Vencido o primeiro tempo do mandato petista desenham-se propostas de mobilização e propaganda, no melhor intuito do combate a uma aludida baixo-estima do brasileiro quanto a seu desempenho histórico. A campanha talvez seja apenas compensatória, ao que se entenderia como um desgaste inevitável do governo - independentemente da popularidade do presidente. Mas talvez acolha premissas quanto à visão do país sobre si mesmo, que foram superadas pelo próprio advento de Lula e da mudança profunda que acarretou à percepção sobre nós mesmos, vencendo estereótipos de um Brasil recém-aposentado.
Não nos demos conta, ainda, do trabalho de fundo, pertinaz da consciência coletiva que emerge do Brasil que votou em Lula, e entrou com ele em Palácio. Não se trata, apenas, de reconhecer o fenômeno novo, dessa persistência da popularidade do petista, de como ela bate, de longe, a própria aprovação ao governo. E, contra a expectativa normal dos desgastes de um segundo ano no poder, deparamos o empinar-se, de novo, do apoio ao presidente. O dado novo da análise política é a do enorme desnível, entre o coeficiente de confiança pessoal no homem do Planalto e o que, de fato, poderia responder ao plano concreto das realizações do Ministério e de um pacto distinto de poder.
O país de agora encontra o seu rumo entre a impaciência e a esperança. Mesmo porque este amuo inicial é, sobretudo, a do dito Brasil de salão, das eternas retornelas de poder, e do jogo de um mandato como o de um perde - ganha, anódino em termos históricos, entre os mesmos caciques de todo o sempre; entre os partidos de clientela, do mesmo talher posto à mesa, no abocanhar funções, cargos públicos, compadrios e fatias orçamentárias. O que se irradia, sob este balcão nobre, é a visão do povo como permanentemente contagiada por uma baixa estima nacional. Teme-se que esta perspectiva importada do Brasil vencido em 2002 insinue-se nos olhos de ver do Planalto, sem se dar conta do novo e imenso "capital subjetivo" de que ora dispomos.
Nem se trata, sobretudo, de imaginar que a permanência da fé, ainda sem as obras vive de uma trégua última da impaciência do velho regime antes de cair no cinismo de sempre, e no abismo rotativo da crença no país "que não dá certo". Nem é este clima, do começo do novo, o de que voltemos às reiterações das velhas crenças cívicas, que sempre portem diante do derrotismo crônico da visão do último bunker cívico, onde resistimos, na clássica litania reducionista de que afinal sobra-nos sempre força para voltar à carga, confiando no valor ilimitado do nosso homem. Ficar-se apenas no grito de guerra que, no Brasil, o "melhor é o brasileiro" pode levar a nos comprazermos com o triunfalismo, negando ao que já pode o evento Lula, como o começo da análise de uma nova maturidade nacional. O que somos, "em situação"? O que adicionamos, como nosso, a um acontecer passivo?
A frase sagaz do bom Câmara Cascudo serviu de resignação piedosa para um Brasil que não pôs, de fato, toda sua tropa em campo, para dizer a que veio este nosso homem, e não comporta as ladainhas da velha autojustificação da nossa dita e redita baixa auto-estima. Resulta de não assumirmos na velha condição semicolonial, o país como projeto; como resultado de uma ação da vontade e da consciência, que é sinônima da construção, a largo prazo, da própria autodeterminação nacional. São várias as marcas deste mesmo fenômeno de base, a envolver a nossa representação interior, antes da percepção efetiva da viabilidade do país. É o que terminava por deixar as elites, com maior ou menor sutileza, no país da facécia e da cultura reduzida ao artifício e ao ornamental; às atitudes de cinismo elegante e manifestação habilidosa da descrença, como habitus desta inteligência castrada, ou, por inteiro, voltada ao mimetismo da produção ou do ribombo ao êxito externo.
A chegada ao poder do PT fechou o último elo que nos despertou para nossa genuína auto-estima nesta reação em cadeia no inconsciente coletivo do país. Nascia das investidas e dos aríetes daqueles 33% de brasileiros que se identificavam a legenda e ao protagonismo de Lula, a se transformar em autoconfiança irredutível com a chegada finalmente a palácio. Foi verdadeira "festa no céu" a da entrada no Planalto do novo presidente, com o séqüito interminável de todo o país. Na Esplanada e na televisão forçavam um novo cenário para o advento brasileiro. Sobretudo, criava definitivamente uma arquitetura subjetiva prospectiva para o país, em que não cabiam mais nem os panteões mofinos de feitos e garbos de um Brasil de elites; de história comparativamente pobre.
Somos o Brasil que levou um operário à Presidência; que não se entrega daí para diante à inércia. O Brasil da fertilidade no referir-se e fundar o contexto, neste pragma criador, que o velho preconceito do Brasil-janota definia como jeito. O país que, na força desta penetração no imaginário, logra a mais espantosa convivência dentro das desigualdades sociais. Dispomos hoje, também, de condições objetivas para superar o convencionalismo de nossos brios internacionais, apoiados mais na contabilidade geográfica, ou no tesouro jacente mineral, ou no maior patrimônio de água potável da humanidade, ou nos conformarmos à mera expressão de um quantitavismo demográfico, dos nossos decantados 175 milhões de habitantes.
É toda uma mudança da nossa atitude interior em corte decisivo, que descarta todo o antigo sentimento de passividade e se reforça do rompante do voto, e do seu ganho aplastador. Há, por força, que atentar a todo percurso deste novo aluvião do subconsciente; de como se mantém ou como se frustra, de como entrará em todo novo teor de justificações; ou de mitologias sôfregas. Mas, de forma alguma, retorna-se ao Brasil natureza, e a elaboradíssima justificação das nossas impotências, ou transposições justificativas dos nossos impasses. Por definição e escolha, o presidente anticarismático, por excelência, Lula tem diante de si uma disponibilidade histórica paradoxalmente despropositada. Cauciona muito mais do que digam os seus próprios gestos, cria reservatório de esperança para além de qualquer política ou conversão à demagogia, vive um percurso absolutamente paralelo e distinto entre o quanto continua como garante, o quanto se constitui como testemunha e em que medida torna-se o refém do que a sua vitória constituiu como promessa, antes de se transformar num programa de governo.
O trato adequado desta relação sutilíssima faz em si mesmo a trama do Brasil com um decisivo viés otimista, do que começou a 27 de outubro. Conta com repartidas de apoio, recobros de crença, leituras positivas de qualquer sinal em que, na verdade, não é um governo só, mas o outro Brasil que chegou a Palácio.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 12/11/2004