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Verão de remarcações políticas

 

A vinda do PMDB ao poder define uma ambiciosa estratégia do Governo para assegurar uma vantagem qualitativa na conquista do Brasil das prefeituras. Permanece hoje um condomínio de base - naquele país profundo - entre o PFL e o PMDB. Neste verão o PT quer remarcar estes preços políticos. O poder municipal em 80% do seu conjunto na verdade se divide entre os chamados partidaços, sucessores tradicionais da Arena e do MDB, tal como estes são herdeiros do PSD e da UDN, do primeiro retorno à democracia no pós Estado Novo.


Ao convocar agora o PMDB para o Ministério, o PT traz a máquina e os favores federais a um dos partidos do condomínio tradicional do poder. Empurra-o à vitória, ao mesmo tempo que muda as escalas do jogo, e a reorganização da sociedade civil que comece a se reconhecer no partido de Lula. No apoio que lhe dará o Planalto o PMDB derrubará o inimigo íntimo de todo o sempre, o pefelê, ao mesmo tempo que se expõe à condição de sócio minoritário dentro do novo esquema de ascendência petista. Isto é, vê-se exposto às vicissitudes da modernização política, enfim deslanchada no país, tornando, a prazo, inviável as clientelas e forçando as legendas a um alinhamento eleitoral por programas e interesses do dinamismo das classes sociais.


O que pela primeira vez enfrentarão em 2004 os ditos partidaços é uma política de alianças com parceiro sociologicamente distinto, cujo êxito mata os antagonistas tal como transforma o aliado no plano da condução de fundo da vida política do país. O PT traz agora ao Governo o PMDB, e deixa às urtigas, no mesmo leito de votos tradicionais, o PFL. A diferença se sentirá no diferencial com que maciçamente os candidatos do partido do Dr. Ulysses se comportarão, em termos de benesses, favores, verbas e perspectivas de futuro, com o PT no poder.


Mas o PMDB não descalçará, de vez, a bota da rivalidade consangüínea se não para amargar uma vitória de Pirro. O sucesso do atual Governo a meio tempo do primeiro mandato implicará com a dita reforma política a regressão das práticas ancestrais do voto de clientela, e do voto dinheiro, frente às exigências do voto ideológico, da adesão a políticas públicas concretas e do começo da disciplina partidária, por sobre o coronelismo eleitoral.


É de se esperar que o PMDB, neste compasso, de fato sobreviva à empreitada sem volta. Vingando, é parceiro menor nesta entrada do sistema político em outro regime de disciplinas, fidelidades, e expressão diferenciada de interesses sociais. Fracassada a expectativa de mudança, o PMDB não tem como voltar à frente oposicionista, e aí encontrar o pefelê como novo dono do pedaço, em nossa luta política.


Outro dado fundamental da prospectiva do Governo Lula, passado o ano de sua consolidação, e pondo-se, de garfo e faca à mesa do poder, foi a demora deste começo de oposição, a mobilizar o começo da ação dos insatisfeitos, de vez, com o PT e seus aliados. Mesmo porque, foi tão suave a transição, marcada por uma verdadeira maturidade da consciência cívica brasileira, que se tornava difícil a assunção, na atitude dos partidos perdedores, de uma passagem ao ermo dos favores políticos ou das vantagens de palácio. A inexperiência "situacionista" do PT corresponderia à bisonhice, no outro canto da luta política de partido como o PFL, acostumado à asa dos novos mandatários, e cobrando-lhes a nota gorda de seu êxito.


Esta demarragem demora em ambas as legendas, o PFL e o PSDB, sofrendo, sobretudo, o partido tucano de ter o seu programa continuado, de saída, pelos seus vencedores. Continuaria esta indeterminação de perfil, até que Serra assumisse oficialmente a nova chefia do partido, em novembro de 2003. Só então se depararia o estofo para uma oposição a largo prazo, sem sofreguidão de chegar ao poder, e disposta a capitalizar sobre os desgastes do novo situacionismo ao longo do mandato.


Crise ainda mais funda, de liderar para contestar, viveu o PFL, até que o chefe emergente, senador Bornhausen, se impusesse à sombra do ícone ACM, inclusive identificado no indiscutível auxílio regional que deu a Lula no segundo turno. A militância oposicionista, de toda forma, começa no desponte da presença e comando de José Carlos Aleluia na Câmara. Mas a marcar o testemunho do dissenso - por todo o primeiro ano do governo, e não de uma efetiva contradita ao governo.


Na verdade, nenhum dos dois partidos oposicionistas pode, por outro lado, vir às novas eleições com um crédito nítido, no seu papel de barragem às propostas originais de Lula, abandonadas, ou mitigadas ao longo do exaustivo processo de negociação. Sem campeões identificáveis da resistência feroz, o resultado final dessas leis fez-se num quadro indenominado de lutas opacas, de um conservadorismo instintivo e congênito, que precede as bandeiras partidárias.


De toda forma, o efeito imediato do PT no poder é o de ter quebrado, de vez, o retorno dos políticos de clientela para o comando do país, como deverá mostrar o próximo pleito municipal. A modernização política, no trato mesmo - e bruto - do mando, vai inclusive preceder toda reforma no Congresso. Se um dos partidaços mudar, o outro não pode ficar no mesmo lugar. Se o PMDB vai ao Planalto com Lula - o PFL não pode deixar de assumir a contradita. E sabe que a resistência também se moderniza, e distingue entre o moribundo e o obsoleto no status quo, pela primeira vez ameaçado pela posse e a festa de Lula na praça, em que continua o Brasil do outro lado.


 


Jornal do Commercio - (RJ) 16/1/2004