Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Terceiro mandato: a gula e o golpe

Terceiro mandato: a gula e o golpe

 

Não temos precedentes desta popularidade presidencial, em meio a um segundo mandato, desalentando toda a chance de uma oposição, na expectativa clássica da usura dos governos. Só aumenta, neste momento, a previsão da subida de Lula nesta identidade de um Brasil de fundo com o Chefe da nação. E nos questionários deste suporte maciço, não se salientam programas específicos, mas esta sensação de melhoria geral, no vínculo simbólico ao "Lula lá".


O que está em causa é o avanço de uma consciência popular fundadora, em que o país dos excluídos se mira, a cada dia, num dos seus. Este enlace inédito que chegou ao Planalto independeu do próprio partido, resistiu às suas decepções e mantém-se intacto na figura do Presidente. Mas esta solidez inédita até onde traz o perigo, também, da passagem a um laço personalíssimo com Lula, e a moção que der à sua vontade política, senão ao arbítrio de manter-se no poder?


É esta visão, nem tão improvável, das metamorfoses de democracias em ditaduras que alimenta ainda as oposições, acreditando que o sucesso do presidente possa levar à tentação do terceiro mandato. É neste mesmo limite que se subestima o ganho de fundo, irreversível, que representou a chegada do Brasil de fora ao poder, em 2005.


Estamos, de fato, diante de uma efetiva virada de página, em que o êxito do presidente é também o da consolidação, de vez, das instituições. E nelas, do sentimento da mantença das regras do jogo que trouxe Lula ao poder e, nele, à obediência às suas expectativas sucessórias. O statu quo e sua nostalgia golpista continuam a descartar esta pedagogia profunda da consciência popular que, entre nós, nasceu do exercício do poder de voto e, por ele, da chegada ao poder de uma legenda diferente. Sobretudo, de uma representação distinta do establishment e do perene compartilho do Estado a que proviam os regimes partidários e seu exercício de turno da Presidência.


Talvez não tenhamos nos dado conta ainda deste impacto fundador que representou o voto obrigatório no país, e da maneira pela qual, historicamente, o PT foi a este exercício pelo outro Brasil, acreditando na militância política disciplinada, e na segurança final de seu desfecho. Não só a legenda não tem êmulos em toda a América Latina, como por ela, a consciência das contradições sociais e do inconformismo com a sua mantença, não foi à violência sem volta que levou, nos países andinos, ao Sendero Luminoso, no Peru, ou, até hoje, à guerra sem trégua das FARCS colombianas.


Este plus político do "chegar lá" do povo de Lula é o ativo novo e nosso que permanece, independentemente do colapso da sigla, tal como a solidez da Presidência passou a uma coalizão partidária, maior até que o das núpcias políticas de 2002. Da mesma forma que não há adesismo irracional, numa visão facilitaria do carisma de Lula, mais se reforça o sentimento da solidez mesma da democracia, que vem de par com a chegada do petista ao Planalto pelos estritos caminhos do voto e do seu respeito aos jogos de poder no Brasil de hoje.


Distinguimo-nos, por aí, da imaturidade institucional de uma Venezuela, e do açodamento com que Chávez tentou, dentro da desfiguração das regras constitucionais, obter uma Presidência perpétua e consentida, por plebiscitos continuados. O desfecho negativo da primeira tentativa não lhe levará a desistir de nova aventura de consulta popular. Mas é o que só contrasta com o país de Lula, em que a tranqüilidade presidencial é a da crença de que a norma pré-estabelecida definirá a sua sucessão. Os continuistas de todos os tempos se especializam em pescar em águas turvas, a querer repetir no Brasil a tentação Chavista, e as emendas constitucionais para um terceiro e quarto mandato, na gula do ficar e do golpe para lográ-lo.


Estas semanas já mostram a separação do joio do trigo, e de como estas sereias oportunistas se aportam do fundo da consciência do povo de Lula. O que importa, logo, é que o presidente desanime estas melopéias retrógradas, e permita que, de logo, despontem os nomes para a sua sucessão. Mantido o jogo democrático, despontam, nestas novas gerações, sem nostalgias e, sobretudo, seduções fáceis por continuísmos obsoletos e futuros domesticados.


Jornal do Commercio (RJ) 9/5/2008