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Secularização e ‘guerra de religiões’

 

A segunda década do século começa, já, a viver de inesperadas contradições, na larga visão das expectativas do futuro. Dava-se por assente o avanço da democracia, a supor, por sua vez, uma crescente secularização da vida pública e a trazida do religioso ao estrito plano das identidades culturais. Desde a Revolução de Khomeini, no Irã, foi-se ao polo oposto: aí estão os Estados islâmicos a fazer da sharia a própria norma da cidadania e sua vigência. Mas, ao mesmo tempo, a Primavera Árabe foi saudada, de início, como este empuxe profundo de uma maturação global do imperativo democrático, com a derrubada de ditadores, quase perenizados, como o da Tunísia, da Líbia,  ou do Egito. Vã a esperança, no que, de logo, se evidenciou na torna desses países à dominante religiosa e, até, às vezes, ao novo exclusivismo da cidadania conferido às crenças. E ainda perdura a hesitação, no Egito, do exclusivismo político da Fraternidade Muçulmana, da plena consagração dos salafidas e sua hegemonia xiita.

Desdobram-se todos os repúdios ao que, ainda no começo do século, pensava-se fosse  a associação inseparável da democracia e da  secularização. Mais se acusa, ainda, esse retrocesso  com o atentar-se a como a nação hegemônica  por excelência – os Estados Unidos – torna à dominância da fé, na sua mobilização  política.

Não é outra coisa o que revelam hoje os republicanos,  no chamamento da fé às suas lideranças, dos mórmons aos luteranos,  mas, sobretudo, aos próprios católicos. Argui-se, aí, este fenômeno da descontextualização,  e a dita “civilização do consumo”, com perda identitária, vindo  de par com a afluência nas civilizações de massa.

Os Estados Unidos, dos pilgrims e dos quakers, voltariam a um apelo de suas raízes e seriam, inesperadamente, a nação do novo fundamentalismo contemporâneo, ou melhor, rachada ao meio, no que a plataforma democrática traduziria  a verdadeira prospectiva da cidadania de nosso tempo. Cada vez mais, o  programa de Obama é a bandeira contra todo o exclusivismo social, perigosamente  capaz de chegar a novas defesas das autenticidades culturais, às restrições  aos chicanos, e à mantença das políticas migratórias antiislâmicas.

As novas perplexidades que assaltam a esperança do secularismo vão exigir a nitidez de novas garantias contra a “guerra das religiões” e, sobretudo, o atentar-se a como o avanço, hoje mesmo, do processo histórico reside na definitiva despolitização das crenças na vida pública. E nela nos toca, cada vez mais, nos darmos conta do quanto, como produto da nossa subcultura, o evangelismo vai às bancadas políticas, e vê o demônio no aliciamento de seus opositores.

Jornal do Commercio (RJ), 24/5/2013