O desaguisado de Kirchner, no desfecho da nossa cúpula de maior amplitude intercontinental, não perturbou o ambicioso desígnio de Lula. Nem retornaremos ao poço sem fundo das nossas relações com o Prata. Ou ao desgaste do Mercosul, tanto se vá ao cerne da pauta comercial do empresariado brasileiro com o portenho, e se o liberte da condição de refém da nossa persistência protecionista. O arrufo presidencial é de um script que persevera, desde o ano passado, mas passou ao destempero, frente à escala de nosso protagonismo emergente.
É lamentável que a pontuação dos muxoxos, bocejos, saídas de cena de Kirchner, retorne a um contencioso gasto de rivalidades na agenda bilateral entre Brasília e Buenos Aires, que é por onde se pode desimpedir uma verdadeira estratégia para enfrentamento da Alca. Até onde o chefe de Estado argentino compraz agora aos Estados Unidos, na barganha óbvia pelo alívio da condição de inadimplência internacional de que já se livrou o Brasil, no seu novo capital de credibilidade externa?
O insulamento de Buenos Aires no Continente compensa-se, de toda forma, na busca de uma possível entente, a prazo, com as lógicas da hegemonia, em contraponto a uma agenda econômica global latino-americana. Os jogos óbvios, de freio à caminhada continental, por novos termos de diálogo com os Estados Unidos, resultariam da defesa das cláusulas clássicas de luta antiterrorista. Não há como modificá-las, enquanto asseguram um intervencionismo latente da superpotência, diante das condições da guerra preemptiva, e seus termos de diktat internacional. A rigidez portenha confrontaria o governo palestino de Abbas. A luta incondicional contra o terrorismo prejudicaria a legítima defesa da soberania na Faixa de Gaza, diante do sem fim das retorsões entre Israel e o Grupo Hammas, que a própria ONU quer trazer de volta à coexistência, neste foco crítico para o mundo da paz, pós guerra do Iraque. A retração argentina quebrou a solidariedade continental, no momento em que é o próprio Presidente Toledo, do Peru, de saída tão chegado ao democratismo hegemônico, que reconhece a cunha plantada pela iniciativa brasileira entre o terrorismo internacional e a imemorial tensão arabo-judaica.
É significativo, por outro lado, que um governo cercado de todas as reticências, como o do neo presidente Talabani em Bagdá, diante do escopo e limite da ocupação americana, tenha ido adiante do discurso óbvio, quanto a caução de soberania que ainda enfrenta. Mas, sem dúvida, toda esta primeira cúpula, entre a América Latina e o Crescente, deu respaldos à flexibilização de um discurso possível, a médio e a longo prazos, quebrando as presunções até hoje invioláveis quanto a manutenção do mundo de após o 11 de setembro e a invariabilidade da cruzada do Salão Oval. O exit de Kirchner não prejudicou a outra inovação do encontro, qual seja a de submeter-se ao primeiro e básico imperativo do respeito às culturas para a afirmação da democracia ou das liberdades. Com efeito, estes valores se assentem na sensibilidade das populações que lhes emprestem efetiva vigência. À sua falta estes ideais se transformam nos seus simulacros, e à tal pregação respondem as lógicas da hegemonia e seus álibis intervencionistas. O discurso-síntese de Lula - e feito de improviso - é um momento plenário de percepção deste novo universo ideológico e da denúncia da retórica democrática, para muitas vezes desfocar o começo do diálogo no mundo de agora, pela expropriação das diferenças, em que se constituem, à sua verdade, os atores expostos ao atual cenário global.
O reforço a Abbas, por outro lado, saiu do script da fidelidade aos jogos feitos, iniciada com a tentativa objetiva do Salão Oval, de cancelamento ou redução do porte dos governantes que compareceriam à reunião com Lula. O histórico do encontro à espera da nova rodada, daqui a dois anos no Marrocos, nasceu da denúncia das prioridades da agenda hegemônica, na afirmação do avanço da liberdade efetiva contra a sua imposição de fora, na esteira de uma ''civilização do medo''.
A reunião já passaria ao anódino burocrático, ficasse no refogado da pauta comercial ou da retórica política. O novo, como salientou o presidente Boutefleka, da Algéria, é reconhecer que as frentes antiterroristas não podem descartar a diferença dos conflitos que enfrentam. Nem por estas indistinções sumárias perpetuar o pretexto das guerras de cem anos, que podem ter começado pelo abate das torres de Manhattan.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 18/05/2005