Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > A violência em banalidade terminal

A violência em banalidade terminal

 

A leitura dos jornais da última semana mostra a saturação a que chegou o noticiário da violência carioca. As páginas inteiras o repetem, coluna a coluna. Chega-se ao fartum da manchete, ou, literalmente, à impossibilidade do encontro de novos adjetivos. É uma exaustão que pode levar ao que os moralistas chamariam de acedia. Ou seja, de amortecimento de toda sensibilidade pela sua repetição e, sobretudo, pela certeza de que o registro não tem surpresa na sua monotonia.


Não há mais o inaudito que se possa prometer e o grotesco acaba por levar à vala comum do desinteresse um cotidiano, armado sobre este sensacionalismo esgotado. É o próprio imaginário das culturas de massa que aí se cauteriza, imune à solidariedade ou à relembrança.


O horror do assalto, do assassinato da abjeção do respeito com o corpo caem na mesma modorra de um virar de página quase fleumático no noticiário criminal da nossa mídia. O inenarrável do caso de João Hélio, ano após, já vai ao mero incomodo da memória. A comoção com o novo evento se perde no acolchoado da barreira que montamos no nosso inconsciente para passar adiante.


O que importa é saber-se até onde este dessoramento da opinião pública, e da capacidade de reação popular é, ou não, fundado desta nova cultura urbana, acostumada o ligar e desligar o botão da informação, e ao voyeurismo ainda do detalhe, ao invés da toma de consciência de como a marginalidade social criou autômatos da violência, na sua investida em mão única. Cada vez menos se negocia o tiro, ou a o caminho do salvar a vida, no instante do assalto, ou da arma na têmpora. O medo começa no bandido, via de regra drogado, e entra na roleta do ir à frente, a qualquer custo na violência que começou.


Esquecemo-nos muitas vezes que há um ritual da marginalidade no roubo que tem a morte da vítima por demasia, acidente ou lixo de desempenho. E nada pesa no jogo de custos e benefícios que levou ao crime querido e pretendido, às vezes, tão só a bolsa da madame da zona sul. E quando vamos esquecer Maria Emília fuzilada à queima-roupa, porque, entregue o carro, soou o alarme?


Tal como a própria marginalidade não se evade do social, não escapa à contradição de seus excessos. Se a banalidade da morte faz parte da regra do jogo, a impunidade esquece o terreno minado que corrói seu páramo. A bandidagem é condenada, também, ao princípio da retribuição para poder sobreviver. O delito interno não se perdoa e o castigo da "gang" esmaga o da sociedade civil lá fora. Só começa este justiçamento pelos próprios grupos, e a pena de morte, sumária, como por um nada disparou-se à queima-roupa contra Maria Emília se o fará, amanhã, contra o novo executado.


O abate da impunidade nasce no próprio seio do crime, embalado pela certeza podre de que, numa cidade como o Rio, fora do flagrante, só 4% dos delitos anuais são apurados. O horror chega aos seus paradoxos, pela punição da violência, nas suas próprias hostes. Mas onde a morte comparece, na sua mesma banalidade, pelo castigo sem volta, infligido pelos donos do pedaço aos asseclas, pelo roubo no troco ou na gorjeta.


Jornal do Commercio (RJ) 4/4/2008