O dado em que dobramos o ano não é, tanto, o da alegria com a possível penetração do desalento com Lula no país de base - seu eleitor pétreo e contumaz. O grave, sim, e o novo, é o aumento sombrio do voto nulo crescendo em todos os setores do eleitorado.
Leda, e mais que vã, é a esperança de que a queda do presidente reforce, simetricamente, o voto da frente tucano-pefelista. Não se vai às urnas de 2006 com o confronto de sempre, como se fosse pendular a mera sucessão do mesmo comando político do país. Quem se decepciona hoje com o petismo não vai encontrar de novo os quadros do Brasil que ficou, de vez, para trás. A crise mostra que a corrupção é de todo o sempre e, se contaminou o PT, só espelha o sistema perene dos caixas 2 “do bem”, de Eduardo Azeredo, Roberto Brant ou de todos os usos e costumes do pior Congresso das últimas décadas e do acordão de todos os perdões.
A luta entre os morubixabas tucanos pela cabeça de chapa com que vão às urnas só mostra a perplexidade no buscar a diferença, como proposta de mudança, entre Geraldo Alckmin ou José Serra. Mais a fundo, sim, vai a certeza de que nenhum novo valor se beneficiou da retórica do moralismo, nem pôde encampar um pós-Lula com a força dos primeiros desencantos alardeados pela imprensa. Pobre nomenclatura a dos candidatos, e nem tão curta, afinal, é a memória do que se deixou para trás, diante do choque do PT no poder e a permanência do símbolo do presidente.
Para trás também ficou, de vez, o grotesco do evangelismo na política, em que não falha o faro popular para reconhecer que o larápio de dinheiros públicos pode ser até o bom ladrão das escrituras. Aí está, bem-aventurado, o desgaste decisivo do PL e assemelhados no vazadouro sem apelação do valerioduto. Mal começamos a perceber, entretanto, o que será o país da perda da esperança, sem se demitir da lucidez da opção feita em 2002. Para onde vai o vazio dos desmunidos sem a sofisticação para o cinismo do país dos cartolas, nem a facécia oposicionista da hora, próprio da classe média?
O mundo vê ainda Lula como a maior liderança periférica pós-Mandela. Quando, há quatro eleições, o Brasil destituído votou em Lula, optou pela vitória eleitoral sofrida contra a resposta da violência, sem retorno, do Sendero Luminoso ou das guerras dos 100 anos das Farc na Colômbia; ou do sumiço do Estado-nação, como o pensávamos ainda há um século, pelo novo fundamentalismo indígena da Bolívia em meio às instituições destruídas.
Como se combinam desencanto, sem chegar à revolta, e esperança, que sabe, já, por onde não tem de ir? O inquietante da próxima eleição resulta de podermos entrar num período torvo não só de falta de programas - como hoje sofremos - mas de descrédito visceral nas próprias promessas, disparado pela perda da ingenuidade eleitoral diante dos riscos na volta do atual Congresso, da hipertrofia paulista e da fissura entre o presidente e o partido. O voto nulo pode talvez se trocar, na última hora, pela escolha sonâmbula de candidaturas que a classe média assimile ao veto à corrupção e o Brasil do medo à luta contra a violência urbana no país.
Claro, fica no ativo, também, ainda mal percebido de Lula o corpo-a-corpo, face a face, mão na mão, em que pode retomar as Caravanas da Cidadania, berço final da projeção e do retrato do presidente de todos os rincões. Vá a fundo, no veio do seu sangue, que o tacape básico da reeleição não é o programa acima de qualquer suspeita, nem os requintes de um novo projeto ou a simplória promessa de um recomeço a manter-lhe a faixa. Lula, insensivelmente, perde os seus trunfos, tanto quanto se entrega à posição defensiva, que começou a pontear nos debates do fim do ano. O trato único de Lula com o inconsciente social brasileiro se perde ou se ganha diante do seu tento em lidar até com a queda da inocência de uma força política que chegou ao poder com a primeira voracidade dos destituídos de todo o sempre.
Lula tem diante de si a cartada única de superar as decepções da hora, para atender à enormidade da crença que porta. Sozinho. Não há maquiavelismo que o leve à reeleição. Mas, sim, uma lógica profunda de identificação popular. Não ganhará por um governo operoso, à ultima hora, tal como as esperanças não se requentam, mas se as empurra, sem meas culpas . Às caravanas já, se Deus quiser, no âmago popular, que só Lula sabe conduzir, para além da cobrança que lhe querem impor os donos da opinião pública, num Brasil que desmontou em 2002. E dê, presidente, ao pleito a plena envergadura da opção sem volta, entre a perplexidade do ir à frente ainda e a certeza irremovível da nossa regressão histórica.
O Globo (Rio de Janeiro) 26/1/2006