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Vieira Coelho, um Diógenes Brasileiro

 

No mesmo ano em que celebramos duas décadas da morte de Alceu Amoroso Lima - o nosso leigo canônico - perdemos, a 8 de dezembro último, José Vieira Coelho, seu sucessor imediato na presidência da Ação Católica Brasileira nos idos do meio século e do começo dessa interrogação pela Igreja no seio do seu tempo que levaria ao Vaticano II. Paraibano, sucedia ao carioca cosmopolita, ex-aluno de Bérgson, e aberto ao diálogo internacional, a partir da experiência francesa.


A modernidade católica, para Vieira Coelho, não precisaria de um "aggiornamento", mas nascia de um dever de exposição de todas as correntes de seu tempo. E o compromisso intelectual do cristão começa pela ida a fundo à reflexão, no repto em que a deixara a fenomenologia e o culturalismo alemão, no avanço do pensamento crítico contemporâneo. A arena de Vieira Coelho era a da sala de aula, no remate do curso jurídico, quando espantava os seus alunos pela amplitude da formação, que saía latinidade e se inseria num caudal de idéias, para além da nossa tradição do neotomismo e de Maritain. Deparamos a lição de Dilthey, de Radbruch, de Lask, de Tonnies, de Timashef e o mestre, muitas vezes, não se dava conta, tal a naturalidade de seu convívio com estes autores, da brusca renovação de perspectiva que reclamava de seus estudantes.


Vieira Coelho ecoava, nas suas raízes regionais, o veio de Tobias e Silvio Romero, expondo a mocidade que o escutava, a todo um atletismo original do filosofar, sem concessão. Lecionava Filosofia do Direito, como professor fundador da matéria, na PUC menina, no Palacete Joppert em São Clemente, e no contraponto em que Alceu regia na Faculdade de Filosofia, a cadeira de Literatura Brasileira.


À saída do curso, convidava-nos ao mesmo exercício de Jerzy Zbrozeck, do começo do currículo, exigindo este pensar em bruto, em que o revigorar do humanismo radical reptava o positivismo e o agnosticismo decadentes, que remanesciam da belle époque.


As categorias do Direito levavam à reflexão sobre os valores e às perguntas do sentido histórico e de geração, nascida de uma universidade confessional. Todo efeito retórico, ou do clássico facilitário da nossa subcultura, neste exercício do entendimento da realidade, que não descartava o juízo sobre os absolutos, nem o planteio da transcendência, de outra força que o das tradicionais dogmáticas da fé, ou do que, em outra leitura da modernidade, nos banhava da disciplina e do rigor do neotomismo.


A meninada da quinta série de Direito deparava a face de Vieira, como a pátina já de eternidade, a que não faltava o semblante de um Diógenes ameníssimo, no que o humor, sempre distante do sarcasmo, era, sobretudo, a marca deste à vontade com o melhor do pensamento de seu tempo. Tirava-nos de toda visão de que a excelência de uma filosofia cristã dependia de um gueto de leituras, ou de uma indução do pensamento, num cordão protetor que poderia chegar a um determinado hábito do espírito, como ao que muitas vezes levava a visão maritanista sobre os momentos da verdade da nossa civilização, e o culto do esplendor estrito do cânon medieval o implícito, na lição de Vieira, era a compreensão do processo histórico por inteiro, sem épocas de ouro para o pensamento cristão e, necessariamente, consciente de que o avanço epistemológico só poderia respaldar a verdadeira meditação do transcendente, no desentranhar-se daquela dogmática em que a aventura intelectual já pressentiria o Vaticano II, no responder aos sinais dos tempos.


O entrincheiramento na cátedra fora, para Vieira Coelho, o melhor caminho para a implacabilidade da cabeça, repetindo a mesma pugnacidade da carreira pública do advogado. O então procurador-geral de Pernambuco chegara à confrontação sem retorno com Agamenon Magalhães, que o traria à retomada da profissão no Rio de Janeiro. Começava ao lado de Santiago Dantas, de Vitor Nunes Leal, para se fixar na parceria com o outro colega, emigrado do Recife. Manoel Cavalcante, o poeta de "Pássaro-Pássaro" e uma das autoridades fundadoras do nosso direito autoral, constituiu ao lado de Vieira um escritório do qual passaram muitos de seus alunos, ou líderes da Ação Católica, como Helio Jaguaribe e Célio Borja.


O Vieira Coelho da grande maturidade voltava às funções públicas, às chefias de gabinete críticas, do Ministério da Justiça de Negrão de Lima, no período Kubitschek e, a seguir do acompanhamento diuturno de Santiago Dantas na passagem pela pasta da Fazenda no interlúdio parlamentarista. Transformava-se, do conselheiro das dificuldades-limite, ao interlocutor das últimas conversas, tal como acompanhou os últimos dias daquele príncipe da racionalidade, tentado à vida política. Num à vontade diante da morte, Santiago pediu a Vieira que mudasse a iluminação da pintura que trouxera para o quarto de agonia, nestes requisitórios da derradeira elegância do espírito, bem à frente da indesejada.


Após a PUC, Vieira Coelho continuou a mesma tarefa na Universidade Candido Mendes, preferindo a cadeira introdutória geral ao Direito. Guardamos no seu sorriso propedêutico, mais dialeta do que de contágio, no remate de um magistério que não se identificava a uma obra escrita, mas ao registro de uma reinquirição permanente.


Entrado nos noventa anos, recebia os amigos frente ao mar de Ipanema, na varanda do apartamento, como antes da sua casa teimosa, das últimas resistentes, na Vieira Souto. Era como se ganhasse já um reflexo de intemporalidade, um perdurar indefinido da vida, feita de certezas da transcendência que dispensavam, até, a volta à contemplação.


Reflexo talvez da perene ruminação interior da sabedoria, no luxo de desprover-se de toda retórica, no cortante do repente e da mais rigorosa das vigílias. Perfeito viajor, do abandono nas últimas bagagens, da ascese radical que esconde a nonchalance. Ou o saber por onde não ir, tal como o despojar-se de todos os escapes da consolação, nesta nobreza arcaica, dos varões do Velho Testamento, à vontade com a última provação. Ou do fastio seu, só, de Vieira, de quem, vivendo sempre no perigo da grande mirada, descarta todas as razões menores, da perda ou do ganho da fé, de contabilidade miúda de êxitos ou louvaminhas biográficas.


 


Jornal do Commercio - (RJ) 9/1/2004