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Às vésperas da "civilização do medo"

 

Atingido com a baixa inédita dos 28% só de aprovação popular Bush parte finalmente para a estratégia de retorno aos píncaros da sua popularidade após o 11 de setembro. E aproveitou a relembrança dos primeiros cinco anos da data catastrófica para não deixar dúvidas quanto ao futuro que fecha a sua nação, aprisionando-a no universo de receio e de coabitação sem volta com o terrorismo.



As últimas declarações da Casa Branca são incisivas quanto ao desafio à Corte Suprema americana que tornou inequívoca a coexistência de disposições críticas do Patriot Act - aprovado sob as cinzas fumegantes do World Trade Center - para um efetivo regime das liberdades e das garantias do direito do homem de que, afinal, foram predecessores fundamentais os founding fathers da primeira Carta americana moderna, de Franklin e Jefferson em Washington.



O
governo Bush não deixou dúvidas quanto ao apoio à CIA e às novas regulações de segurança quanto a manutenção de um regime duro de torturas diante dos suspeitos de terrorismo. Admitem a imersão da cabeça dos presos em baldes d"água, ou ameaças de inanição. E o presidente continuará a questionar a decisão-chave de 5 a 3 da Corte, e o Acórdão Soutes, quanto à obediência pelos Estados Unidos, às Convenções de Genebra, e a inclusão dos homicidas do Al-Qaeda às garantias dos prisioneiros de guerra.



Desaparecerão, sim, no que se tornava insustentável diante do acórdão as muitas prisões secretas da CIA onde se presume se repetiriam as violências de Abu-Ghraib ou da tortura sistemática para obtenção das informações dos inimigos da humanidade na sua tentativa de abate do mundo do dito "grande Satã".



O presidente não deixa dúvida sobre o quanto já, e sem volta, quer ser lembrado na larga perspectiva da história como o líder sem receio nem contemplação, da face implacável dos Estados Unidos diante dos seus inimigos. Mormente quando a alternativa, tal como repetiu Bin Laden nas últimas semanas, seja a da conversão da América ao Islão.



Entorpeceu-se a grita contra a revelação das violências das torturas de Abu-Ghaib, mesmo quando agora o presidente confessa a existência de prisões secretas e palcos da extração de informações a qualquer custo dos terroristas. Democratas e republicanos reconhecem o perigo da nação ineditamente ameaçada, mas ainda hesitam sobre a prevalência efetiva da Rule of Law sobre o definitivo mergulho dos Estados Unidos nas leis de exceção e na protração indefinida de um inédito estado de guerra larvar para as próximas décadas.



É de logo que o núcleo duro do Bushismo se revigorou no extremo deste neo-evangelismo conservador, que chegou a ver, através de Pat Dickson, por exemplo, a queda das torres como uma punição à América pela tolerância com o homossexualismo, o casamento gay, a complacência com o aberto e amplitude do consumo de drogas no seu território. E é nesta mesma hora que alguns senadores e senadoras "neocons", chegam até - para espanto póstumo e irredutível dos founding fathers - a reconhecer como após o Patriot Act os princípios evangélicos deveriam estar consagrados numa legislação americana que chegasse ao último maniqueísmo, e ao combate ao mal visto como ínsito ao terrorismo.



Os mesmos grupos secundaram enfaticamente a reação de Israel frente ao Hezbollah, tanto os Estados Unidos se vêem sucessores da tarefa histórica da nação eleita por Deus. Washington reforçaria, num mundo dos jihads, a aliança com Deus, e a preservação dos valores de sua lei, no mundo corrompido na modernidade e sua devastadora secularização. Há seis meses ainda e antes da nova leva terrorista, o Congresso americano marchava para a abolição final do Patriot Act. Hoje se reconhece que não há conexão entre o Al-Qaeda e Saddam, se dá conta da multiplicidade dos focos de ataque aos Estados Unidos e que exige do país passar da defensiva às guerras preemptivas para destruir antecipadamente os adversários.



Experimentada nos mísseis arrasa quarteirão em Beirute no sul do Líbano, a preempção se alinha, em todo o seu portento, no que seja uma resposta final aos arreganhos de Ahmadinejad. O que de toda forma parece desaparecer é qualquer tentativa de que os Estados Unidos aliem-se às Nações Unidas, à prevenção do genocídio ou do etnocídio e na aceitação da Corte de Haia como para o julgamento dos crimes contra a humanidade.



De toda forma, a comemoração deste qüinqüênio do horror da queda das torres mostra como o seu abalo foi além do ground zero. Uma nova filosofia defensiva pode ir ao pedido de emenda constitucional e quiçá até ao seu plebiscito. A Corte Suprema julgou a violência de Guantanamo e o atentado aos direitos de seus detentos frente à Carta de Jefferson e de Roosevelt. O sucessor de Bush terá a responsabilidade de confirmar ou não a expectativa do mundo livre, de que o país canônico das liberdades não fecha, de vez, os cadeados de uma "civilização do medo".


 


Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 22/09/2006

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro), 22/09/2006