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Uma obsoleta cultura da paz

 

O fim do ano registrou, como um bordão já da cultura do medo, quase a mesma quota de mortes em Gaza ou Jerusalém, de explosões de homens-bomba em Bagdá ou Tikrit, e os massacres de sudaneses no Cairo. Um novo realismo, nas atuais proclamações do Papa Bento XVI, entrevê o quanto o próprio anúncio da esperança reclama ouvidos diferentes. Sobretudo, a consciência do que já é visto com descrédito, no clássico apelo ao desarme dos espíritos, diante do clamor de suspeita universal, inaugurado com o 11 de setembro e a queda das torres.

A recém-terminada conferência da Comissão de Alto Nível da Aliança das Civilizações, da ONU, em Majorca, atentou profundamente a este problema, e ao modo pelo qual os discursos oficiais de nosso tempo sobre a volta à paz chocam-se com a expectativa dos movimentos sociais efetivos, e mesmo com o cinismo arraigado das novas gerações em todo o mundo. Ou, pior ainda, como notam os sociólogos europeus, com o inquietante neodireitismo que, no centro da Europa, começa a acenar às velhas reminiscências fascistas, frente ao caminho sem volta das hegemonias em nosso tempo.


No quadro desse pessimismo somam-se, no ano passado, os infortúnios sobrevindos à idéia da Europa e à impossibilidade de que a nova federação do Velho Continente, votada em cada país - e negada pela França e pela Holanda - pudessem permitir uma visão diferenciada e flexível do Primeiro Mundo frente ao Salão Oval.


De outra parte, não há, apenas, a referirmo-nos a um cansaço crescente da opinião pública americana com a cruzada bushiana, pondo um basta às prorrogações indefinidas do Patriot Act, em fevereiro de 2006. Começam também as resistências, inclusive nos tribunais, contra a entrada do fundamentalismo mais estrito nas escolas, a partir das decisões, como a do Kansas, de coibir o ensino da evolução, num claro atentado à secularização do Estado. Vozes como a do arcebispo Tutu, em Majorca, ou de Karen Armstrong, ou de Mohamed Khatami, ex-presidente do Irã, preocuparam-se sobremodo com esta permanência de um terrorismo cada vez mais difuso e baixado a um verdadeiro inconsciente social do nosso tempo.


Exprimiria, na visão de muitos dos partícipes do Encontro, um sentimento de verdadeira expropriação da subjetividade coletiva além do Ocidente, a que teria chegado a estandartização do próprio imaginário contemporâneo, permitido pela verdadeira ditadura da civilização mediática. Contribuiria para o fosso da desconfiança crescente a massa de preconceitos, a confundir o mundo islâmico com as facções de Bin Laden, como adiantou John Esposito, professor de Columbia; ou ao novo temor de atentados, como o das Olimpíadas de Munique, na Copa do Mundo em 2006; ou aos novos seqüestros de alemães ou italianos em Bagdá, visando à pressão de seus governos na definitiva - e improbabilíssima - saída das tropas americanas do Iraque.


Como avançar-se num projeto de "aliança das civilizações" que defronta hoje um terrorismo global e anônimo? E a quem falar-se hoje, continuava a conversa de Majorca, diante da disseminação da "civilização do medo" nascida cada vez mais deste levante instintivo contra um universo preso a uma lógica hegemônica e seu comando sem volta? O problema envolveria o apelo às mobilizações da sociedade civil em todo o mundo, no permitir às ditas "ações afirmativas", começadas pelas marchas de Martin Luther King, em Washington, já há quase meio século.


A enorme manifestação de 13 de fevereiro de 2003 contra a iminência da guerra do Iraque vivia a vastidão desta repulsa dos pontos-chave da Europa, a reunir milhões em Londres, Madrid, Barcelona, Roma ou Paris. Mas a "civilização do medo", continuava a reflexão da ONU, bloqueia a consulta popular, e utiliza o perigo do atentado-monstro para travar o debate de outras políticas e de outras passagens do fosso da desconfiança exasperada pela queda das torres.


As mobilizações, por outro lado, deixaram bem claro o quanto qualquer apelo à superação do universo do medo vai além das vagas convocações à educação, e ao seu papel efetivamente transformador na sociedade à sua volta. Está-se aí, como repetiu Iqbal Rizza, secretário da Comissão, diante de um efeito filogenético. Ou seja, de largo prazo, ao fio das gerações, quando hoje a ameaça de abate de coletividades inteiras, venceu-se o perigo do holocausto atômico, está diante do portento devastador do terrorismo de massa e sem quartel.


O apelo, urbi et orbi, simplesmente à mudança pela escola seria visto por muitos como o facilitário da boa consciência, auxiliando mais do que denunciando os impasses do "aqui e agora", de torna ao mundo do começo deste século. A mobilização, sim e já, para a volta do povo à rua em todo o mundo parece ser a primeira resposta e o sinal ao entrincheiramento da hegemonia e o superarmamento da guerra preemptiva.


A busca do diálogo dependeria da fala direta às próprias lideranças americanas, que parecem, já, abertas às grandes democratas, e mesmo do partido de Bush, a partir das palavras quase proféticas do senador McLain. A falta desta interlocução nos deixaria no cantochão por uma obsoleta cultura da paz. Falar já à hegemonia se transforma na grande ação afirmativa, diante dos mármores de Washington, e da aposta na nação dos founding fathers e das liberdades fundadoras da modernidade.




Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 6/1/2006