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A universidade, mudanças e impasses

 

O começo do Governo Lula tem sido marcado pela recarga de debates, congressos e troca de opiniões, concernentes ao projeto de futuro do Brasil, ligado às grandes vertentes estratégicas em que a educação cobra o seu quinhão decisivo. O ministro Cristovam Buarque quer-se deliberadamente instigante, senão até provocador, no que considera como o recurso contra o pior risco na tarefa do Estado e das políticas públicas, neste front onde o essencial é manter-se a luta sem quartel contra a obsolescência. E não é maior o seu repto, num país ainda a viver as tensões do subdesenvolvimento. O nível de aceleração histórica em que vivemos evidencia uma multiplicidade de tempos para superar atrasos e ao mesmo tempo saltos ao futuro. Experimentamos o empuxe tecnológico e o arcaísmo que resiste à mesma inquietação de Darcy Ribeiro e Paulo Freire.


O impasse que enfrentamos nessa entrada de milênio é de conviver com vários anacronismos, onde, muitas vezes, a busca da melhor produtividade na organização do desenvolvimento não implica as absorções de tecnologia, pedidas pelo nível ótimo da nossa absorção de emprego, ou de atendimento ao mercado, compatível com o consumo generalizado e democrático da coletividade.


Custa-se a vencer a tentação do progressismo basbaque, onde o atendimento das necessidades transplantadas do mundo da opulência, mascaradas pelo brutal nível de concentração de renda de nosso país, agora aberto para a mudança, nada tem de comum com a verdadeira aspiração nacional. Nem pode, este grupo escassíssimo e deslumbrado de uma primeira e nova riqueza, se identificar à verdadeira formação de uma elite brasileira.


Aliás, o problema em si mesmo, da socialização da idéia de mudança, discutiria de até onde os padrões de excelência, de uma sociedade que sempre usufruiu da mobilidade social, e levou os melhores ao seu topo, se pode comparar com a casta dos que, de saída, tiveram demais para se conformar a uma hegemonia de prosélitos, fixados sobre o último modismo do aparentar-se cultura e fruir-se prestígio.


Cristovam cobra-nos para superar esta universidade que já nasceu tardia e velha. Sobretudo quando, a partir da vitória de Lula, ganhamos um novo imaginário da repartição das oportunidades de futuro, e democratizamos a esperança de se o lograr. Mas aí estão, logo, os três paradoxos que o exigir-se o nosso "campus" para todos, e dentro da autenticidade de suas demandas, se transforma em premissa da visão renovada e provocadora do que deve ser o nosso terceiro grau.


Nota-se, em primeiro lugar, a rendição da prática unanimidade do padrão das universidades brasileiras à monotonia do estatuto burocrático. Desaparece a idéia do modelo como fertilizante da diferença e não se trata de que o Conselho Nacional de Educação torça o nariz à diferença. Enquanto ficamos prisioneiros, inconscientemente, do velho padrão autoritário, já morre no ovo o lance ou intuito até de discrepar frente à muralha do aparelho burocrático. Entorpece-se todo o clamor da Carta, de que a educação privada se deve caracterizar e ser amparada pela criatividade de idéias e propostas, bem como pelo pluralismo de modelos no aprendizado do conhecimento.


Como responderá o Conselho ao choque do novo, que chegue à apreciação do verdadeiro tribunal de futuro, em que se baliza a melhor projeção da identidade brasileira e a passagem de seu anel de confiança entre as gerações? Continuaremos presos aos currículos mínimos, transformados em currículos máximos, ou dos padrões de excelência transferidos a critérios de alocação de títulos de professores, ou aos tempos da formação universitária?


Para ficar-se no básico destes anacronismos que revolvem o solo acadêmico do País, exposto ao arcaico e a irrupção das multinacionais, a primeira das neoagendas diz respeito ao que oferece o panorama das universidades brasileiras à chegada do capital internacional, após a nova resolução liberatória em que o ensino passou ao martelo da Organização Mundial do Comércio.


Aí está o desejo evidenciado pelas primeiras propostas, de espertíssimos intermediários, interessados em adquirir campus em desempenho precário, para acertar-lhes a produtividade dentro dos melhores critérios dos shoppings centers da cabeça. E a seguir, tudo nos trinques, revendê-los no mercado.


O debate sobre a viabilidade de se constituírem as universidades nacionais vai proceder à avalanche estrangeira se, de fato, o apetite desses capitais externos for estimulado pelo dinamismo com que alguns campus, no País, já comportam os negócios de vulto buscados por este mercado emergente, e que também já esporeia significativamente as condições de expansão do setor? Ou conserva a educação superior no padrão em que é disciplinada na Carta Magna - uma diferença, que se assegura desde tenra, na garantia do pluralismo constante da oferta de ensino, e não apenas - como o faria um mercado estrito - quando se construísse um.


Estas operações do capital externo vão ou não contrariar o processo de crescimento da universidade brasileira, que deve manter a diversidade a cada momento em que se assegura a escala da sua concorrência com o padrão local do ensino superior?


Doutra parte - e terceiro paradoxo - verifica-se que a expansão do "campus" no Brasil quebrou a tríade visceral de sua identidade, expressa no conjunto ensino-pesquisa-extensão. Aos chamados "centros universitários" conferiu-se a regalia da plenitude do ensino de terceiro grau que é a autonomia, que permite ao "campus" expandir-se à sua própria e exclusiva dinâmica. Morre, por aí mesmo, o desenvolvimento da pesquisa no plano da educação privada, já que são pouquíssimas as casas universitárias que retirem das próprias mensalidades as condições de realizar um programa avançado de pesquisas.


A saída do impasse, já, impõe a cooperação entre o MEC e o Ministério de Ciência e Tecnologia, na abertura de suas destinações orçamentárias e, sobretudo, do apoio pelos 14 fundos setoriais, obtidos por contribuições sobre as telecomunicações, as empresas de energia elétrica, da saúde, e do grande complexo industrial do País.


Mais ainda, o que se vê ainda de tais dotações é que, por lei, vão obrigatoriamente à universidade pública e, na prática, afastam-se, por inteiro, da pesquisa no plano social e humano, onde está o grosso da oferta das universidades e centros, na natural evolução em que arrancaram das faculdades isoladas, e nelas da abundância dos cursos de direito, administração, economia, contabilidade ou letras.


Na exasperação destes paradoxos, e como seu remate, paga-se o preço da sina da política de mudança no país pobre. Acabamos por desperdiçar os recursos escassos e perdemos, de todo, o efeito multiplicador, necessário, de seus resultados. Darcy e Paulo Freire sabiam disto e Cristovam, agora, leva adiante o vencer-se estes paradoxos.


 


Jornal do Commercio (RJ) 19/9/2003