Oliveira Viana, aí está Gilberto Amado, com a sua crítica fundamental deste outro elemento essencial do nosso processo cultural e de mudança. Quero me referir ao seu livro-chave Eleição e representação, onde Gilberto Amado, com uma originalidade admirável, mas já vivendo por antecipação o que Oliveira Viana faria oito anos depois, nos mostra que, no Brasil, os partidos não têm formação política efetiva, os partidos não obedecem a ideologias, os partidos não obedecem a idéias-força de que as legendas sejam a necessária coabitação e síntese. Os partidos são as formações da hora para, efetivamente, atender ao formalismo dos ritos democráticos, mas - e aí entra Gilberto - feliz do país onde ainda se pode, através da política dos governadores e do bico-de-pena, eleger os melhores para as casas representativas.

Era uma outra idéia-força a de que, independentemente da visão normativa ou idealista, as condições efetivas de representação vinham, finalmente, a se realizar. Aí está, em Eleição e representação, uma outra contribuição rica de um pensador que vem da realidade, que não se atemoriza com os seus fantasmas ideais, e enuncia a sua (vou usar a palavra) interpretação dessa mesma realidade.

Queda da visão normativa, e pouco a pouco o começo de algo que vem tardiamente no Brasil. Uma cultura amadurece quando ela começa a ter não só uma visão crítica da realidade, mas a ter a sua própria inserção crítica. O métier do crítico chega tarde ao Brasil. Era um Brasil de grandes poetas, um Brasil de grandes romancistas, um Brasil de grandes historiadores, mas um Brasil que demora a ter a função crítica instalada como um dizer social.

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É aí que aparecem o papel e a importância extraordinária de Tristão de Athayde/Alceu Amoroso Lima. Não quero aqui falar do católico, por enquanto; quero falar de quem, vivendo o melhor cosmopolitismo do começo do século, nos dá três aventuras exemplares do que seja uma cultura para si, ele, o patrono de Evaristo de Moraes. A primeira é a de ter compreendido a função do crítico como a da disponibilidade do julgamento.

Alceu, antes de qualquer outra posição ética, é quem vai se ajoelhar diante da obra, ninguém tinha feito isso no Brasil ainda. Quer dizer, ele estava ali a serviço, efetivamente, do que fosse aquele pensamento, que tinha que ser interpretado contextualmente, e essa interpretação contextual vai ser trazida a uma função nobilíssima por outro crítico-pensador. Não posso falar muito nele agora, mas ele tem que ser restaurado e recuperado: Álvaro Lins, no que situou, nessa seqüência, esta noção de que não há pensamento que não esteja, de fato, inserido dentro do que é não a ganga da sua circunstância, mas, de fato, o contexto dessa produção.

Poderíamos, dentro de toda uma outra aventura de espírito, ver quem são os pensadores de idéias-força, dentro dessa perspectiva contextual, onde, se de um lado, temos a fundação crítica de Eduardo Portella, de outro, temos também, e tão importante numa segunda dinamização de Alceu, o que representou a valoração da língua dentro de um contexto crítico, de que ficaremos sempre tributários do grande Afrânio Coutinho. O que quero, sim, mostrar é que esse Alceu, que se torna disponível, enfrenta, logo a seguir, uma outra operação raríssima numa cultura – a operação da conversão.

E mais do que isso, estou aqui discutindo a conversão como um momento intelectual dos mais raros e difíceis, e praticamente quase que impossível, na linha de documentação, onde se pôde ver todo o leva-e-traz com o seu pegureiro, com o seu pastor, e também o seu demônio: Jackson de Figueiredo. De Jackson de Figueiredo dirá Alceu: “Este cangaceiro que Deus acorrentou.”

O que se queria apenas salientar na aventura e nesse dueto extraordinário Jackson / Alceu, que a Academia em tão boa hora pôde realizar, com os dois volumes de uma obra fundamental, é a capacidade que tem este homem de, progressivamente – ele formado, em primeiro lugar, por Bergson, continuando com Anatole, com o direito de discretear, de duvidar de tudo, chegar à ética do cinismo de um Gide. De repente ele vai, progressivamente, não pela linha da superação cientificista, nem pela linha bergsoniana, mas pela linha pascaliana, ele vai pouco a pouco, dentro do trabalho dia a dia de Jackson (dia a dia não, porque há dois anos de omissão) ou meio semestre depois, mas, enfim, entre 25 e 28, ali está o gémissement, o gêner daquela alma, que vai, pouco a pouco, encontrando a surpresa da aceitação religiosa.

A noção dessa aceitação é, em si mesma, uma genuína – e eu diria quase que ímpar – aventura do pensar brasileiro, porque antes disso Alceu já tinha, a bem desse escrúpulo, que era quase que a sua metodologia, desconfiado da revolução modernista brasileira. Ele tinha achado que, mais uma vez, Oswald de Andrade e seus companheiros, todo o grupo Pau-Brasil, Klaxon, etc., todos estavam apenas realizando mais uma tarefa da mímica fora de hora, repetindo, na sua condenação da tradição, o modismo então imperante no futurismo marinettista. Nada de autêntico na revolução da Arte Moderna, mais uma pacholíssima aventura da imitação internacional.

Não cabe aqui discutir o modo pelo qual o Alceu desse momento luta contra o Modernismo, para depois se integrar a ele, no sentido de buscar o que representava, dentro da sua disponibilidade radical, o encontro, de fato, do país real. Mas um país real que ele vai, naquele momento, quase que deixar numa espécie de depósito, numa espécie de forno, tamanho o medusamento, pela capacidade de chegar à boa-nova, aceitar não só a conversão, e ele dizia a Jackson: - Ah, meu Deus! Será que vamos encontrar um padre que nos entenda? e, no dia seguinte, ele disse: - Encontrei, é Leonel Franca.

A partir daí, há toda aquela aventura em que Alceu lê um último livro, procura desenvolver mais as novidades sobre o Homo pequinensis ou sobre os problemas do transformismo, e no dia seguinte ele confidencia a Jackson: - O padre já sabia. - Quer dizer, nesse sentido há toda uma progressão em o Alceu que se converte, ele se converte tendo o conhecimento da verdade moderna do catolicismo.

Num outro documento fundamental ele diz a Jackson: “Eu não me converti como você, eu não precisei de Pascal para chegar a Deus. Não precisei da aposta. Eu posso ficar dentro do que me diz o espírito do tempo, e dentro dele, o que é a revelação de Deus na História, acompanhada ou sinalizada através da aventura da Igreja no tempo.”

Não há uma cristologia em Alceu, mas uma eclesiologia admirável naquilo que é o seu pensamento fundador e realmente único, mas tão escrupuloso dentro de si mesmo, que chega ao difícil Alceu dos anos 30. Ele pensa, através da conversão, uma visão original da realidade, mas numa espécie de sacrifício, do qual Maritain já o tinha advertido, e Maritain é o primeiro mestre daquele momento: “Não ceda à tentação, Alceu, de formar o seu próprio sistema. Reduza a sua vaidade e entenda que há uma filosofia perene.”

A criatividade do pensamento de Alceu numa contemplação santa levaria a uma outra formulação. E nisso já se pensou, acho que chegaremos lá, a introdução da canonização de Alceu, mas eu diria que o importante no seu pensamento, naquele momento, é ele, não obstante chegar a certas verdades, diante da pergunta: “E o que você faria se, de fato, a Igreja dissesse que você não está no caminho certo?” responder em carta: “Não sem muita dor, eu quebraria a minha pena.”

O importante é que, em todo esse percurso, o pensador que vai à fonte do pensamento mantém-se dentro de uma doxa e renuncia à sua originalidade, a não ser a partir dessa meditação profunda em que ele procura o corpo histórico da Igreja como uma metáfora até mesmo da sociedade em mudança.

É aí que temos esse fenômeno único em toda a cultura brasileira: quem se converte, naquele momento, aceita a persona de Alceu. Aquela em que, por absoluta identificação ao que lhe ensinou Franca e ao que lhe impõe Dom Leme, que lhe impôs, inclusive, estar sentado entre os quarenta imortais, para dar demonstração do que era a inteligência brasileira, católica e confessional, sucedendo a Fernando Magalhães, este Alceu que continua na sua meditação do que é uma Igreja dentro do tempo, e vai, no terceiro Alceu, encontrar a tensão entre a Igreja triunfante, a Igreja da ordem, a Igreja das consagrações das religiões de Estado e, como ele dizia tão bem, esta Igreja que jamais poderia chegar ao que era a aberração do seu triunfalismo, o antimodelo da Igreja franquista, onde se viam os generais do ditador receber a hóstia, sair do palanque e cuspi-la, ao lado.

Neste sentido, chegar-se-ia ali à formalização máxima do que era se chegar, de fato, a esse domínio de hegemonias externas à Igreja. Evidente que seria uma outra conferência para se saber como é que, no pensar de Alceu, toda esta mudança, a partir da praxis, se deu, de que forma e em que condições. Mas a verdade é que ele sentiu radicalmente a oposição entre a sua Igreja e um espírito de cruzada, conquista e defesa do catolicismo bem-pensante no seu seio, depois de ter sido o nosso homem no Vaticano II, depois de ter sido o primeiro brasileiro de Justiça e Paz, e em função de um governo que se instala para derrubar o comunismo, ele se transforma no seu primeiro crítico e vai, através da condenação do terrorismo cultural dos generais, ser o maior defensor das liberdades do homem, como tal, o que permitia a Ênio Silveira dizer que Alceu ali “começou a falar aos gentios”, e a partir daquele momento há a integração do que era, para além do católico, este homem universal e que foi consagrado por todo o Brasil do silêncio, todo o Brasil do inverno polêmico, todo o Brasil da repressão, que teve nele o seu campeão e a sua voz.

Esse Alceu que, no Congresso de Curitiba e, depois, no dos Escritores de Brasília, nos dá o fecho final desta mutação por dentro, em que ele,depois da conversão interior, realiza esse arco de que não há outro igual no Brasil, que é o arco do homem velho para o homem novo, ou da persona para a pessoa. E quando recebe o Prêmio Liberdade de Pensamento dos Escritores do Brasil e lhe perguntam: “Qual é o modelo econômico, Doutor Alceu, a que o senhor se vincula?” ele diz: “Só acredito no socialismo, mas com justiça social.”

Entre o Alceu dos anos 70 e 80 e o Alceu dos anos 30, que enorme destaque, que extraordinária mutação, onde há uma aventura do pensamento que vai criando a sua praxis, dentro de uma doxa que traduz essa riqueza fulgurante que poucos países podem ter! Um pensador que se converte e que, dentro dessa conversão, se modifica de novo, sem quebrar a ortodoxia fundamental do seu pensamento. A função do crítico que ele instaura e, ao mesmo tempo, a função do crítico – e aí a nossa Casa entra no cerne de toda essa pesquisa e essa produção – que deveria abandonar a noção das idéias feitas, deveria abandonar as noções ou, efetivamente, os resultados do que seria esse pensamento traduzido, dentro das culturas, sem visão crítica.

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Devemos a Josué Montello a análise extraordinária de uma das polêmicas brasileiras que de fato passaram por esta Casa. Essa polêmica ocorreu dois anos depois do que se deu em 1922, em São Paulo, mas com Graça Aranha toda a crítica e análise da modernização, como processo de pensamento e abandono do que ainda era uma impostação cultural e mental da belle époque, esse papel teria que ser desempenhado por alguém, teríamos que ter um combatente contra os últimos helenos, representados por Coelho Neto. Como é admirável a sensibilidade com que Josué Montello nos retrata toda essa construção, os prós e os contras, e sobretudo, na seqüência da grande conferência de 19 de junho de 1924, o que é a sua réplica, onde Mário de Alencar tem talvez o seu maior papel intelectual dentro da história da aristocracia do pensamento brasileiro.

Mas o que quero dizer é que Graça Aranha é um trânsfuga, Graça Aranha chega à denúncia da noção da modernidade do pensamento convencional da literatura brasileira. Não vamos entrar nas próprias achegas que Josué nos dá do modo belo pelo qual os autores do Modernismo paulista refugam Graça Aranha, e dizem que muitas das suas idéias foram colhidas na véspera, em conversas com Oswald de Andrade. Mas a verdade é que o rolo veio ali; Graça Aranha entra como um pensador brasileiro porque tem a atitude criativa de denunciar uma mimesis. Temos que ouvir Lêdo Ivo, para nos explicar a grande distinção em que, da prolação da palavra, nós podemos ter dois conceitos.

Mas fiquemos no conceito de espírito de imitação, porque é em função dele que Graça Aranha cria o grande discurso da polêmica de 24. Com frases como estas que a gente, às vezes, esquece: “A Academia foi um equívoco, somos um público inculto, sem tradições literárias ou artísticas, ou pelo menos, de tradições medíocres, que seria melhor que se apagassem. Tradição, a nossa é incerta e imponderável formação, e neste período, atualmente, o que é melhor é negarmos a aspiração a qualquer aceleração. Fazê-lo nesta Casa poderá matá-la.” E fecha na denúncia do equívoco que foi, segundo ele, a nossa vinculação com a Academia Francesa, e depois na denúncia, extremamente adequada à época, do que era o beijo da morte com a cultura portuguesa. Ele completa, dizendo: “Não somos, senhores acadêmicos, a câmara mortuária de Portugal.” Evidente que ali se estabelece toda uma denúncia clássica e clara da mimesis que, curiosamente, leva à ruptura de Graça Aranha, leva depois ao seu afastamento da Academia, mas leva também a outra situação praxística, extremamente rica e importante.

Devemos a Alberto Venancio, num artigo memorável que está na atual Revista Brasileira, uma análise de Afrânio Peixoto, e eu trago aqui a informação verbal que me deu o cunhado Alceu. Poucas pessoas, no Brasil, tiveram uma convivência consciente com a mimesis e com a atração da cultura da belle époque quanto Afrânio. Afrânio a viveu sem denunciá-la, mas, também, na elegância dessa sua convivência, ele pôde, antes de qualquer um, ou sobre qualquer um, e diante de qualquer eventualidade, se transformar no que Pierre Bourdieu chamou o Homo academicus.

É a elegância acadêmica extrema que ali está, não fosse ele quem, afinal, conseguiu do Embaixador Conty a doação do Petit Trianon, mas de quem, desde o livro Rosa mística, passando por A Esfinge, é alguém que, com vinte e cinco volumes, consegue viver perfeitamente dentro do rolo e da atmosfera cuja impostura ele conhecia e confessava ao cunhado Alceu.

Tanto que o rationale que ele extrai disso tudo é a frase, que não é dele, mas de Bourdieu: “C’est le défaut qui devrait apparaître”, a frase admirável de um intelectual inserido na sua sociedade, da qual ele exprime o possível, da qual ele é o beletrista e, ao mesmo tempo, tem a consciência dessa superação, no famoso mote que fica a procurar o seu verdadeiro autor, mas que, em tantas visões críticas da Academia, é trazido à tona como de autoria de Afrânio: “A literatura é o sorriso da sociedade.”

Evidente que, se isso assim fosse dito, estaríamos no caso oposto; estaríamos do outro lado do que, exatamente, seja a função crítica, dentro da qual todo esse trabalho e toda esta realidade se deveriam manifestar e situar.

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Chegamos à parte crucial do que sejam as idéias-força e o pensar o Brasil fora do debate crítico, do pensar o Brasil fora, efetivamente, das idéias transpostas e das frases feitas. Quem são os pensadores do Brasil? Eles estão ou não estão dentro da Academia? Vou usar aqui uma relação feita por Alceu e continuada em um consenso crítico de contemporâneos.

O Brasil para si, o país real é o país de Manoel Bonfim, através de três livros fundamentais: A América Latina, O Brasil na América Latina e O Brasil na sua própria História. É dentro dessa mudança que Manoel Bonfim, efetivamente, chega a pensar o Brasil contra todas as visões formais do entendimento dessa realidade.

E isso continua com Alberto Torres, outro que não veio à Academia, e que nos dá a noção essencial, outra vez, na sua essência, do que é o país da comunidade, o país que se organiza como realidade, não como norma, o país que se faz através de uma vontade, que se constrói como nação, e que evidentemente, a partir daí, vai definir o seu próprio nacionalismo. Esta, na organização nacional, é a grande e fundamental idéia-força com que o segundo fluminense completa Oliveira Viana e nos dá a noção do país-projeto, da nação para si, do país a caminhar pelo trabalho da cidadania e, numa palavra, pelo trabalho da sociedade civil.

Quem primeiro nos dá isso é Alberto Torres, e na organização nacional aí está o legado ou a conclusão dessa mesma perspectiva. O interessante é que o país real aí se define, por esses autores, nós vamos à estrutura e à organização, e pouco a pouco, para se compreender esta realidade, vamos começar a percorrer o caminho das dualidades ou das dialéticas.

Monteiro Lobato é a primeira grande voz que, exatamente, pegando aquele tabaréu ignorante denunciado por Euclides da Cunha, vai nos trazer o Jeca Tatu, Urupês, Cidades mortas, e por aí vai nos dar o outro Brasil, numa primeira descoberta e definição. É muito curioso esse outro vínculo de aproximação entre Manoel Bonfim e Monteiro Lobato. Os dois, praticamente, porque se viram com a impossibilidade de trazer a sua mensagem para o Brasil de hoje – tão diferente era a sua visão do país sangrando – diante do país convencional ainda dos grego-tupis, os dois vieram para uma forma, um código entre as gerações, os dois vieram para a literatura infantil.

Não preciso falar de Monteiro Lobato, mas, sim, da construção da extraordinária utopia do Brasil para si que está nos seus livros para crianças, onde ele fica, mas muita gente se esquece que Manoel Bonfim foi quem criou o Tico-Tico no Brasil e, a partir do Tico-Tico, a capacidade de se levar a toda uma nova mocidade, dentro da sua educação, sem o vício do desvio das culturas ornamentais, o que ele queria dizer e revelar. Sem dúvida nenhuma, aí estão dois dos autores seminais, dentro dos quais se pode compreender esse Brasil real que, exatamente nos anos 20 e 30, se construía por inteiro, à margem e por fora da Academia.

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Da mesma maneira chegamos ao príncipe das totalidades e das dualidades. Chegamos à construção de Gilberto Freyre e, a partir dela, à primeira consideração internacional da relevância do pensamento brasileiro, no que é o extraordinário monumento de Casa-grande & senzala, que ele não consegue no tempo, não obstante a genialidade das suas produções subseqüentes, sobretudo de Ordem e progresso, retomar na idéia-força de que todos os livros passam a ser, depois, esta mesma conseqüência.

O que quero dizer é que, se isso se dá, não deixamos de ter, na própria Casa, uma réplica ainda que pálida do que lá fora Gilberto Freyre, Alberto Torres, Monteiro Lobato e Manoel Bonfim estavam construindo. E onde é que está um pensamento similar, contemporâneo, dentro do Brasil? Onde é que ele está? Curiosamente, em primeiro lugar, ele está no primeiro Vianna Moog, que é o mais importante, porque ele vai à noção da dualidade e, a partir de uma crítica perfeitamente revolucionária à época, do estudo das transplantações, onde ele, vivendo nos Estados Unidos, apreende a cultura dos pilgrims e dos pioneers. E diante disso ele nos dá Bandeirantes e pioneiros como uma primeira interpretação, uma polaridade fechada, onde se faz o reenvio entre os campos do conhecimento a partir da identificação de uma causa, ou de uma polarização, e no jogo delas se arma um compreender.

O Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, é um país onde a tônica entre o bandeirante e o pioneiro se dá de forma reversa, o país que continuava a riscar as costas, o país que não penetrava, o país que fracassava dentro daquilo que seria construir a outra enormidade, do lado de cá. Vianna Moog também tem o seu Ordem e progresso, na mesma queda de Gilberto Freyre, porque ele nos dá, dentro da mesma noção da transplantação, nos dá um exemplo mofino no seu Um rio imita o Reno, estudando, de fato, a aculturação alemã no seu Rio Grande do Sul. Faltava a polarização e, dentro dela, como acontece com alguns outros desses pensadores, o grande Vianna Moog pensador é o Vianna Moog das suas primeiras obras, que de fato ficam nesta idéia, nesta análise, e vão preparar o caminho para o que, de fato, interessa ao pensador; o que é, de fato, a carne fresca da sua gula é a compreensão, o entendimento da noção de processo.

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Há um grande acadêmico nesta Casa que, começando na História, chegou às suas exigências fundamentais, fez a Meta-História, depois disso nos deu a visão crítica da História, compreendeu que a História se situa dentro de um fazer imediato, e denunciou a mistificação da História anterior do Brasil, a História feita a partir da crônica dos seus reis, a História feita a partir da crônica de seus varões, a História feita a partir dos grandes momentos épicos, das suas batalhas e dos seus golpes de Estado, para no seu lugar colocar a História – e ele usava a expressão italiana – do Homo qualunque, do homem qualquer, diante do qual era a História da cidadania das grandes categorias de sujeito histórico, que não tem a marca do carisma e se define por um inconsciente coletivo, tantas vezes bastardo, tantas vezes cinza, e por isso tantas vezes capaz de avançar o seu aguilhão. Essa História em que José Honório Rodrigues é, sem dúvida, o primeiro brasileiro a trazer para a nossa dinâmica do pensamento as grandes construções que Lucien Fèvre e seus companheiros estavam realizando na École des Annales em França.

Não temos outro representante desta visão, mas temos quem, continuando e desdobrando Braudel – e Braudel foi o primeiro a, de fato, o ter entendido – nos dá essa obra-prima que é A história combatente, e diante dela abre dois outros caminhos criadores, caminhos cheios de idéia-força e de grande originalidade, no desdobramento desta primeira perspectiva, que são, de um lado, O primeiro brasileiro – e aí, hoje, ele tem que repartir isso com Antonio Olinto, que nos dá a dimensão africana do fazer e da memória brasileira – e do outro a Conciliação e reforma.

Quantas vezes estive com José Honório em Angola e, sobretudo, em Cabo Verde, a pensar ou viver esta idéia de que há uma cultura subterrânea no Brasil, uma cultura que, exatamente, por todos os estigmas da colonização, vinha como uma espécie de veia, realmente, sem cor, negra no seu conjunto, e que deveria ser restabelecida. Hoje, a Academia tem, graças a Antonio Olinto, o extraordinário levantamento monográfico, dentro do qual o que era vivido como intuição por José Honório, agora já é, através da memorável série que começa com A casa da água, algo que já está centrado, assentado, inscrito dentro de um repertório nacional da História, do outro lado.

O que quero dizer, com José Honório, é que, ao lado destas visões onde há um contributo epistemológico, onde há um contributo de crítica, existe também – e este é o seu grande legado como pensador e original – o entendimento do modo pelo qual a História imperial e mesmo o começo da História republicana brasileira se deram, quando ele não vai à Casa-grande & senzala (vejam bem, estou procurando definir os compreenderes a partir de polarizações críticas), mas ele formula uma outra compreensão admirável desta seqüência e nos dá a díade Conciliação e reforma. E com ela consegue explicar, não!, interpretar, com vistas ao compreender, o que era todo um traço, toda uma marca, todo um momento de intelecção brasileira.

Que progresso ganhou a História brasileira, não através das adições anedóticas, não através das compilações do último tipo de documento, não através da última carta guardada na gaveta da última baronesa, e sim a partir, de fato, de uma visão do entender, do marcar, onde se sente a dinâmica de um pensamento alto, o pensamento de José Honório Rodrigues. Ele é contemporâneo de outra evolução que se faria no compreender o Brasil real, fora da Academia também.

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Não posso falar, e sou suspeito, do que foram as duas escolas do se tentar compreender o Brasil para si, que no Após-Guerra de 1945 surgiram uma mesma como réplica da outra; enquanto a doutrina da Segurança Nacional se organizava na Escola Superior de Guerra, a partir de um ministro desta Casa, Cândido Mota Filho, se criou o ISEB, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros. Eu o quero dentro dele porque toda essa tradição de pensamento justamente se instala sobre Manoel Bonfim e Alberto Torres, que, diga-se de passagem, se não veio a esta Casa, encontrou nesta Casa o seu discípulo mais ilustre – que hoje tem quase 101 anos de idade, que é Barbosa Lima Sobrinho –, o defensor do seu nacionalismo e o propugnador das suas idéias aqui.

Mas Torres, Bonfim e Gilberto (numa outra dimensão) chegam a esse pensamento isebiano, do qual quero só salientar duas contribuições. Uma de Alberto Guerreiro Ramos, que também, na tradição de Oliveira Viana, cria outra etapa na desconstrução do pensar brasileiro. O que quero salientar em Guerreiro, morto antes de chegar aos 50 anos, exilado pelo Governo militar na Universidade de Southern California, nos Estados Unidos, foi a sua noção da redução sociológica, a sua capacidade de mostrar que não eram apenas idéias, mas quadros mentais, na reprodução das idéias, que traduziam ainda o pensar colonial.

E ele nos deu a melhor crítica do pseudonacionalismo, a sua crítica admirável do patriotismo dentro dessa tarefa, e quer, por aí mesmo, nos confrontar com este fenômeno básico: muitas vezes, quando pensamos o que pensamos que pensamos, estamos pensando o que nos disseram para pensar. É evidente que, por aí, a redução sociológica retoma a idéia de Oliveira Viana, e vai mais adiante, mostrando que o nosso colonialismo começava com o colonialismo da cabeça, e dentro dele, com o fato de que não pulsavam em nós as idéias que pensássemos fossem as nossas.

Disto se valeu um dos pensadores menos reconhecidos do Brasil, alguém que morreu na tristeza do seu exílio, alguém que, condenado pelo Governo militar, saindo do Chile, tinha um desejo, ao se dirigir para a Algéria – o navio em que viajava, sujeito a essas fatalidades dos cargueiros, era um navio que aportava em Atenas – e Álvaro dizia a Maria, sua mulher: “Pelo menos, vou poder ver a Acrópole”, mas, na hora que ele queria descer do barco, a polícia grega, instruída pelo Itamarati, impediu-o de ver a Acrópole. Neste sentido se verifica ou se entende que há refinamento de crueldade intelectual em sistemas, em repressões e em quebras históricas.

Mas Vieira Pinto, o grande crítico de Platão, o grande crítico do que poderia ser de melhor no Brasil, que não comportaria a sua análise, o seu estudo extraordinário sobre o Timeu, é quem, convocado para o ISEB, vai fazer a última análise na desestruturação de uma epistéme brasileira. E nos dá outra dialética, mais importante do que Casa-grande & senzala ou do que Bandeirantes e pioneiros, que é A consciência ingênua e a consciência crítica.

Quais são as características da consciência ingênua, e como é que temos que botá-la no lixo e recuperar dentro já de uma perspectiva de exegese, tantos e tantos conceitos de se poder, de fato, pensar no Brasil? A consciência crítica tem as suas regras, ela se impõe, ela é uma análise, porque o seu feito final é um pensar um Brasil para si.

Estava varado por Vieira Pinto algo que, numa dialética aberta do pensamento, volta para esta Casa com um pensador-diplomata que aproveitou bem o seu tempo de Paris e de Londres para freqüentar os seminários de Lévi-Strauss, depois os de Ernest Gellner, e aí nos dar algo que hoje ainda tem repercussão aqui e lá fora – vi no Seminário de Florença, dois meses antes de José Guilherme Merquior morrer, o que representou sua contribuição já no plano internacional, e talvez hoje, José Guilherme Merquior seja o único pensador brasileiro que, em termos de teoria crítica, tem um lugar internacional assegurado.

Em muitos aspectos ele dá razão a Marx, para logo depois retirá-la, porque a ideologia é um fenômeno de classes, porém a classe, por sua vez, está vinculada a uma mutação de estrutura, e ele vai a Lévi-Strauss para, ao mesmo tempo, superá-lo. Há uma marca criativa extraordinária em José Guilherme; no ano que vem, no Seminário do Milênio, a UNESCO vai estudar a visão de super e infra-estrutura de José Guilherme, onde ele faz um solo histórico, onde ele trabalha num fio sem rede, e avança dentro da epistemologia contemporânea. Talvez fiquemos com o reconhecimento que nos dá Richard Ward, por exemplo, de uma contribuição extraordinária para superar a teoria marxista da infra-estrutura e seus condicionamentos sociais.

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 Nós estaremos aqui, meus amigos, portanto, dentro de um quadro de pensamento, de um quadro de idéias e desdobramento dessas idéias, onde um pensamento se organiza, se situa e chega, praticamente, ao seu remate. Estamos com uma Academia fornecida e trabalhada com uma espécie de guarnição nova, onde o espírito dos tempos está passando muito pelos pensadores deste primeiro contingente – este do centenário. E nós entendemos por aí de que forma a nossa Casa, como uma Casa aberta a esse pensar, pode responder a um recado que José Guilherme deixou como epígrafe, em The Veil and the Mask: “Being on the possible world the time their rise, lead them and please leaving for a while the letters, try to be wise.

Deixemos de lado as letters como pensamento formado, e vamos tentar ser sábios, no momento em que, efetivamente, se pode ter o lampejo de um pensar; este momento em que esta Casa pode pensar, no centenário, com outro estado de graça, com essa legião sombria, cinzenta, difícil, mal-perscrutável dos seus pensadores, é o de que nós, graças a Deus, já perdemos a inocência do mito, mas ainda não somos profissionais da utopia.

         Muito obrigado.

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