Não se flagrará mais a humanidade na praça, como se a viu nas exéquias de João Paulo II. Uma coesão universal filtrava, a mão na mão, por entre o mirar aberto de um mundo em trégua, numa solidariedade transbordante. Ou num estado de graça percutente, subversivo às rotinas da ''civilização do medo''. Era o escape, que, inconscientemente, clama pela perenidade do instante, ou desliza às nostalgias de um mundo tornado à cristandade. A tentação seria de retornar-se ao universo mental que o Vaticano I procurou conter frente aos tempos modernos. O Concílio de João XXIII já foi o de um pleno desposar da Igreja pelos nossos dias e à busca de seus sinais, como o dos chamados de uma Igreja encarnada.
A sideração mediática de João Paulo II levou a este arrebatamento dos corações por um ofício monumental de consenso, propiciado pela força única de sua liderança no mundo reduzido pela banalização do mal, que se torna agora o mote de seu sucessor. O novo pontificado é o de um intelectual, brandido ao fio do rigor da consciência e do trato de suas dúvidas, até para evitar o mergulho do triunfalismo da Igreja de Wojtyla a vencer a orfandade em que nos deixou, até pela torna àqueles enraizamentos nostálgicos, das vésperas da nova modernidade conciliar.
Como fica o ecumenismo, na palavra de Bento XVI, frente ao Cardeal Ratzinger que, em debate crítico de ainda há dois anos, enfatizava a estrita mensagem salvífica da Igreja Católica? Todo esse enorme percurso, pós João XXIII, do encontro das fés, reconhecendo o seu contexto intercultural, já sofrera dos emperros nos últimos tempos de João Paulo II, não obstante a maior veemência simbólica e gestual pelo grande propósito. Nos debates da sua Encíclica Dominus Jesus, aflorara a declaração do então Cardeal do Santo Ofício, de que ''só na Igreja se encontra a salvação, plena dos meios salvíficos''. Ou seja, todo o diálogo intereclesial é só primícia de um debate mais fundo, em que deverão se desatar neste entendimento final os percalços para que se manifeste a única e verdadeira fé. O suposto era, pois, que o ecumenismo se dissolvesse dentro da crença adulta a que se associa a pregação mais funda da homilia de Ratzinger, às vésperas de se fecharem as portas da Capela Sistina.
O Cardeal Martini foi a voz mais nítida nos dias do pré-conclave, voltando repetidamente à carga na busca da expectativa da Igreja pós Wojtyla. E o empate, no primeiro escrutínio com Ratzinger, precedeu à avalanche do aponte de Bento XVI. Na convergência final ressoariam as palavras do antigo Cardeal de Milão: ''não há dúvida de que, fora de qualquer Igreja, alcançam a salvação todos os que seguem a graça de Deus, a consciência moral e do Espírito Santo''. Desatou-se o consenso tanto o novo Pontífice juntou a verdade, intrinsecamente, à caridade. Nas primeiras palavras do Papa, entende-se que os encontros na fé perseguem-se no mistério de cada um, e na força de sua entrega à Deus. No propósito da humildade de Ratzinger o novo sucessor de Pedro quer uma Igreja prospectiva, à escuta da Encarnação, no mundo de todos os quadrantes para além das seduções da velha cristandade. Esta ainda transparecia no Cardeal, voltado para um claro integrismo cultural, quando se manifesta contra a entrada da Turquia na grande Europa, tanto embaraçasse o Islão uma leitura restauradora do Ocidente nas suas raízes confessionais que, aliás, rejeitou a Carta Magna da União.
O novo marco de humanidade que rompeu na Praça de São Pedro recusa qualquer retornismo ou identidade prístina, para assentar a palavra do Pescador diante da ''civilização do medo'', irrompida com o novo século. Vai a Igreja de Bento XVI à palavra contra o universo hegemônico, que ora nasce das cruzadas partidas do Salão Oval, a pretexto do terrorismo, e a implicar uma imposição de valores urbi et orbi por sobre os contextos culturais de onde nasce a sua vivência e concretude. O adeus a João Paulo II move uma opinião pública internacional, que confronte um fundamentalismo a se valer da fé, contra o implante de um novo e efetivo tecido de cidadania mundial. Este, na sua diferença e no seu multiculturalismo, se transforma, de fato, na barreira contra as terraplanagens históricas em que quer se erguer um universo hegemônico.
O novo pontífice já remove o empecilho para a prática do ecumenismo, voltado a considerar a Igreja católica não mãe, como insistir Ratzinger, mas irmã, no diálogo com os outros credos. Não foi outra a interpelação do patriarca grego de Damasco em 2000, frente a João Paulo II, diante da insistência no primado universal, frente às Igrejas locais, que já interrompera o acordo anglicano de 83.
O teólogo e intelectual ofereceu-nos esta dramática mudança do pastor frente ao povo fiel no timbre em que enunciou o enlace único da verdade à caridade. Ou a percepção extrema do anúncio como caminhada da crença no confronto com os relativismos. Ou deste relevo do concreto e da esperança, para evitar a banalização da fé. O que não pode Bento XVI é desertar a praça que herdou. Mas para fazer da Igreja-espetáculo a Igreja relevante, como pede o inédito de um Papa pensador, e implacável, que implora, de partida, o ''desmedido'' da força divina.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 04/05/2005