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Sem as militâncias fáceis

 

O encontro de Lula com meia centena de intelectuais no Rio foi o segundo deste ano, no empenho do governo amadurecido, de auscultar o seu recado a longo prazo. Para onde vai a Presidência e como o presidente conduz o país, para além do partido e, inclusive, das primeiras euforias de conquista do poder? Reuniram-se reitores, religiosos, psiquiatras, escritores, líderes comunitários, acadêmicos. E a educação, os direitos humanos e a cultura avultaram no debate, a partir da primeira pergunta de Oscar Niemeyer. Insistiu-se na importância do acesso da mocidade à verdadeira formação humanística e não profissional, e da chegada à universidade, num país que deixa ainda um milhão de jovens fora dos campi por ano, quer pelas limitações da universidade pública, quer pelos preços dos campi privados, frente às novas classes ascendentes entre nós.


O avanço da luta contra a corrupção, por outro lado, não pode envolver o patrulhamento eletrônico, e a perda do direito à intimidade, quando já vão a meio milhão os telefones grampeados pela polícia. O crescente respeito internacional que ganhamos como democracia se expõe ao crime de imagem, à falta do direito de resposta, à limitação ainda do papel das agências públicas, a garantir, na escala devida, a neutralidade da informação. Repetiram-se as perguntas sobre a violência urbana, as perplexidades dos movimentos sociais, a tolerância com o trabalho escravo, o equívoco entre assistência social e seguridade; a riqueza das organizações comunitárias nos municípios brasileiros e o papel que a universidade poderia desempenhar no apoio às ONGs no país.


O presidente tornou inequívoca a continuação do programa, independentemente do mandato, pelo tripé, hoje inseparável, do crescimento, inclusão social e imediata redistribuição de renda. Enunciou-o Dilma Rousseff, nesta plena afirmação do desenvolvimento, que se auto-sustente, sobretudo, já, pela sua implicação social e política. O modelo quer levar a produtividade nacional a rever as tensões clássicas do MST, dos sindicatos e das populações carentes, trazidas à "terra produtiva" e à saída da economia de subsistência e a aceleração do país urbano, a abrigar hoje 80% dos brasileiros ao acesso imediato à saúde, à educação e ao impacto do Bolsa Família. O repertório do seu êxito só tem como contrapartida nos temores do presidente, numa assombração repetida, os riscos do câmbio, do déficit corrente externo e da inflação. Insiste na votação da Reforma Tributária este ano, assim como da nova lei de telecomunicações. Levará ao Congresso um projeto realista de reforma política, fortalecendo a fidelidade partidária e financiamento público das campanhas.


Contrapõe-se às velhas ortodoxias do partido, e não se esquiva da crítica como dos equívocos de uma chegada sôfrega ao poder. No plano internacional, Lula entendeu como acidente de trajetória o impasse de Doha, e acredita na superação do argumento eleitoreiro de última hora dos Estados Unidos e da Índia, para chegar-se, de fato, ao mercado mundial do abastecimento alimentar. Esse Brasil emergente dos BRICs vê consagrada sua política exterior e, sobretudo, numa convivência latino-americana que resistirá a todo "imperialismo", frente a Bolívia ou Equador, pela força da Petrobras ou da usina de Itaipu, frente às novas demandas do presidente paraguaio, Fernando Lugo.


O encontro com os intelectuais não foi ao palco das cobranças das reivindicações das classes produtoras ou dos sindicatos. Mostrou a consciência presidencial frente às tentações de um terceiro mandato, frente à facilidade de seu carisma ou sedução nacional. Temos hoje um capital inédito de liderança numa experiência de poder, a impor-se aos cínicos mais empedernidos, depois de perder as militâncias fáceis na chegada ao Planalto.


O Globo (RJ) 14/8/2008